Opinião

Evidências científicas como obstáculo intransponível à liberdade do gestor

Autor

  • Laura Mendes Amando de Barros

    é doutora e mestre em Direito do Estado pela USP especialista em Direito Público pela Escola da Paulista da Magistratura e em Autoridades Locais e o Estado pela ENA-Paris ex-controladora geral do município de São Paulo e professora do Insper.

8 de abril de 2022, 7h07

Desde há muito defendemos serem as análises de conveniência e oportunidade do administrador não oponíveis a questões de ordem técnica, a conclusões alcançadas com base em critérios científicos abalizados.

A discussão inquestionavelmente ganhou maior impulso durante a pandemia, envolvendo cidadãos comuns usualmente alheios a celeumas tais (não raro com a postura de pretensos profundos entendedores) em acaloradas disputas quanto às posturas governamentais e políticas adotadas.

A premissa de que a discricionariedade administrativa não é absoluta (óbvia) parece ficar um tanto nublada quanto entram em cenas paixões, alta propagação de fake news e informações oficiais desencontradas.

Não é raro constatar posturas governamentais voltadas à imposição das vontades e convicções pessoais de determinado governante, ainda que para tanto tenham que desafiar posturas cientificamente construídas e demonstradas.

A polarização das discussões muitas vezes tem como efeito colateral a perda da racionalidade dos debatentes, que lançam mão de qualquer "argumento", por mais absurdo e carente de sustentação que seja, para defender seu ponto

Não se pode, porém, perder a premissa fundamental: há o interesse público, as expectativas legitimamente criadas quando da eleição dos agentes políticos — e os conceitos cientificamente alcançados como inexoráveis limitadores da liberdade do gestor público.

Nesse sentido, digno de nota recente (proferido em 7/3/2022) e importantíssimo precedente do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, nos seguintes termos ementado:

"Ajuizamento de ação popular com o escopo de anular o Edital do Pregão Eletrônico nº 035/2021, promovido pelo Município de Leme, no tocante aos lotes 03 e 12, suspendendo-se a aquisição dos fármacos Ivermectina e Hidroxicloroquina pela Municipalidade e impedindo a recomendação do uso indiscriminado dos fármacos mencionados na rede pública de saúde. Parcial procedência decretada em primeira instância para declarar nulo o indigitado edital, no tocante ao registro de preços referente aos medicamentos Hidroxicloroquina e Ivermectina, e determinar a suspensão da aquisição de tais fármacos pela parte ré, para tratamento e prevenção da Covid-19. Insurgência das partes. Parcial acolhimento. Quanto ao recurso do Município de Leme, incontroversa a competência material comum a todos os entes federativos para a adoção de políticas públicas de combate à pandemia, restringindo, contudo, tal liberdade administrativa à edição de atos amparados por evidências científicas Art. 3º, § 1º, da Lei nº 14.035/2020 c.c o posicionamento do C. STF no julgamento de medida liminar no bojo da ADI nº 6.341/DF (Rel. Min. Marco Aurélio, Plenário, j. em 15/04/2020) Nulidade do edital no que tange à aquisição do medicamento Ivermectina, porquanto inexistente qualquer referência direta ou indireta a dados científicos objetivos que corroborassem a sua aquisição. Por outro lado, impossibilidade de anulação do pregão em comento no que diz respeito à aquisição da Hidroxicloroquina, na medida em que, na gênese do ato administrativo em questão, houve a indicação indireta de fundamento científico bastante para a legitimação do ato Nota Informativa nº 17/2020-SE/GAB/SE/MS5 do Ministério da Saúde, vigente à época da edição do instrumento convocatório, contendo “Orientações para Manuseio Medicamentoso Precoce de Pacientes com Diagnóstico da Covid-19”. Ainda que posteriormente reconhecida a ineficácia Hidroxicloroquina no combate à pandemia de Covid-19, não há substrato para declarar a nulidade do pregão nesse aspecto, ressaltando-se que, por óbvio, tal medicamento somente poderá ser aproveitado para o combate a outras enfermidades que não a Covid-19, em relação à qual não possui qualquer utilidade cientificamente comprovada. Em relação ao apelo dos coautores, a determinação de readequação dos protocolos ao que pede a lei, a comunidade científica e o Ministério da Saúde é consectário lógico do reconhecimento da ineficácia dos fármacos citados no combate à pandemia de Covid-19. Sentença parcialmente reformada. Recursos providos em parte." (TJ-SP. Apelação Cível 1002010-84.2021.8.26.0318. relator des. Rubens Rihl)

