Opinião

O novo decreto de regulamentação dos SACs

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10 de abril de 2022, 10h22

Recentemente o consumidor foi surpreendido com a publicação do Decreto 11.034, do último dia 5, que buscou "regulamentar a Lei 8.078, de 11 de setembro de 1990 — Código de Defesa do Consumidor, para estabelecer diretrizes e normas sobre o Serviço de Atendimento ao Consumidor", ou seja, sobre os SACs.

A matéria já contava com disciplina estabelecida pelo Decreto 6.523, de 31 de julho de 2008 que, então, restou revogado, pela norma editada e que está em vacatio legis pelo período de 180 dias.

O Código de Defesa do Consumidor (CDC) foi a locomotiva da criação dos SACs, principalmente pelo quanto disposto em seu artigo 26, segundo o qual o prazo de decadência do direito do consumidor é suspenso a partir da comprovação de sua reclamação junto ao fornecedor, até a sua resposta negativa, de modo inequívoco.

Se por um lado o dispositivo "estende" a sobrevida do direito do consumidor em busca uma solução judicial, por outro, cria a oportunidade de contato entre as partes, na busca de uma solução amigável, o que não ocorreria se o consumidor, para prevenir o seu direito, tivesse que rapidamente acionar o Poder Judiciário como, de fato, teria que fazê-lo nos termos da norma civil então vigente.

O legislador, desta forma, além de ter inovado, valorizou a aproximação das partes com o intuito de incentivar a composição amigável. Acreditava-se na restauração da relação e na construção de steps de educação no âmbito desse serviço, entre os sujeitos da relação de consumo.

Pois bem. Se por um lado o contexto se demonstrou construtivo, por outro, com o passar dos anos, os SACs, notadamente aqueles relacionados a serviços regulados pelo Poder Público Federal e, portanto, de natureza essencial, foram se fragilizando, considerada a excessiva demanda e o envolvimento de questões de difícil solução.

Consequentemente, os órgãos de defesa do consumidor, como os Procons, acabaram por se tornar verdadeiros balcões de atendimento das empresas. Foi então, nesse diapasão, editado o decreto do SAC que, a par de não ser perfeito, e demandar atualização, à época inovou e enriqueceu o setor.

O atual Decreto 11.034/2022, ao contrário, surge sem regular os problemas constatados no setor, não atualiza o sistema de funcionamento, de acordo com as demandas identificadas pelos órgãos que compõem o Sistema Nacional de Defesa do Consumidor e, ainda, se furtou à oportunidade de inovar em um enorme cenário de alteração das práticas de mercado nos últimos 14 anos, período transcorrido entre a norma revogada e a vigente, frustrando a expectativa de todos que esperam sempre a evolução da proteção dos consumidores.

Onde o consumidor ganhou com a primeira norma? Pode-se aqui citar alguns exemplos: a) a obrigatoriedade de no primeiro menu eletrônico, constar as opções de contato com o atendente, de reclamação e de cancelamento de contratos e serviços e a de contatar a opção do atendimento pessoal em todas as subdivisões do menu eletrônico (artigo 4º); b) o funcionamento do serviço 24 horas nos sete dias da semana (artigo 5º); c) o acesso das pessoas com deficiência auditiva ou de fala em caráter preferencial, facultado à empresa atribuir número telefônico específico para este fim (artigo 6º); d) a qualificação de todos os atendentes para atendimento de reclamação e cancelamento de serviço, vedada a transferência da ligação (artigo 10, § 3º); a autonomia do fornecedor para criação do sistema informatizado, exigida a técnica pertinente a garantir a agilidade, a segurança das informações e o respeito ao consumidor (artigo 13); a proibição de veiculação de mensagens publicitárias durante o tempo de espera para o atendimento, salvo se houver prévio consentimento do consumidor.

