Limite Penal

Negacionismo científico também afeta o direito probatório

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8 de abril de 2022, 15h06

No último dia 24 de março, ocorreu uma audiência pública no Senado para discutir o fundamento científico de um tipo de "terapia" que vem sendo muito utilizada no Poder Judiciário brasileiro: a constelação familiar [1]. A despeito da sua não-aceitação por parte do Conselho Federal de Psicologia, o seu uso tem sido comum em varas de família dos estados da Bahia e do Rio de Janeiro, por exemplo, inclusive em casos de violência doméstica. Essa "terapia" também vem sendo promovida como parte da Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares do SUS (Sistema Único de Saúde)  a qual inclui, dentre outras, as seguintes práticas carentes de evidências científicas: homeopatia, Reiki, aromaterapia, geoterapia, imposição de mãos e ozonioterapia.

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Inspirados pela referida audiência pública, propomos discutir hoje a tolerância do sistema de justiça criminal brasileiro a formas de investigação e meios de produção probatória considerados pseudocientíficos. De antemão, podemos dizer que interpretamos a pseudociência como uma variação da ideia de negacionismo científico [2]. O termo tem sido muito utilizado recentemente como um rótulo para criticar a postura de quem rejeita evidências científicas sobre a eficácia das vacinas contra a Covid-19. Mas o negacionismo científico não é uma preocupação atual ou isolada, pois ele se relaciona a um conjunto maior de fenômenos antigos e relacionados [3]. Como o entendemos, o negacionismo científico envolve não só a atitude de questionamento de evidências, pesquisas e consensos (exempli gratia, negação do aquecimento global de origem antropogênica, crença de que alimentos geneticamente modificados são inseguros para o consumo, confiança em laudos periciais que negam a existência de incertezas ao expressarem certezas categóricas em suas conclusões), mas também a atribuição de status científico a teorias ou métodos comprovadamente falsos (exempli gratia, astrologia, homeopatia).

Voltando nossas atenções para o cenário judicial brasileiro, a tolerância injustificada com práticas que contrariam evidências, estudos e consensos científicos vai muito além da promoção de supostas terapias para a conciliação e resolução de conflitos, alcançando, de forma mais preocupante, os meios utilizados para se buscar e determinar a verdade dos fatos em um processo. Proposições de fato sustentadas em práticas investigativas e probatórias de eficácia questionada podem servir como premissas para medidas preventivas graves e decisões condenatórias  ou seja, a pessoa pode vir a ser encarcerada com base em suposições factuais alcançadas sem qualquer base empírica. Essa tolerância com práticas pseudocientíficas pode ser observada em decisões judiciais particulares  como os casos das cartas psicografadas, admitidas como meios de prova em processos penais (aqui e aqui[4] , mas também em medidas institucionais específicas.

A Polícia Científica do Paraná, por exemplo, manteve uma seção de hipnose forense por cerca de 14 anos com o objetivo de auxiliar investigações policiais. Em que pese à afirmação presente em diferentes publicações, de que a referida seção contribuiu para a solução de mais de 800 casos, "não houve produção científica sobre essa atuação". Além disso, o sigilo dos dados produzidos nesses casos impede a verificação de tal cifra e a natureza dessa contribuição [5]. Por outro lado, na literatura científica da psicologia há predomínio de pesquisadores, publicações e, principalmente, evidências contraindicando o emprego da hipnose como ferramenta para a "recuperação de memórias" [6]. Os principais riscos identificados colocam em xeque a confiabilidade dessa técnica para fins de investigação ou produção de provas: de um lado, episódios ou detalhes imaginados pela pessoa hipnotizada podem se sedimentar em sua memória como se fossem lembranças reais; de outro lado, a confiança na veracidade de memórias falsas ou distorcidas pode ser reforçada pelo simples fato de a pessoa ter se submetido à hipnose [7]. Com efeito, a mera sugestão de ter participado de uma sessão de hipnose pode levar uma pessoa a ter maior confiança na precisão de suas memórias [8].

Nos Estados Unidos, dezenas de pessoas condenadas com base em testemunhos obtidos por meio de hipnose forense já foram inocentadas. Um dos casos famosos foi a condenação à morte de Joe Spaziano, na Flórida, acusado de estuprar e matar uma enfermeira. Os jurados não foram informados do uso da hipnose para recuperar a memória da única testemunha do caso: um adolescente de 16 anos, dependente químico à época do crime, e que confessou, anos depois, que a sua memória pode ter sido implantada. (A condenação foi revertida em 1997, depois de Spaziano permanecer 20 anos preso enquanto aguardava sua execução). Esse é um dos motivos que levou quase metade dos estados norte-americanos a banir ou restringir o uso da hipnose forense no contexto criminal; recentemente, o estado do Texas esteve perto de proibir seu uso em investigações, mas a proposta aprovada unanimemente na Câmara e no Senado foi vetada pelo governador do estado. Charles Don Flores e Kosoul Chanthakoummane, cujas condenações à pena capital basearam-se nas "memórias" de testemunhas hipnotizadas, veriam a aprovação da lei como um sinal de esperança [9]. Eles seguem no corredor da morte.