O fundamento expressamente invocado para anular o edital atacado foi justamente os parâmetros cientificamente construídos.

Mais: finalmente deu-se o devido destaque o disposto no artigo 3º, §1º da Lei federal nº 13.979/2020 (com redação outorgada pela Lei 14.035 do mesmo ano), segundo o qual as medidas de enfrentamento à pandemia "somente poderão ser determinadas com base em evidências científicas (…)".

Não se trata de total novidade no âmbito pátrio, vez que o Supremo Tribunal Federal, em julgado inclusive invocado no citado acórdão, já havia estabelecido essa premissa:

"(…) 1. A emergência internacional, reconhecida pela Organização Mundial da Saúde, não implica nem muito menos autoriza a outorga de discricionariedade sem controle ou sem contrapesos típicos do Estado Democrático de Direito. As regras constitucionais não servem apenas para proteger a liberdade individual, mas também o exercício da racionalidade coletiva, isto é, da capacidade de coordenar as ações de forma eficiente. O Estado Democrático de Direito implica o direito de examinar as razões governamentais e o direito de criticá-las. (…) Como a finalidade da atuação dos entes federativos é comum, a solução de conflitos sobre o exercício da competência deve pautar-se pela melhor realização do direito à saúde, amparada em evidências científicas e nas recomendações da Organização Mundial da Saúde." (ADI 6.341/DF. Relator min. Marco Aurélio)

O cenário atual (ao menos em termos jurisprudenciais) é francamente tendente à limitação da liberdade administrativa por aspectos técnico-científicos, e em hipótese alguma se limita às discussões atinentes à pandemia ou à saúde.

Deve ser observado no que toca às contratações de obras/serviços de engenharia; desenvolvimento de metodologia de ensino; implementação de sistemas de interlocução social e transparência pública; estruturação de rotas de tráfego e ciclovias etc.

Nesse diapasão, vale lembrar a balburdia que se instalou no país quanto à obrigatoriedade/dispensa do uso de máscara de proteção em locais fechados.

Diferentes Estados se posicionaram de maneiras antagônicas — como se houvesse diferentes possibilidades de abordar a questão, distintas soluções técnico-científicas para endereçar a solução.

No caso, os órgãos e entidades técnicas tem em uníssono desaconselhado a dispensa do acessório em locais fechados, com base em critérios eminentemente científicos — e portanto capazes de limitar, uma vez mais, a liberdade de decisão do gestor.

Veja-se, nesse sentido, o boletim do Observatório Covid-19 — semanas 10 e 11 da Fiocruz [1], segundo o qual a obrigatoriedade do uso deve ser mantido pelo período de duas a dez semanas após o atingimento da cobertura vacinal desejável, de setenta a noventa por cento da população.

Está-se diante de situação análoga àquela do edital anulado supra referido, passível de contestação pelas mesmas vias — e, em última análise, de cassação, a qualquer momento, pelo Judiciário.

Não se trata de supremacia de um poder sobre outro, nem tampouco da vitória de uma ideologia sobre as demais: é, em verdade, mecanismo voltado à outorga de eficácia aos princípios constitucionais da eficiência, da economicidade, da razoabilidade e, em última análise, ao princípio republicano.


[1] Disponível aqui

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    é doutora e mestre em Direito do Estado pela USP, especialista em Direito Público pela Escola da Paulista da Magistratura e em Autoridades Locais e o Estado pela ENA-Paris e ex-controladora geral do município de São Paulo.

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