Verifica-se, ainda, que deixou em segundo plano eventual regulação por órgãos da Administração, de modo a apressar e exigir eficiência dos fornecedores, a altura da abrangência de seus serviços e do direito à qualidade constitucionalmente garantido ao consumidor. O tempo máximo para o contato direto com o atendente foi estabelecido em até 60 segundos, pela Portaria MJ 2.014, de 13 de outubro de 2008, exceto para os serviços financeiros e de energia elétrica.

Para os serviços financeiros. o tempo máximo é de 45 segundos, como regra geral, e de 90 segundos as segundas-feiras, nos dias que antecedem ou sucedem feriados e no quinto dia útil. Já para os serviços de energia elétrica, a regra geral é de 60 segundos, mas sem limite de prazo, se houver crise sistêmica no fornecimento de energia a um grande número de consumidores.

A regulação setorial poderá estipular período diferente para atendimento telefônico pelo SAC de 24 horas e nos 7 dias da semana. Os serviços de transporte não regular de passageiros e o atendimento de até 50 mil assinantes de TV por assinatura não estão sujeitos a prazo máximo para contato direto com o atendente de 60 segundos, porque a regulação setorial é quem vai definir esse prazo.

E com o novo decreto, o que o consumidor ganha? O consumidor perde.

Não haverá mais a obrigação expressa de falar diretamente com o atendente no primeiro menu, sequer a obrigação de se falar com o atendente durante o período de 24 horas, pois este prazo foi reduzido para 8 horas, e o prazo de tempo que era uniforme de 60 segundos para o atendimento do setor regulado ficará a critério da definição de cada setor.

Esse descompasso entre a norma e a realidade é fruto da desarticulação da Secretaria Nacional de Defesa do Consumidor, órgão do Ministério da Justiça e da Segurança Pública, e do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor, composto pelo diversos órgãos de defesa do consumidor, difundidos por todo o Brasil, tais como os Procons estaduais e municipais, Ministério Público de Defesa do Consumidor de todos os estados, Defensoria Públicas, OAB e entidades da sociedade civil organizada, nos termos do artigo 105 do CDC.

Se por um lado o artigo 106 do CDC estabelece como função da Senacon a coordenação do sistema, permitindo a interface entre os órgãos, por outro é preciso se colocar dele integrante, ao invés de a ele se apresentar como autoridade hierarquicamente superior, considerada a condição que se extrai do sistema federativo.

O novo decreto do SAC não considerou, por exemplo, pesquisa de alta envergadura encomendada pela Promotoria de Justiça de Defesa do Consumidor de Belo Horizonte, do Ministério Público de Minas Gerais, para a Fipe/USP, que atendendo aos anseios do sistema, pautou a tônica do trabalho na constatação de dados que pudessem subsidiar os trabalhos do sistema nacional.

Os dados extraídos de pesquisa realizada, entre novembro de 2020 a janeiro de 2021, comprovam algo, há muito intuído pelos Procons, por exemplo, como o fato de que 73,2% dos consumidores lesados preferem, por exemplo, procurar imediatamente o Procon ao SAC, buscado apenas por 10,7%.

Há mais de 40 anos os órgãos do sistema têm como fio condutor da sua linha de atuação a valorização do cidadão, o respeito aos seus direitos fundamentais, a consideração pelo risco e prejuízo material envolvidos a partir do fato ou do vício do produto ou do serviço e das práticas comerciais abusivas.

Nunca o sistema se curvou a considerar o "porte do fornecedor" para diminuir a importância de uma reclamação individualmente considerada. O cidadão sempre esteve no topo da pirâmide a merecer a melhor atenção e respeito, independentemente de sua representação no resultado da equação: produção em massa x desacertos no fornecimento. E esse pilar foi drasticamente soterrado pela nova norma (artigo 1º, parágrafo único e artigo 15, §1º, II).

Se por um lado o artigo 4º dispõe a respeito da disponibilidade do SAC durante 24 horas por dia, sete dias da semana, por outro, o artigo 5º estabelece como condição mínima de funcionamento, o horário de atendimento não inferior a 8 horas, com disponibilização de atendimento por humano. Verifica-se, assim, que o parâmetro não é compatível com o tempo de disponibilidade de oferta e aquisição do serviço.

