Direto do Carf

PIS/Cofins e fretes intercompany: estamos no "De Volta para o Futuro"?

Autor

  • Carlos Augusto Daniel Neto

    é sócio do escritório Daniel & Diniz Advocacia Tributária doutor em Direito Tributário pela Universidade de São Paulo (USP) mestre em Direito Tributário pela PUC-SP com estágio pós-doutoral em Direito Tributário na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) é visiting scholar no Max-Planck-Instituts für Steuerrecht und Öffentliche Finanzen ex-conselheiro titular da 1ª e 3ª Seções do Carf pesquisador do NEF/FGV presidente da Comissão de Direito Aduaneiro do Iasp e professor permanente do mestrado profissional do Cedes e da pós-graduação do IBDT.

13 de abril de 2022, 8h00

O filme "De Volta para o Futuro" ("Back to the Future", 1985, de Robert Zemeckis) é um clássico da cultura pop. Fora os méritos técnicos e artísticos, a ideia de viagem no tempo, como meio de sincretizar passado e presente nas situações de contraste divertidamente retratadas no filme, cativou toda uma geração de fãs.

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No Direito as coisas deveriam funcionar de uma forma um pouco diferente: os ideais de segurança e estabilidade depõem contra grandes contrastes entre a realidade jurídica no passado, no presente e no futuro, salvo hipóteses de mudanças normativas ou fático-sociais relevantes. O artigo 926 do CPC/2015, nesse ponto, prescreve o óbvio ululante a um Estado de Direito, qual seja o papel dos tribunais de manter sua jurisprudência estável, íntegra e coerente.

Um dos temas que mais sofreu "oscilações jurisprudenciais", no âmbito do Carf, a despeito da inexistência de modificações fáticas ou jurídicas relevantes, foi a questão do creditamento de PIS/Cofins sobre os gastos com frete intercompany de produtos acabados. Mas antes de entrar nisso, é preciso contextualizar o tema.

A legislação do PIS/Cofins não cumulativos traz duas regras de creditamento que abrangem os gastos de frete, apesar de apenas uma delas se referir nominalmente a esses gastos. Os dispositivos em questão são os incisos II e IX do artigo 3º da Lei nº 10.833/2003, verbis:

"Artigo 3º — Do valor apurado na forma do artigo 2º a pessoa jurídica poderá descontar créditos calculados em relação a:
II – bens e serviços, utilizados como insumo na prestação de serviços e na produção ou fabricação de bens ou produtos destinados à venda, inclusive combustíveis e lubrificantes, exceto em relação ao pagamento de que trata o
art. 2º da Lei no 10.485, de 3 de julho de 2002, devido pelo fabricante ou importador, ao concessionário, pela intermediação ou entrega dos veículos classificados nas posições 87.03 e 87.04 da Tipi;
IX – armazenagem de mercadoria e frete na operação de venda, nos casos dos incisos I e II, quando o ônus for suportado pelo vendedor."

Ressalte-se que, apesar da existência de dois fundamentos legais distintos a autorizar o levantamento de créditos de frete, isso não significa dizer que eles poderão ser utilizados indiscriminadamente. Pelo contrário, cada um deles abrange um conjunto de situações específicas e sem margem lógica de superposição de incidências.

O frete na aquisição de bens se baseia no citado artigo 3º, II, da Lei nº 10.833/2003, o qual se conecta com a questão dos insumos (daí ser chamado de frete insumo). O seu fundamento mediato é o fato do bem adquirido depender do serviço de frete para estar disponível para produção, fabricação ou prestação de serviços, tornando-se essencial a essas atividades econômicas.

Aqui não há qualquer conflito com o artigo 3º, IX, da Lei nº 10.833/2003, que se destina a regular apenas o frete relacionado à venda (frete de venda), e não à compra. Pelo contrário, há uma harmonia entre eles, pois se o vendedor arcar com o custo do frete, ele se creditará com base no inciso IX, ao passo que caso o comprador assuma esse ônus, ele se creditará com fulcro no inciso II, evitando-se assim qualquer espécie de duplo creditamento, alheio ao escopo da não cumulatividade.