Por que o sistema jurídico aceita com tanta facilidade o emprego de pseudociências em questões probatórias? Trata-se de falta de conhecimentos básicos sobre o que é ciência e sobre os mecanismos de produção do conhecimento científico, ou há falta de confiança e deferência epistêmica aos detentores do conhecimento científico pertinente? De certa forma, essa "dicotomia" reflete uma das principais discussões em torno dos testes Daubert e Frye, os quais vêm sendo utilizados nos tribunais dos Estados Unidos para avaliar a admissibilidade técnica de provas científicas. O teste Frye — que data de 1923, mas ainda é aplicado por muitas cortes estaduais — consiste em verificar se a prova científica que se pretende apresentar é considerada confiável pela comunidade científica relevante. Por outro lado, Daubert — um precedente da Suprema Corte estabelecido em 2003, aplicado na jurisdição federal e em algumas jurisdições estaduais — estabelece uma série de condições, a serem atendidas em maior ou menor grau, e atribui ao julgador a tarefa de avaliá-las: 1) se a teoria ou método pode ser e se de fato foi testada (Karl Popper); 2) se a teoria ou método foi publicada e revisada por pares; 3) qual a taxa de erro conhecida ou potencial do método; e 4) a aceitação geral da teoria na comunidade científica relevante.

A aposta do teste Frye está na redução da autonomia do julgador, na medida em que exige a sua deferência epistêmica à comunidade científica [10]. A aposta do teste Daubert, por outro lado, está no incremento dos poderes cognitivos do julgador, e na ideia de que este poderá determinar, por si próprio, se a ciência que se pretende admitir no processo alcança um grau suficiente de confiabilidade. É certo que nem todos os fatores do teste Daubert exigem um alto grau de atividade cognitiva por parte do julgador; mas a sua condição de "gatekeeper" coloca exclusivamente sobre seus ombros a decisão de admitir ou não uma prova científica contestada. Em um sistema judicial onde os fundamentos para decidir são fortemente influenciados pelos precedentes, o que vemos é uma maior deferência epistêmica às decisões de juízes do passado do que ao conhecimento de cientistas do presente.

Um exemplo de ausência de deferência ao conhecimento técnico-científico especializado é encontrado em um rumoroso julgamento ocorrido em 1988 no Superior Tribunal Militar (STM). No banco dos réus estava um oficial do Exército acusado de, entre outras coisas, ameaçar detonar explosivos na estação de abastecimento de água do rio Guandu, que abastece o Rio de Janeiro. A principal prova material contra ele era um documento contendo desenhos e manuscritos, ilustrando como poderia ser praticado o atentado. Conforme relato detalhado no livro "O Cadete e o Capitão", do jornalista Luiz Maklouf Carvalho, no curso dos procedimentos apuratórios, foram produzidos três laudos grafoscópicos comparando os manuscritos contidos nesses documentos com a escrita do acusado, e em dois deles a conclusão dos peritos foi no sentido de que o oficial era realmente o autor dos manuscritos. Um desses laudos foi produzido pelos próprios militares, enquanto o outro foi produzido por peritos criminais da Polícia Federal.

O julgamento no STM se deu por meio do Conselho de Justificação, do qual participaram treze ministros, e teve resultado favorável ao acusado com placar de nove votos a quatro. Entre os votos pela absolvição, chama atenção o voto proferido pelo ministro Antonio Carlos de Seixas Telles. Confiando em uma suposta expertise oriunda de sua experiência profissional anterior (quase vinte anos em cartório criminal na Justiça do Rio de Janeiro, período em que afirmou ter lido muitos laudos grafotécnicos), o ministro pôs-se a refazer o exame grafoscópico ao longo de seu voto, discorrendo sobre o que entendeu serem divergências entre alguns caracteres (mas ignorando outros) [11]. Ao cabo, afirmou "a perícia não me convenceu". Absolvido, o réu viria a ser eleito presidente da República 30 anos depois.

O exemplo acima contrasta com a decisão da juíza April Newbauer, em caso já abordado em texto anterior desta coluna. Em síntese, trata-se de um julgado recente da Suprema Corte do Estado de Nova Iorque, em que a defesa questionou a admissibilidade de um laudo de confronto microbalístico. Adotando uma interpretação mais liberal do teste Frye, a magistrada entendeu que a comunidade científica relevante no campo dos exames de microbalística não se restringia apenas aos especialistas nesta ciência forense em particular, mas envolvia experts das áreas da psicologia, estatística e metodologia da pesquisa. A decisão promoveu uma importante evolução jurisprudencial em direção a uma postura deferencial crítica na aplicação do Teste Frye. "Cada uma dessas comunidades sobrepostas desempenha um papel importante na determinação do que é ciência aceita no campo da identificação de armas de fogo e marcas de ferramentas", afirmou Newbauer.

