Tribunal do Júri

Memória, suas influências e a prova testemunhal no júri

Autor

  • Rodrigo Faucz Pereira e Silva

    é advogado criminalista habilitado no Tribunal Penal Internacional (em Haia) pós-doutor em Direito (UFPR) doutor pelo Programa Interdisciplinar em Neurociências (UFMG) mestre em Direito (UniBrasil) e coordenador da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI.

9 de abril de 2022, 8h00

A prova testemunhal constitui um meio de prova por intermédio da qual quem presenciou ou possui algum conhecimento relevante sobre um fato depõe sobre o que assistiu, ouviu, ou até mesmo sobre sua percepção por meio dos outros sentidos.

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No âmbito do júri, onde a grande maioria das discussões fáticas se referem a homicídios — crimes que, em regra, deixam vestígios materiais — o que pressupõe, em regra, uma predominância de provas objetivas. Contudo, tendo em vista a limitação técnica pericial da polícia judiciária brasileira e o grave preconceito (violador de proteção a inocentes) quanto à assistência técnica realizada pela defesa ainda na fase investigativa, a prova testemunhal constitui a maior parte dos elementos probatórios apresentados aos julgadores. Trata-se de uma prova de baixo custo, de fácil produção e de difícil controle sobre o resultado. No entanto, resta comprovado que erros de testemunhas oculares são os fatores determinantes para a grande maioria de condenações de inocentes [1].

Há décadas que estudos comprovam as inúmeras falhas as quais as memórias estão sujeitas. Desde o momento em que o estímulo é apresentado (codificação), até a fase do armazenamento e da evocação, múltiplos fatores atuam de forma a influenciar a memória.

Além do mais, as primeiras informações prestadas pelas testemunhas influenciam toda investigação sobre o crime. Pense-se na hipótese de um homicídio, em que a polícia, com base nos depoimentos constrói sua linha de investigação e, a partir disto, prepara fotografias para reconhecimento, busca suspeitos apontados, toma depoimentos de testemunhas referidas, formaliza pedidos de prisão, dentre outras diligências. Assim, fica fácil perceber que mesmo pequenos erros ou falhas na precisão das testemunhas possuem o condão de influenciar toda uma investigação e, consequentemente, o processo penal que se desenvolve a partir daquela narração.

O problema se torna mais grave quando os testemunhos se dirigem ao reconhecimento de supostos autores do fato [2], em que estudos indicam que cerca de 20% das vezes as testemunhas reconhecem alguém que não é suspeito do crime investigado [3], bem como que 25% dos suspeitos identificados em reconhecimentos são inocentes [4]. Ainda, de maneira geral, a forma com que a testemunha é questionada altera sua memória [5] e que testemunhas reportam eventos errados quando presenciam outras testemunhas depondo sobre tais eventos [6].

Quanto aos "questionamentos" realizados pelos policiais e, posteriormente, em audiência ou em sessão plenária, diversas pesquisas revelam que a forma em que as perguntas são realizadas prejudicam a imprecisão da memória, como também tem o poder de criar falsas memórias. Perguntas tendenciosas ou parciais são capazes de afetar a precisão da memória, o que, por si só, deveria inviabilizar sua utilização em sentenças — condenatórias —, pois aniquila com a perspectiva de que a testemunha fará um depoimento verossímil em juízo meses ou anos após.

O sugestionamento pode ocorrer tanto pela forma, entonação ou conteúdo da pergunta realizada, a qual transparece ao depoente a resposta desejada pelo entrevistador. Também, a memória de longa duração sofre a influência tanto da percepção imediata do episódio, o qual é codificado pelo sistema mnemônico, quanto pelas informações obtidas após o evento. Com o passar do tempo, essas duas fontes de memória acabam se integrando, o que faz com que o sujeito não consiga distinguir de qual fonte específica proveio determinado detalhe. Assim, quando as partes — durante a sessão de julgamento em plenário, por exemplo —, fizerem perguntas sugestivas, a prova deveria ser desconsiderada ou valorada com restrição.

Outro fenômeno que pode alterar a memória e a credibilidade da prova testemunhal denomina-se conformidade de memória. Trata-se de internalização de falsa informação de uma testemunha ao ter contato direto — inclusive no momento de espera para o ato de expor fatos — com outra, ou do ato de uma pessoa alterar seu comportamento para corresponder ao relato dos outros.

