Opinião

PL que pretende regulamentar criptomoedas é manifestamente inconstitucional

Autor

  • Fernando Lopes

    é advogado membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico consultor jurídico do projeto Cyberskies e professor da pós-graduação em Investimentos e Blockchain da EA Banking School.

8 de abril de 2022, 9h17

Esqueceram os criadores dos inúmeros projetos de lei elaborados com o fim de regulamentação do mercado de criptoativos que qualquer alteração no sistema financeiro, inclusive no que tange ao aumento de competências do Banco Central apenas pode ser realizada por lei complementar, à luz do que determina o artigo 192 da Constituição da República Federativa do Brasil.

Uma vez considerado que o conceito de instituição financeira, assim como as competências do BC estão definidas na lei com status complementar nº 4595/1964, não é possível incluir no âmbito do sistema financeiro, ou no escopo dos crimes contra o sistema financeiro nacional (Lei 7492/86), novas situações, como a prestação de serviços não financeiros, relacionados com criptoativos, por via ordinária, conforme almejam alguns legisladores.

De destaque em relação às inconstitucionalidades constantes dos projetos de Lei é a não atenção ao conceito de instituição financeira, definido no artigo 17 da Lei complementar 4595/64, pretendendo-se incluir nesse conceito atividades relacionadas ao mercado de criptoativos, sem que tais atividades se enquadrem no conceito legal de instituição financeira, o que, por força do artigo 192 da Constituição, não pode ser feito por Lei ordinária.

Com efeito, apenas lei complementar pode trazer novas hipóteses de instituições financeiras, e por conseguinte estender as competências do Banco Central para essas novas hipóteses.

Já em relação à Lei 7.492/86 que trata dos crimes contra o sistema financeiro nacional, de notar que tal lei ordinária apenas é aplicável às instituições ou agentes que se enquadrem no conceito de instituição financeira especificado na Lei Complementar 4595/64, o que se verifica logo em seu artigo 1º que praticamente repete o conceito de instituição financeira do artigo 17 da Lei 4.595/94.

Contudo, conforme se verá a seguir, pretende o legislador criar, por meio de Lei ordinária, novas hipóteses de instituições financeiras, de modo a adicionar novos tipos penais à Lei 7.492/86, o que se reveste de grave inconstitucionalidade.

Para entender isso, precisamos, em um primeiro momento, compreender o conceito legal de instituição financeira, ex vi do artigo 17º da Lei 4595/64 e do artigo 1º da Lei 7.492/86.

Após isso, veremos que o mercado de criptoativos atualmente possui pelo menos duas espécies muito diferentes de prestadores de serviços, havendo em apenas uma delas, prima facie, a possibilidade de enquadramento no conceito de instituição financeira por equiparação, disposto no parágrafo único, incisos I e II do artigo 1º da Lei 7.492/86.

O artigo conclui no sentido da inconstitucionalidade do projeto na medida em que pretende criar nova definição de instituição financeira, por via ordinária, o que é constitucionalmente vedado, sem contar o fato de haver violação ainda do artigo 1º da Lei 7.492 que apenas é aplicável às instituições financeiras definidas com base na Lei 4595/64.

Conceito legal de instituição financeira definido em LC
A lei responsável pela regulamentação do sistema financeiro nacional, com status de Lei Complementar nº 4.595/1964 define instituição financeira em seu artigo 17º como:

"(…) as pessoas jurídicas públicas ou privadas, que tenham como atividade principal ou acessória a coleta, intermediação ou aplicação de recursos financeiros próprios ou de terceiros, em moeda nacional ou estrangeira, e a custódia de valor de propriedade de terceiros".

Essa mesma lei, especialmente em seu artigo 10º, alínea "b", incisos IX e X restringe e delimita as competências do Banco Central ao exercício de fiscalização apenas sobre instituições financeiras, inclusive, no que tange à autorização para seu funcionamento no país.  

Por sua vez, o artigo 1º da Lei 7.492/86 que estabelece os crimes contra o sistema financeiro nacional, em consonância com que dispõe o artigo 17 da Lei 4.595/64 exemplifica o conceito de instituição financeira, e de modo a explicar as hipóteses de atividade irregular, traz o conceito de instituição financeira por equiparação.

