Diário de Classe

A teoria de Gargarella e o desenvolvimento constitucional nacional

Autor

  • Pietro Cardia Lorenzoni

    é advogado professor de Direito Público do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP-DF) doutor em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) diretor jurídico da Associação Nacional de Jogos e Loterias e membro do Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

9 de abril de 2022, 8h00

A coluna desta semana aborda uma perspectiva histórica. Retomando as importantes lições do professor Streck (2018) sobre a história constitucional brasileira, analisa-se a eventual compatibilidade entre a teoria de Roberto Gargarella sobre a lógica constitucional de acumulação e o desenvolvimento constitucional nacional. A necessidade de estudar a história constitucional brasileira é, pelo menos em tese, autoevidente. Por todos, relembra-se o argumento de Maquiavel. Segundo o autor florentino, boa parte dos problemas contemporâneos encontra resposta na história.

Para o estudo da tese de Gargarella, a coluna fará o seguinte caminho: uma breve explicação sobre a teoria e, num segundo momento, uma comparação com a história constitucional brasileira. Vamos ao trabalho.

Gargarella afirma que há uma lógica constitucional compartilhada, pelo menos majoritariamente, na América Latina. Trata-se da lógica de acumulação. Ela funciona da seguinte forma: diante da necessidade de criar constituições que funcionem em cenários marcados por sociedades plurais, divididas e com graves desequilíbrios históricos, a América Latina explorou quatro rotas principais de "estratégia constitucional". Essas rotas são: 1) imposição; 2) silêncio; 3) síntese; e 4) acumulação. A última alternativa — a acumulação — foi a mais explorada e transformou-se na resposta regional para o desenvolvimento constitucional mais comum frente ao fator do pluralismo.

A ideia caracterizadora da acumulação é a tendência de simplesmente agregar diferentes propostas de grupos políticos rivais ou, até, de tradições distintas — frequentemente em tensão — às constituições (Gargarella, 2018). Segundo Gargarella, essa alternativa é especialmente visível no meio do século 19, diante do tensionamento entre os liberais e conservadores. De outro giro, o tensionamento vivido entre uma perspectiva social e uma perspectiva liberal de Estado também pode ser um exemplo. A concretização dessa alternativa, segundo o autor, é que diversos países latino-americanos optaram por expressar literalmente ambas as visões nas constituições mesmo diante de aparentes contradições — se não de regras, pelo menos de princípios. Com isso, caracteriza-se a acumulação.

O ponto central é perceber esse elemento compartilhado pelas reformas constitucionais de países latino-americanos. Conforme explica Gargarella (2018), as reformas do século 20 tiveram aspectos comuns relacionados à incorporação de direitos e alteração substancial nas bills of rights sem modificar substancialmente a engenharia constitucional. Em outras palavras, a divisão de poderes e a organização da federação permaneceram basicamente as mesmas enquanto as declarações de direitos foram se ampliando para comportar novos grupos e movimentos políticos — essencialmente políticas de wellfare state relacionadas com direitos sociais e visões ambientalistas e fraternalistas de direitos de terceira dimensão.

As crises econômicas, sociais e políticas demandaram mudanças substanciais de organização social. Essas crises ampliaram a intervenção estatal na economia, o número de serviços públicos a serem oferecidos e a própria dinâmica da relação Estado-cidadão ao incorporar um extenso rol de atividades estatais prestacionais. O reflexo disso nos documentos constitucionais, contudo, foi essencialmente em termos de previsão de direitos na Constituição.

No final do século 20 e início do século 21, a América Latina viveu nova onda de reformas constitucionais. Dessa vez, elas lidaram com uma ressignificação dos papéis e dos direitos de grupos minoritários e sua relação com os direitos humanos. São reflexos disso as previsões de direitos indígenas e novas formas de compreensão do constitucionalismo nativo latino-americano. Nessa senda, são exemplos a Constituição colombiana de 1991, a venezuelana de 1999, a equatoriana de 2008 e a boliviana de 2009.

Na análise brasileira, percebe-se a manifestação dessa estratégia. Por exemplo, é interessante perceber que a evolução da separação de poderes e o desenvolvimento da organização das competências dos entes federados mudaram consideravelmente menos entre as Constituições de 1891, 1934, 1946 e 1988 do que as declarações de direitos. No mesmo sentido, preferiu-se acumular novos títulos como "ordem econômica e social", "família, educação e cultura" e "funcionários públicos" em 1934, mantidos em 1946 e renomeados "Ordem Econômica e Financeira", "Ordem Social", "Educação, Cultura e Desporto", "Família, Criança, Adolescente, Jovem e Idoso" em 1988.