Em experimento publicado em 2021 [7] dois grupos assistiram a uma cena aparentemente idênticas em que ocorria uma tentativa de homicídio. No entanto para um dos grupos foi mostrado o vídeo em que o autor cometia o delito sozinho e para o outro grupo a agressão era realizada por dois indivíduos. Em seguida, foram formados pares com um participante de cada grupo, para que conversassem durante seis minutos sobre o que assistiram (sendo que ambos acreditavam que tinham visto o mesmo vídeo). Os resultados apontaram que nove dentre 29 participantes, apesar de terem assistido a uma cena em que o autor do crime não possuía um cúmplice, após discutir com um outro participante que assistiu cena semelhante só que com um comparsa, conformaram com essa informação. Sendo assim, 31% dos participantes internalizaram informação relevante da "outra" testemunha, passando a acreditar terem visto um segundo criminoso que, na realidade, não existiu.

No intuito de reduzir a influência do relato de uma testemunha na outra, o próprio CPP adverte que as testemunhas devem ser separadas. No entanto não é incomum deixarem todas as testemunhas de acusação em uma mesma sala e as de defesa em outra. Tampouco as testemunhas são orientadas a não conversarem fora do ambiente forense sobre o que presenciaram. Frisa-se que a separação das testemunhas e a necessidade de inviabilizar o contato entre elas é pacificamente aceita como meio básico para evitar a conformidade de memória.

Assim, a partir de estudos científicos, pode-se asseverar que as informações fornecidas por testemunhas presenciais, quando influenciadas por outras, não significa que corresponde com a realidade fática. Isto é, quando duas ou mais testemunhas apresentam depoimentos congruentes, não necessariamente estão confirmando o depoimento uma das outras.

Alguns dilemas sensíveis poderiam ser minimizados se houvesse uma entrevista individual com as testemunhas presenciais imediatamente após o acontecimento do fato, sem que tenha havido qualquer contato direto com outras testemunhas ou terceiras pessoas. Contudo, este isolamento não condiz com a realidade, uma vez que as interações sociais são cada vez mais densas e instantâneas. É da natureza humana compartilhar suas experiências, ainda mais quando ocorre algo excepcional, como testemunhar um fato criminoso.

Outro fator que precisa ser avaliado é o transcurso do tempo entre o fato e o relato testemunhal diante do julgador. De acordo com o artigo 156 do CPP, a sentença condenatória não pode ser fundamentada exclusivamente no depoimento de testemunhas perante a autoridade policial (por mais que a expressão "exclusivamente" abra margem para que o magistrado fundamente "também" com base em tais depoimentos). Desta forma, as testemunhas são ouvidas novamente em fase judicial após meses ou anos do fato criminoso (no caso do procedimento bifásico do júri, a tramitação pode ser ainda mais demorada), o que as deixa expostas às mais diversas formas de influências e impossibilita que se tenha um relato mais próximo da realidade vivenciada.

Tal fato é preocupante e demonstra ainda mais a fragilidade das provas testemunhais, pois estudos indicam que as distorções da memória podem ocorrer simplesmente pela repetição em relatar os fatos e pelo próprio transcurso do tempo.

Uma pesquisa publicada em 2020 revelou que oito meses após os participantes serem expostos a um estímulo e a uma informação falsa, 88,89% relataram que a informação seria verdadeira [8]. E mais, 25% dos participantes alegaram grau de confiança máxima em suas respostas, indicando também que, após longo período de tempo entre o fato e a audiência, mesmo aquelas testemunhas que garantam ter certeza no que estão relatando, não necessariamente narrarão o que de fato aconteceu.

Em suma, as testemunhas presenciais e os envolvidos como um todo (vítimas, informantes, acusados), por terem que se fiar em suas próprias memórias para relatar o que ocorreu, sofrem uma série de influências externas e internas, como (a) suas próprias experiências anteriores; (b) informações obtidas pela mídia; (c) relatos de outras testemunhas; (d) sugestionabilidade das perguntas; (e) preconceitos enraizados; (f) nível de estresse.

Ademais, quanto maior o transcurso de tempo dentre o fato delitivo e os relatos das testemunhas, maior a potência dessas interferências. No entanto, a necessidade de imediatividade na colheita das provas, precisa ser ponderado em respeito ao sistema acusatório ou adversarial. Como se sabe, por uma série de razões, mormente em respeito aos princípios do contraditório e da ampla defesa (no júri, potencializado à plenitude de defesa) o testemunho colhido em sede administrativa necessita ser realizado novamente em juízo [9].