Esse entendimento vem recebendo guarida no STJ, desde que comprovada indispensabilidade do frete para a consecução da atividade, como esclarecido pelo ministro Sérgio Kukina, em voto vista no AgInt no REsp nº 1.477.320/PR, alinhado aos critérios firmados no julgamento do REsp nº 1.221.170/PR, julgado sob a sistemática de recursos repetitivos.

No âmbito do Carf, o entendimento não destoa. As turmas têm entendido que os fretes de aquisição de insumos geram direito ao crédito como "serviço-insumo" dada a sua essencialidade ao processo produtivo, e que a pessoa jurídica poderá descontar créditos em relação aos serviços utilizados como insumo na produção ou fabricação de bens ou produtos destinados à venda (e.g., Ac. nº 3402-009.367, j. 29/10/2021; Ac. 3401-001.896, j. 18/07/2012; Ac. 3301-00.980, j. 07/07/2011).

O mesmo tratamento é dado também às hipóteses em que a empresa possua um processo produtivo descentralizado, que demande que o produto inacabado passe por diversos estabelecimentos, ou, que o bem seja remetido a outra pessoa jurídica para a realização de industrialização por encomenda. Como se trata de um "serviço-insumo", dentro do processo produtivo, tem se reconhecido o direito ao crédito, a exemplo da SC Cosit nº 631/2017 e nos Acórdãos CSRF nº 9303-010.477 (j. 18/6/2020) e nº 9303-009.716 (j. 16/10/2019).

Situação distinta é aquela que envolve a movimentação do produto acabado, cuja elaboração de sua forma final foi concluída, entre estabelecimentos do mesmo contribuinte (chamado usualmente de frete logístico ou intercompany, que mencionamos no início do artigo).

Trata-se de uma situação se situa exatamente no "limbo" existente entre as duas regras de creditamento de fretes. O inciso II autoriza o crédito de fretes "utilizados como insumo na prestação de serviços e na produção ou fabricação de bens ou produtos destinados à venda", mas uma vez estando acabado o produto, ressalvadas algumas situações bastante particulares, decorrentes de imposição legal, como as exigências sanitárias (e.g. Ac. 3402-004.905), não há mais que se falar em gastos como insumos.

Por outro lado, o inciso IX só é aplicável "na operação de venda", e desde que o ônus econômico seja suportado pelo vendedor, de modo que caso o produto não esteja envolvido em uma operação de venda, destinado ao comprador, não há que se falar em crédito. É uma despesa logística, usualmente relacionada à distribuição do produto entre estabelecimentos do contribuinte que estejam mais próximos do mercado consumidor, para a partir daí serem oferecidos para venda.

A ReceitaF sempre se posicionou contrária ao creditamento desse gasto, na Solução de Divergência Cosit nº 11/2007. Entretanto, é no Carf que esse tema ganhou oscilações relevantes e que interessam ao nosso artigo.

Até o ano de 2017, a jurisprudência era, quase que unânime, contrária ao aproveitamento dos créditos de frete nesse tipo de transação, justamente por não se enquadrar em nenhuma das hipóteses legais (e.g. Ac. 3403-001.556, j. 25/4/2012; Ac. 3401-003.902, j. 27/7/2017; Ac. 3302-004.346, j. 27/6/2017).