E, estranhamente, "autoriza" ao regulador inferior, permitir que o atendimento humano supere as 8 horas a que se refere o dispositivo anterior, como se isto fosse, de fato, necessário em um sistema capitalista, onde a concorrência regula o mercado, e a livre iniciativa está resguardada constitucionalmente.

E o que dizer do hipervulnerável que para ter acesso ao SAC dependerá, ainda, de mais um nível de regulação? Não se justifica o decreto regulamentador deixar à mercê, de mais uma norma, a regulação do direito de acesso da pessoa com deficiência ao SAC, como estabelecido no artigo 6º.  O decreto estaria apto a regular este importante acesso dispensando a devida atenção ao direito fundamental do hipervulnerável e o fornecedor a operacionalizá-lo de modo eficiente.

Entre outras críticas pertinentes à nova norma, verifica-se no artigo 13 que, a par do caput estabelecer o prazo de sete dias corridos para as demandas do consumidor serem respondidas, o §4º dispõe, em absoluta contradição, que os órgãos ou as entidades reguladoras competentes poderão estabelecer, no setor regulado, prazo para resolução das demandas no SAC.

Também não parece razoável o largo espectro de regulação inferior deixado pelo novo decreto que, certamente, implicará mais um degrau de regulação, tornando difícil a compreensão do consumidor, afirmando poder hierárquico do órgão de coordenação, que nos termos da lei federal, a regulamentar o CDC não se presta, e restringindo o acesso do consumidor ao SAC, ao invés de criar mecanismos de facilitação que permitam, nos termos do artigo 4º, inciso III, a harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo.

Esperemos o término do prazo de vacatio legis, que coincidirá com o período eleitoral, para que, de fato, se defina o rumo dos SACs dos serviços regulados, e de sua interface com o Sistema Nacional de Defesa do Consumidor.

Um aspecto muito importante repousa no fato de a Senacon ser a responsável pela criação da metodologia de avaliação da efetividade dos SACs considerando, nos termos do artigo 15, entre outros fatores, a quantidade de reclamações referentes ao SAC em face da quantidade de clientes ou unidade de produção. Esse, efetivamente, é um critério inadequado para a métrica da defesa do consumidor, pois uma reclamação em face de empresa de qualquer um dos serviços regulados pode, por exemplo, representar lucro ou prática abusivos, considerada a prestação do serviço em escala, ainda que irrisório o número de reclamações, sendo certo que cada um dos reclamos do consumidor deve ser igualmente considerado.

O mesmo dispositivo estabelece, também, que a depender do olhar da Senacon, constatada a baixa efetividade do SAC, poderá ser determinado o atendimento telefônico com atendente em prazo superior de 8 horas diárias, direito do consumidor há muito conquistado e que foi banido pela nova norma.

Oportuna seria a atualização do decreto do SAC para atender as inovações tecnológicas, ampliando os meios de comunicação. Hoje existem inúmeros outros canais de atendimento ao consumidor, além do telefone. Os procedimentos então definidos deveriam ser mantidos, pois almejaram proteger os consumidores e são uniformes.

O novo decreto é um retrocesso, deixou de avançar nos direitos fundamentais já conquistados, e privilegia o interesse do mercado regulado em detrimento do consumidor.

Autores

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    é advogada, mestre em Direito das Relações Sociais pela PUC-SP, professora da PUC-SP, diretora do Brasilcon, ex-diretora da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) e assistente de direção do Procon/SP.

  • Brave

    é advogada, especialista em Direito das Relações de Consumo pelo Cogeae/PUC-SP, professora da PUC-SP, diretora do Brasilcon, membro do Conselho Diretor do Idec, ex-procuradora do Estado de São Paulo (1994/2019) e ex-assistente de direção do Procon-SP (1985/1994).

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