Destaca-se que por força normativa, a testemunha precisa "dizer a verdade do que souber e lhe for perguntado", "sob palavra de honra". Caso considere-se que aquela faltou com a verdade, poderá responder pelo crime de falso testemunho (artigo 342, do Código Penal). Sendo assim, faz-se necessário o conhecimento por parte dos operadores de direito em saber diferenciar o falso testemunho dos fenômenos que influenciam as memórias, tendo em vista que pode não haver intenção deliberada em "fazer afirmações falsas". Lembra-se que falsas memórias são totalmente distintas de falso testemunho ou mentira, eis que naquela o relato que não condiz com a realidade não ocorre por decisão da testemunha, mas sim pela falha em seu processo mnemônico.

Inegável reconhecer a importância da prova testemunhal para o esclarecimento dos detalhes do crime (até mesmo por isso a necessidade de promover o desenvolvimento de técnicas que visem minimizar os erros da memória). Nas últimas décadas, nos países da common law, ocorreu um grande progresso em pesquisas sobre a defectibilidade da memória, o que levou a alterações na percepção de como a prova testemunhal é compreendida. Em 2011 a Suprema Corte de Nova Jersey decidiu que os jurados devem ser instruídos pelo juiz presidente do julgamento sobre a falibilidade da prova testemunhal, indicando que a memória humana não funciona como uma câmera filmadora, sendo bem mais complexa. Ainda, dependendo do caso, o juiz deve apontar que "mesmo nas melhores condições de observação, alto nível de estresse pode reduzir a habilidade da testemunha em relembrar e fazer identificações precisas" [10].

Contudo, no âmbito do sistema jurídico brasileiro, necessita-se rever o valor dado a este tipo de prova, mitigando seu valor como prova isolada. Outrossim, a prova testemunhal precisa estar em consonância com outros elementos probatórios do processo para validação das informações narradas, tendo em vista sua potencial dependência da memória e naturais falhas e instabilidade.

Além disso, os julgadores precisam ter conhecimento dos avanços científicos sobre a psicologia do testemunho e, especialmente, durante o julgamento em plenário, os jurados carecem de ser instruídos sobre o tema, assim como já ocorre em alguns Estados norte-americanos, de forma a refletirem com cautela sobre a valoração das provas testemunhais produzidas diante de si.

[1] Estudo conduzido pela National Academy of Sciences dos Estados Unidos da América publicado em 2014 apontou que, mais de 70% das condenações que posteriormente foram revertidas por exames de DNA, derivaram de erros de testemunhas.

[2] Já escrevemos nesta coluna sobre a problemática do reconhecimento pessoal no procedimento do júri: https://www.conjur.com.br/2021-mar-18/avelar-faucz-reconhecimento-pessoal-procedimento-juri

[3] Wright, D. B., & McDaid, A. T. (1996). Comparing system and estimator variables using data from real line-ups. Applied Cognitive Psychology, 10(1), 75–84.

[4] Levi, A. M. (1998). Protecting innocent defendants, nailing the guilty: A modified sequential lineup. Applied Cognitive Psychology, 12(3), 265–275

[5] Loftus, E., & Palmer, J. (1974). Reconstruction of automobile destruction: An example of the interaction between language and memory. Journal of Verbal Learning & Verbal Behavior, 13, 585–589.

[6] Gabbert, F; Memon, A; Allan, K. (2003). Memory conformity: Can eyewitnesses influence each other’s memories for an event? Applied Cognitive Psychology, 17, 533-543.

[7] PEREIRA E SILVA, Rodrigo Faucz; JAEGER, Antonio. False reports of an accomplice in a crime scene: conformity effects on memory confidence and accuracy. PSICO-USF, v. 26, p. 153-163, 2021.

[8] PEREIRA E SILVA, Rodrigo Faucz; JAEGER, Antonio. Memória e Conformidade: a confiabilidade da prova testemunhal e o transcurso de tempo. RBCCRIM. vol. 171. 2020.

[9] Cita-se também a ausência de controle e a própria (ausência de) qualidade na colheita dos depoimentos produzidos no inquérito policial. Sobre o aspecto da repetibilidade da prova testemunhal, sugiro a leitura do artigo: CECCONELLO, William Weber; AVILA, Gustavo Noronha de; STEIN, Lilian Milnitski. A (ir)repetibilidade da prova penal dependente da memória: uma discussão com base na psicologia do testemunho. Revista Brasileira de Políticas Públicas. v.8, n2, 2018. p. 1059.

[10] Loftus, E. F.; Shacter, D. L. (2013) Memory and Law: what can cognitive neuroscience contribute? Nature Neuroscience, 16, 2, 119-123.

Autores

  • é advogado criminalista, pós-doutor em Direito (UFPR), doutor pelo Programa Interdisciplinar em Neurociências (UFMG), mestre em Direito (UniBrasil), coordenador da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI, professor de Processo Penal da FAE e do programa de mestrado em Psicologia Forense da UTP.

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