Com o julgamento do Ac. 9303-005.156 (j. 17/5/2017), a 3ª CSRF mudou seu entendimento, passando a acatar, por maioria, o creditamento dos gastos com o frete intercompany de produtos acabados. O entendimento adotava, simultaneamente, dois fundamentos distintos: 1) em primeiro lugar, no fato de que esse frete seria "essenciais[al] para a atividade de comercialização", pois a atividade da empresa demandaria o deslocamento das mercadorias para os Centros de Distribuição, onde estão os centros consumidores — aplicou-se, portanto, o critério da essencialidade; 2) em segundo lugar, no fato de que não seria um "frete de venda", mas um "frete na operação de venda", devendo ser considerado um serviço intermediário necessário à efetivação da alienação final, invocando o artigo 3º, IX, da Lei nº 10.833/03.

Como se vê, utilizavam-se dois fundamentos simultâneos que, em nosso entender, são incompatíveis entre si. Ou bem o se trata de insumo, ou é frete na operação de venda, não havendo possibilidade lógica de se atender a ambos os pressupostos de aplicação dessas regras.

Ao longo dos meses seguintes, a jurisprudência da 3ª CSRF oscilou sobre o tema: ora entendia, por voto de qualidade, que não haveria direito de crédito nessas situações a exemplo do Ac. 9303-006.715 (j. 15/5/2018), ora voltava atrás para autorizar tal crédito, a exemplo do Ac. 9303-006.799 (j. 16/5/2018). Além disso, entre os acórdãos favoráveis, alguns adotavam expressamente o conceito de insumo como fundamento, enquanto outros invocavam o inciso IX do artigo 3º.

Com o julgamento do REsp nº 1.221.170, em regime de recursos repetitivos, a 3ª CSRF passou a assumi-lo como fundamento das decisões, por entender que o frete intercompany de produtos acabados estaria, de acordo com o conceito de insumo firmado pelo STJ, dentro do alcance do art. 3º, II, das Leis nº 10.637/2002 e 10.833/2003 (e.g. Ac. 9303-008.575, j. 11/05/2019).

Nesse período, se deu um fenômeno bastante interessante, e relativamente comum a alguns temas no Carf: as câmaras baixas, majoritariamente, votavam o tema em um sentido, e a CSRF em outro, havendo um descolamento de entendimentos entre esses dois níveis do tribunal administrativo. Apesar disso, diversos conselheiros passaram a alterar suas posições pessoais, ora se adaptando ao entendimento da 3ª CSRF, ora invocando o REsp nº 1.221.170 como fundamento para o referido creditamento.

Ocorre que, paralelamente a esse entendimento da 3ª CSRF, o próprio STJ, interpretando o seu precedente vinculante, manteve entendimento pacífico no sentido de que o frete de produtos acabados não se enquadraria como operação de venda, tampouco como parte do processo produtivo, razão pela qual não daria direito ao crédito (e.g. AgInt no AgInt no REsp 1.763.878, j. 26/2/2019; REsp 1147902/RS [1], j. 18/3/2010).

Como se vê, trata-se de uma situação que causa espécie pelo anacronismo: a 3ª CSRF, a pretexto de realizar o precedente do STJ, reconhece um crédito que o próprio STJ entende não ser devido!

Essa situação perdurou algum tempo, mas recentemente a 3ª CSRF modificou sua posição, e voltou a negar o crédito nessas situações:

"COFINS NÃO CUMULATIVO. CRÉDITO. DESPESAS COM FRETES. TRANSFERÊNCIA DE PRODUTOS ACABADOS ENTRE ESTABELECIMENTOS DA MESMA EMPRESA. IMPOSSIBILIDADE
Em consonância com a literalidade do inciso II do caput do artigo 3º da Lei nº 10.833, de 2003, e nos termos decididos pelo STJ e do Parecer Cosit nº 5, de 2018, em regra somente podem ser considerados insumos para fins de apuração de créditos da Contribuição da Cofins, bens e serviços utilizados pela pessoa jurídica no processo de produção de bens e de prestação de serviços, excluindo-se do conceito os dispêndios realizados após a finalização do aludido processo, salvo exceções justificadas." (Ac. nº 9303-011.959, j. 16/9/2021)

Nessa decisão, especificamente, o relator esclarece a sua mudança de entendimento para se adequar ao entendimento vigente no âmbito do STJ, apresentando diversos acórdãos daquela corte no sentido de negar o direito de creditamento a fretes de produtos acabados. A linha que prevaleceu, portanto, é a de que não podem ser considerados insumos os gastos posteriores ao encerramento do processo produtivo, salvo exceções justificadas, e o frete logístico não poderia ser equiparado a uma "operação de venda", pela ausência de comprador.

