Opinião

Um ano do crime de perseguição: o retorno do debate entre a intimidade e a liberdade

Autor

  • Giuseppe Cammilleri Falco

    é advogado criminalista do escritório Alamiro Velludo Salvador Netto Advogados presidente da Comissão de Direito Criminal Política Criminal e Penitenciária da 12ª Subseção da OAB de Ribeirão Preto — Seção de São Paulo.

10 de abril de 2022, 17h19

Em 20 de outubro de 2020, o então senador e ex-presidente do Uruguai, José "Pepe" Mujica, em seu discurso de renúncia, disse que os Estados e sistemas políticos deverão enfrentar no futuro "até onde é violável a intimidade humana e até onde existe a liberdade" [1]. Nesta fala, o senador uruguaio colocou novamente no centro do debate o antigo conflito entre a intimidade e a liberdade, pois esse conflito, senão alterado, foi, ao menos, intensificado pela hipertrofia do uso das tecnologias informacionais que alteraram o modo de sociabilidade das pessoas. Tanto é assim que, de forma quase instintiva, hoje, quando se pensa em entrar em contato com uma pessoa, certamente, pensa-se primeiro no uso de um método digital para tanto.

Por volta de cinco meses depois do discurso de "Pepe" Mujica, em 31 de março de 2021, entrou em vigor a Lei nº 14.132, que acrescentou ao Código Penal o artigo 147-A, passando a tipificar a chamada conduta de perseguição, comumente chamada de Stalking, como crime. Logo, a tipificação do crime de perseguição foi motivada por um caldo social de preocupação com correto uso da tecnologia informacional, em especial, das redes sociais, em face do direito à intimidade.

A criminalização de condutas praticadas por meio de técnicas informacionais não é novidade na legislação brasileira. Em 2012, por exemplo, a Lei nº 12.373 trouxe, por meio do artigo 154-A do Código Penal, o crime de Invasão de Dispositivo Informático. Além desse, em 2018, a Lei nº 13.718, trouxe ao Código Penal o artigo 218-C criminalizando a conduta conhecida como revenge porn. No entanto, em que pese as anteriores legislações sobre condutas praticadas no ambiente informacional, é verdade que o crime de perseguição é o único no Código Penal que centraliza a questão da "privacidade", como direito e liberdade individual a ser tutelada pelo Direito Penal.

Então, neste um ano de vigência do crime do artigo 147-A do Código Penal, a pergunta que ainda persiste, e parece que essa é a o núcleo do debate sobre tal conduta, é sobre qual o espaço de intimidade protegido pela norma penal, em especial, quando trata-se do ambiente virtual. Desta pergunta central derivam tantas outras de aspecto bastante prático, por exemplo: Comentar em diversas publicações de uma rede social da mesma pessoa é perseguição? Enviar constantemente inúmeras mensagens via aplicativo é considerado perseguição? Dissimular a criação de perfis para acessar perfis não públicos? Entre tantas outras.

As respostas a estas perguntas, e tentar compreender qual é o alcance do direito à intimidade nesta nova sociabilidade, passa, primeiramente, pela constatação de que o direito a intimidade, atualmente, teve uma retração do seu âmbito de proteção. Isto porque, conforme bem exemplificou o sociólogo Zygmunt Bauman, "nós colocamos microfones nos confessionários" [2]. O quer dizer que se valoriza a divulgação e compartilhamento da vida privada, seja como forma de reafirmação, projeção e, até mesmo, pertencimento da sociedade.

No entanto, de forma paradoxal, a intimidade ainda é elemento importante da sociabilidade, tanto é que se usou do meio jurídico mais violento (Direito Penal) para tentar protegê-la. Aliás, vale dizer, que o argumento pelo uso do Direito Penal foi justamente por esse ser meio jurídico "forte" o bastante para enfrentar a avassaladora pressão imposta à intimidade por essa nova sociabilidade digitalizada. O ponto é que, o que tradicionalmente seria entendido como espaço de intimidade, atualmente, não pode ser aplicado, afinal, como dito, há uma nova sociabilidade digitalizada que impõe novos traçados ao alcance dos direitos.