"Artigo 1º Considera-se instituição financeira, para efeito desta lei, a pessoa jurídica de direito público ou privado, que tenha como atividade principal ou acessória, cumulativamente ou não, a captação, intermediação ou aplicação de recursos financeiros (Vetado) de terceiros, em moeda nacional ou estrangeira, ou a custódia, emissão, distribuição, negociação, intermediação ou administração de valores mobiliários.
 Parágrafo único. Equipara-se à instituição financeira:
I – a pessoa jurídica que capte ou administre seguros, câmbio, consórcio, capitalização ou qualquer tipo de poupança, ou recursos de terceiros;
II – a pessoa natural que exerça quaisquer das atividades referidas neste artigo, ainda que de forma eventual".

Dúvidas não há que ambos os dispositivos estão em consonância uma vez que partem do fundamento da Lei, da "mens legis", para expressarem o significado do conceito de instituição financeira.

Em outras palavras, fator decisivo no significado do conceito de instituição financeira é a existência de administração ou custódia de recursos de terceiros.

Com efeito, apenas há risco para a poupança popular ou a possibilidade de lesionar investidores em esquemas de pirâmide, quando a instituição tem a custódia ou administra recursos de terceiros.

Por outro lado, casos em que o consumidor tenha total controle sobre seus recursos, não há que se falar em atividade de instituição financeira, a não ser que se queira transformar todos os cidadãos que aplicam recursos próprios em instituições financeiras (reductio ad absurdum).

Se tal fato pode parecer insignificante para alguns, no âmbito do mercado de criptoativos tem muita relevância, conforme se verá a seguir.

Diferença entre a prestação de serviços financeiros
Há basicamente dois tipos de prestadores de serviço no mercado de criptoativos: há aqueles que administram ou realizam a custódia de recursos de terceiros, caso das chamadas exchanges centralizadas, e aqueles que utilizam a blockchain em suas atividades de modo a evitar que os recursos saiam do controle dos seus legítimos proprietários.

Nesse último caso, os serviços prestados podem ou não fazer uso de criptoativos, conquanto o relevante para que não sejam considerados como serviço de natureza financeira é a ausência de custódia ou administração de recursos de terceiros.

Exemplos de prestação de serviço de natureza não financeira no âmbito do mercado de criptoativos é o uso da blockchain para registro de contratos imobiliários, ou os chamados protocolos decentralizados, baseados em pools de liquidez.

Uma das diferenças fundamentais entre esses dois modelos de mercado de criptoativos é que apenas no caso das corretoras centralizadas há risco de apropriação indébita de recursos por parte do prestador do serviço, dado que apenas nesse caso há administração e custódia de recursos de terceiros, do mesmo modo que ocorre no sistema financeiro tradicional, conquanto sem a supervisão do Banco Central ou outros órgãos de controle.

Por outro lado, no caso dos mercados de criptoativos baseados em blockchain, os recursos são administrados de forma autônoma e transparente por agentes eletrônicos autônomos, também conhecidos como smart contracts.

Tais contratos são públicos e totalmente administrados e regulados pelo código, sendo a movimentação de recursos totalmente vinculada à autorização exclusiva do consumidor, sem delegação de poderes para outrem.

Logo, uma vez que nesses casos as regras são públicas, não havendo gestão ou custódia de recursos de terceiros, tendo ainda o consumidor total controle sobre todas as decisões relativas às eventuais transferências, não há que se falar em justificativas para imposição de regulamentação, tal como ocorre no âmbito das finanças tradicionais.

Logo, estender o conceito de instituição financeira irregular a prestadores de serviço que não realizam custódia e administração de recursos de terceiros, inclusive, para fins penais, implica além da já aludida inconstitucionalidade, erro gravíssimo que pode custar a liberdade de pessoas inocentes, além da causação de danos irreparáveis ao desenvolvimento tecnológico pátrio, dado que o uso da tecnologia blockchain para eliminação da necessidade de custódia e administração de recursos de terceiros está baseada na automação, transparência, igualdade, dentre outros princípios jurídicos inalcançáveis no marco do atual modelo regulatório.

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    é advogado, professor de tecnologia blockchain e finanças descentralizadas na pós-graduação da EA Banking School, associado fundador do Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico e autor e co-autor de livros sobre Direito e tecnologia.

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