A decisão quanto à admissibilidade da prova pericial continuou a ser tomada com base em um marcador de expertise, a ideia de consenso científico, mas ampliou a definição de comunidade científica relevante. Em vez de confiar em suas próprias experiências pessoais e capacidades cognitivas, como fez o ministro do STM, a juíza Neubauer deferiu aos profissionais detentores dos conhecimentos científicos relevantes.

A ideia de que tomadores de decisão cientificamente leigos devem ser capazes de exercer sua autonomia epistêmica deve ser superada; ou, pelos menos, devidamente mitigada. Isso vale tanto para juízes e jurados, quando decidem os fatos técnico-científicos de julgados particulares, como para aqueles responsáveis pela formulação de políticas públicas, quando implementam medidas e práticas institucionais. No mundo de hoje, de hiperespecialização e ampla distribuição do trabalho epistêmico, não faz mais sentido a adoção de um modelo de decisão solipsista, que negue racionalidade a posturas de deferência e humildade epistêmica. Não devemos confiar exclusivamente em nossas habilidades para dominar um campo do conhecimento técnico-científico; mas sim em nossas competências para saber determinar, de forma crítica e responsável, em quem devemos confiar.


[1] Recomendamos que assistam, no Youtube, às falas dos críticos em relação à eficácia da constelação familiar: os físicos Marcelo Takeshi Yamashita e Gabriela Bailas; os psicólogos Tiago Tatton e Daniel Gontijo; o sociólogo e jurista Mateus Cavalcante de França; e o advogado Paulo Almeida, diretor-executivo do Instituto Questão de Ciência, associação sem fins lucrativos que defende políticas públicas baseadas em evidências.

[2] Para uma referência na literatura nacional, ver o recente livro de Natália Pasternak e Carlos Orsi, Contra a realidade: a negação da ciência, suas causas e consequências (Campinas: Papirus 7 Mares, 2021). V., ainda, Bardon, Adrian, The Truth about Denial: Bias and Self-Deception in Science, Politics, and Religion. New York: Oxford University Press, 2020.

[3] V. Oreskes, Naomi; Conway, Erik. Merchants of Doubt: How a Handful of Scientists Obscured the Truth on Issues from Tobacco Smoke to Global Warming. New York: Bloomsbury Press, 2010.

[4] O tema retornou à agenda judicial no final do ano passado, quando a advogada de um dos réus da Boate Kiss, Tatiana Vizzotto Borsa, apresentou em plenário, de modo dramático, um áudio gravado com a suposta mensagem atribuída ao espírito de uma das vítimas do incêndio.

[5] Silva, G. B. da, Holanda, A.F., Vargas, R. M. da C. & Paludo, J. K. Polícia Científica e Psicologia Aplicada: a singular Seção de Hipnose da Criminalística de Curitiba. Memorandum: Memória E História Em Psicologia, 2021, p. 38. https://doi.org/10.35699/1676-1669.2021.26857

[6] Lynn, S. J., Green, J. P., Polizzi, C. P., Ellenberg, S., Gautam, A., & Aksen, D. Hypnosis, Hypnotic Phenomena, and Hypnotic Responsiveness: Clinical and Research Foundations — A 40-Year Perspective. International Journal of Clinical and Experimental Hypnosis, 2019, 67(4), 475–511. https://doi.org/10.1080/00207144.2019.1649541

[7] Nash, Michael. The Truth and the Hype of Hypnosis. Scientific American, 2001. https://www.scientificamerican.com/article/the-truth-and-the-hype-of-2001-07/

[8] Ramchandani, Ariel. False witness: why is the US still using hypnosis to convict criminals? The Guardian, 2019. https://www.theguardian.com/science/2019/oct/04/false-witness-us-using-hypnosis-convict-criminals

[9] Ibid.

[10] V. Cheng, Edward. The Consensus Rule: A New Approach to Scientific Evidence. Vanderbilt Law Review, 75, 2022.  https://vanderbiltlawreview.org/lawreview/2022/03/the-consensus-rule-a-new-approach-to-scientific-evidence/

[11] O argumento de que um juiz pode se lançar a avaliar por conta própria certos fenômenos e dispensar a opinião de especialistas tem, entre seus precedentes históricos, um interessante episódio anterior à Revolução Francesa. Em um julgamento ocorrido na cidade francesa de Arras em 1783, no qual a disputa se dava em torno de um pára-raios instalado na residência de uma das partes, um jovem advogado de 23 anos chamado Maximilien Robespierre argumentou, com sucesso, que "juízes não precisam se curvar aos especialistas científicos". Em sua visão, os juízes eram capazes de observar os fatos sem depender de especialistas. Dez anos depois, Robespierre viria a eliminar as "academias e sociedades literárias mantidas pela nação" — transformando o negacionismo científico em uma política oficial da República Francesa. Sobre isso, ver: Riskin, J. (1999). The Lawyer and the Lightning Rod. Science in Context, 12(1), 61-99. doi:10.1017/S0269889700003318.

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