O professor Victor Gabriel Rodrigues [3] em sua obra sobre a tutela penal da intimidade traz ao debate o uso da chamara Teoria das Esferas, originalmente desenvolvida por dois juristas alemães, Hubmann e Henkel. A teoria consiste em se reconhecer a existência de três círculos concêntricos, que demonstram do maior para o menor os espaços da vida privada; a intimidade e do segredo.

O primeiro círculo, que delimita a vida privada, preserva-se de terceiros aspectos específicos da pessoa, o qual quer parecer que já foi esvaziado pelas redes sociais. Depois, de forma mais restrita, no círculo da intimidade situa-se os valores e informações concernentes à intimidade, onde a pessoa negocia o acesso das informações com terceiros, ou seja, somente aqueles que as pessoas desejam podem ingressar neste ambiente. O último e mais restrito círculo restringe-se ao que os autores chamam de segredo, em que as informações estão restritas e exclusivas ao titular do direito [4].

A Teoria das Esferas, em que pese a nova sociabilidade, parece ainda ser útil, pois, se de um lado a intimidade teve retração em seu espaço, é verdade que o titular de direito tem maior poder de escolha daqueles que acessam seu espaço de liberdade. Tanto é que está disponível nas plataformas de redes sociais a possibilidade de bloquear perfis, mensagens etc., tudo, para que aquela pessoa não tenha acesso ao ambiente virtual da outra.

Então, a capacidade de escolha e limitação do acesso da pessoa pode ser um critério para delimitação deste novo espaço de intimidade e, por consequência, de delimitação do crime de perseguição. Ou seja, aquele que mesmo diante de acertadas comunicações de afastamento e bloqueio de acesso à intimidade persiste em acessar esta esfera da vida privada da pessoa  ressalvadas as circunstâncias do caso concreto  parece-nos incorrer na conduta prevista no artigo 147-A do Código Penal.

Enfim, além de diversos aspectos práticos trazidos pelo novo crime de perseguição que não foram objeto desta breve reflexão, a criminalização do stalking representa um retorno do debate acerca do conflito entre a intimidade e a liberdade que, hoje, não pode estar separado da realidade das redes sócias e do ambiente informacional em geral.

 NOTAS:

[1] Tradução livre de trecho do discurso proferido no Senado da República Oriental do Uruguai em 20 de outubro de 2020. PEPE Mujica: último discurso no Senado na íntegra e legendado. Uruguai: [s. n.], 21/09/2020.
[2] BAUMAN, Zygmunt. Entrevista exclusiva Zigmunt Bauman. Direção: Nucleo de Pesquisa em Estudos Culturais NPEC. Produção: CPFL. [S. l.: s. n.], 2011. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=1miAVUQhdwM&t=919s. Acesso em: 02 abril. 2022.
[3] RODRÍGUEZ, Victor Gabriel. Tutela Penal da intimidade: perspectiva da atuação penal na sociedade da informação. São Paulo: Atlas, 2008.
[4] Sobre isso: FALCO, Giuseppe Cammilleri. O conflito entre a liberdade de informação e a vida privada: uma reflexão jurídico-social sobre a necessidade de resolução do conflito na esfera penal. Orientador: Prof. 2017. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Direito)
 Franca, 2017.

Autores

  • é advogado no escritório Alamiro Velludo Salvador Netto – Advogados Associados, mestrando em Direito pela Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Estadual Paulista – UNESP/FCHS, coordenador do Grupo de Estudos Avançados em Escolas Penais do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – Estado de São Paulo (GEA/IBCCrim), membro da Comissão de Direito Criminal e Política Penitenciária da 12ª Subseção da OAB/SP.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!