Quanto às "exceções justificadas", elas são mencionadas desde o Parecer Normativo Cosit nº 05/2018, e se referem "aos itens [bens e serviços] exigidos pela legislação para que o bem ou serviço produzidos possam ser comercializados", que são considerados insumos ainda que aplicados sobre o produto acabado.

De forma sumular, conforme o entendimento atual, insumos seriam os bens e serviços aplicados durante o processo produtivo/industrial ou para a prestação do serviço, ressalvadas as hipóteses de itens cujo emprego sobre o produto acabado, após o processo produtivo, decorra de uma imposição legal, caso em que se reconhece a sua natureza de insumo, por se tratar de uma essencialidade estabelecida por força legislativa (aqui em sentido amplo, abrangendo inclusive atos infralegais, de caráter cogente).

Ora, voltou-se ao mesmíssimo entendimento existente em 2017, antes da mudança de posição da 3ª CSRF e do julgamento do REsp nº 1.221.170 (o qual, costumo demonstrar em aulas, em nada inovou em relação ao que já era aplicado pelo Carf em matéria de insumos de PIS/Cofins), e de todas as oscilações na jurisprudência ocorridas nos últimos cinco anos.

Da mesma forma que Marty McFly, vencidas as desventuras, voltou ao futuro naquele lendário DMC DeLorean, o Carf hoje também caminha de volta ao futuro — um futuro que já existia em 2017 — passado um período de oscilações na sua jurisprudência. E tal como no filme mencionado, talvez passar por esse período de discussões técnicas sobre o alcance do artigo 3º, II e IX, da Lei nº 10.833/2003, tenha servido para garantir um futuro melhor, com critérios mais sólidos e aptos a respaldar uma jurisprudência efetivamente estável, íntegra e coerente.

Por outro lado, a aplicação de regras distintas para a resolução dos empates de julgamento tem contribuído para a continuidade das divergências de posicionamentos: 1) ora aprioristicamente pró-contribuinte, com base no artigo 19-E da Lei nº 10.522/02, nos casos que envolvem autos de infração (e.g. Ac. 9303-011.781, j. 18/8/2021); 2) ora com base no voto de qualidade, nos casos em que há pedido de ressarcimento de créditos de PIS/Cofins (e.g. Ac. 9303-012.457, j. 18/11/2021).

Quem sofre, afinal, com essa bipolaridade na resolução de casos tributários, com precedentes em sentidos diametralmente opostos a depender do tipo de processo em julgamento, é o contribuinte, que deixa de ter um norte confiável na jurisprudência do Carf. Caso isso se mantenha, não precisamos ser nenhum Doc. Brown, imortalizado por Christopher Lloyd, para saber que teremos novos problemas no futuro. Oxalá essa história não vire uma trilogia!


[1] "Inexiste, portanto, direito ao creditamento de despesas concernentes às operações de transferência interna das mercadorias entre estabelecimentos de uma única sociedade empresarial."

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    é sócio do escritório Daniel & Diniz Advocacia Tributária, em estágio pós-doutoral em Direito Tributário na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), doutor em Direito Tributário pela Universidade de São Paulo (USP), mestre em Direito Tributário pela PUC-SP, ex-conselheiro titular da 1ª e 3ª Seções do Carf, pesquisador do NEF/FGV e do Nupem/IBDT e professor permanente do mestrado profissional do Cedes e de diversos cursos de pós-graduação.

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