De outro giro, a separação dos poderes mantém-se razoavelmente estável ao longo do tempo, conforme se percebe da comparação entre os artigos 7º, 9º, 34.48 e 54 da Constituição de 1891 com os artigos 5º, 6º, 7º, 8º, 39, 40, 56 e 57 da Constituição de 1934 e os artigos 5º, 15, 18, 19, 65 e 66, 87 e 88 da Constituição de 1946.

Exemplo desse tensionamento prático ocorrido na Constituição de 1934 é abordado por Streck (2018): "O controle de constitucionalidade difuso mantido pela Constituição de 1934 não acompanhou o viés social constante no corpo da Constituição, inspirada na Constituição de Weimar, razão pela qual o componente social da Constituição ficou incompatível com a forma de controle de constitucionalidade".

Por sua vez, também na Constituição de 1946 há manifestação de certas tradições potencialmente suscetíveis a tensionamentos. Afinal, "a nova Constituição manteve os princípios liberais-sociais da Constituição de 1934 e a legislação corporativa fruto da era Vargas" (Streck, 2018).

Com efeito, percebem-se indícios de aplicação da estratégia de acumulação no desenvolvimento constitucional brasileiro. Ressalta-se: o ponto, evidentemente, não é defender suposta imutabilidade das Constituições brasileiras, mas ressaltar que há indícios da utilização da estratégia de acumulação. Ou seja, há modificações nas declarações de direitos relacionadas com o acréscimo de novos movimentos que coabitam com as previsões anteriores. Isso ocorre por mais que haja um certo afastamento de tradição que originou esses direitos e uma considerável dificuldade de harmonização entre eles.

A estratégia em estudo ressalta um suposto baixo nível de adaptação das conquistas civilizatórias anteriores, o que gera dificuldades. Isso ocorre, segundo Gargarella (2018), por principalmente duas razões, quais sejam: 1) a previsão de disposições normativas de direitos potencialmente contraditórias e de difícil interpretação harmonizada e coerente; 2) a acumulação de direitos sem a adaptação das demais previsões constitucionais — especialmente da organização de poderes responsável por concretizar as novas conquistas formatadas como promessas constitucionais.

Veja-se, não se está, nesta coluna, defendendo que existem direitos demais na Constituição de 1988. Defende-se que, a partir da lógica do autor trabalhado, o problema não está simplesmente na acumulação, mas na acumulação sem a adaptação de mecanismos necessários para aliviar os tensionamentos institucionais provocados por ela. Talvez, aqui, tenhamos a raiz de um problema e, a partir da sua identificação, melhores condições de desenvolvermos soluções.

Ademais, Gargarella sustenta que essa estratégia acabou por agravar e não aliviar o problema da divisão social e polarização. Tal ponto, no Brasil, é extremamente interessante, visto que a própria formulação da constituição no seio das Assembleias Constituintes contou com divisões temáticas com diferentes maiorias parlamentares, consoante experiências que originaram os documentos de 1946 e de 1988. Os grupos de parlamentares responsáveis por temas específicos não tinham a mesma linha ideológica, o que possibilitou a formação de grupos mais liberais e outros mais sociais, por exemplo. Isso se refletiu no texto constitucional, potencialmente dando razão para a posição de Gargarella.

É evidente que a historicidade das constituições provocou, provoca e provocará heranças que se manifestam em disposições constitucionais, razão pela qual o aperfeiçoamento constitucional jamais rompe com a sua inserção histórica (Streck, 2018). O ponto, como já frisado, é a falta de uma maior utilização de mecanismos que aliviem esses tensionamentos a partir de uma visão coerente na própria redação do texto constitucional.

Esse é o importante aspecto enfrentado. Indícios desses pontos são melhor apontados por Gargarella, que nota a falha dos diversos constituintes de antecipar os conflitos emergentes da tensão entre a "antiga constituição" e as reformas aglutinadas à "nova constituição". Esse problema parece estar presente desde a construção do nosso modelo constitucional. Com Gargarella (2018) e Streck (2018), é possível afirmar que o nosso próprio modelo apresenta traços de uma aglutinação — de certo modo com baixa preocupação com a estratégia de acumulação — que potencializa o tensionamento.

Importante apontar que não é essa a causa absoluta dos males relacionados às crises democráticas latino-americanas ou brasileiras. Apesar da importância do documento constitucional, ele não é o único fator no sucesso ou fracasso de uma nação.

 

Referências bibliográficas
GARGARELLA, Robert. Constitutions in trouble. In Constitutional Democracy in Crisis. Mark. A. Grabes, Sanford Levinson, Mark Tushnet. Nova Iorque: Oxford University Press, 2018.

STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional. 5. Ed. rev., atual. E reform. Rio de Janeiro: Forense, 2018.

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    é advogado, professor de Direito Público do Centro Universitário Ritter dos Reis (Uniritter/RS) e do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP/DF), doutorando em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e membro do Dadein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos e da Rede Ibero-Americana de Advocacia Criminal.

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