Opinião

Reintegra: não há concessão, não há habilitação. O que há?

Autor

  • Flávia Holanda Gaeta

    é doutora e mestre em direito tributário pela PUC-SP professora em cursos de pós-graduação (Ibet PUC-SP e Mackenzie) e sócia fundadora do FH Advogados.

7 de abril de 2022, 18h04

Precisamos voltar às leis intelectuais da linguagem, para compreender a ordem e a medida do nosso repertório jurídico. Pela lei da repartição, evoca-se, intencionalmente, a separação entre as palavras que antes eram sinônimas, e que tomaram sentidos diferentes ao longo do tempo, de modo que já não poderiam ser empregadas uma por outra [1], em determinadas circunstâncias.

O povo possui seus sinônimos [2] e nada ingressa nesta coletânea de maneira absolutamente nova, o método de inclusão em nosso espírito é o da aproximação — uma relação com algo já conhecido. Contudo, os efeitos desta propagação de sentido por (supostos) sinônimos, podem se revelar desastrosos, inclusive quando lidamos com um conjunto de textos normativos. Para resolver possíveis problemas com o uso das palavras, é preciso colocar uma certa ordem, recaindo sobre nós um espírito demiurgo, uma vez que a construção de normas jurídicas não é o ofício de recolhedores de sinônimos.

Quando trazemos verbos como conceder, habilitar, apurar e exonerar, antes de atribuir-lhes o grau de sinônimos, devemos analisar as circunstâncias e os efeitos do uso, para reconhecer, no contexto em que se fala, se é possível empregar uma palavra pela outra, sem prejuízos à conceptualização do conceito buscado  neste caso, o de Reintegra. Nosso papel é exercer a diferenciação, e compreender como o uso distingue e subordina as palavras.

Reintegra é uma palavra nova, inserida no nosso dicionário jurídico em 2011, com a publicação da Lei nº 12.546. Obviamente, a etimologia do substantivo "reintegra" remonta à origem da humanidade, com o perdão do excesso retórico, todavia a forma empregada pelo legislador tem um pouco mais de uma década.

O fato é que, ao longo dos últimos anos, o regime vem sofrendo uma metamorfose semântica, como se diversos sinônimos pudessem ser-lhe atribuídos sem que fosse feita a devida diferenciação, dentre os quais: incentivo, benefício, subvenção, subsídio, direito. Sob o aspecto dos procedimentos aplicáveis ao regime, outros tantos termos são igualmente utilizados, sem deferência, tais como: concessão e habilitação. Nada obstante, o que podemos adiantar é: não cabe tudo na acepção da palavra "Reintegra"!

Como não há espaço para explorar todos os cenários, nesta oportunidade, optamos por enfrentar os termos concessão e habilitação, para excluí-los, definitivamente, do uso e compreensão do regime.

Concessão pode ser interpretado de muitas maneiras, a principal diz respeito ao ato de conceder, dar, permitir, facultar [3]. Habilitação, por sua vez, significa aptidão, capacidade. Quando assimilamos verbos, logo devemos identificar quem os pratica. Afinal, verbo é uma classe de palavras que contempla noções de ação, de processo.

Quem concede o Reintegra? A quem compete habilitar ao Reintegra? A resposta é: ao legislador.

Observando a dicção das leis (re) instituidoras [4], não há referência aos verbos conceder ou habilitar. Esses são verbos habitualmente utilizados em situações nas quais a lei delega ao Poder Executivo a realização de atos administrativos prévios para averiguar as condições de adequação do contribuinte ao tratamento tributário especial por ele pleiteado. Tão logo as condições sejam satisfeitas, sem exigências, a concessão ou habilitação do contribuinte se manifesta através de Ato Declaratório Executivo (ADE), expedido a título precário e publicado na imprensa oficial.

Para o Reintegra, no entanto, não há atos de concessão ou habilitação, expedidos por uma autoridade administrativa. Os artigos 22 e 23 da Lei 13.043/2014 nos parecem claros ao destacar que há o direito de o exportador apurar o crédito [5]. A lei autoriza o exportador a tomar a iniciativa de apuração, com total autonomia para exercer atos de concretização do direito.

Se comparado o Reintegra – norma tributária de crédito [6]  à repetição de indébito, a lógica é exatamente a mesma. O enunciado do artigo 165 do Código Tributário Nacional (CTN) dispõe sobre o direito de o sujeito ter restituído tributo indevido ou a maior [7]. Indo mais adiante, em um fluxo decrescente de fundamento de validade, eis que se observa o artigo 74 [8] da Lei nº 9.430/1996, prescrevendo o direito de o sujeito apurar crédito (…) passível de restituição ou ressarcimento.

Quando a lei autoriza apurar um crédito passível de ressarcimento, tem-se uma norma que permite o credor realizar a sua constituição, analogamente ao que acontece com o tributo pelo autolançamento. Tem-se uma norma autoaplicável. Neste sentido, é prescindível qualquer ato preambular da autoridade administrativa, seja por ausência de disposição legal, seja por ser incompatível com a modalidade eleita pelo legislador para devolver os custos tributários residuais.

Basta passear por regimes como Recap [9], Reidi [10] ou Repetro [11], para perceber de que maneira se instrumentaliza a sua fruição. Diferente do Reintegra, os referidos regimes interferem na norma tributária de incidência, por esta razão a lei prescreve a habilitação prévia do beneficiário pela autoridade fiscal, mediante a instauração de um processo administrativo instruído com uma série de documentos, dentre eles a certidão de regularidade fiscal. O cerne da antecedência é o juízo de adequação do contribuinte ao pleito tributário exonerativo, o que não acontece para o Reintegra.

Argumentando no mesmo sentido, compartilhamos o posicionamento exarado no Parecer Normativo Cosit nº 4, de 01 de dezembro de 2015, que reconheceu a dispensa de certidão de regularidade fiscal sempre que não se tratar de benefícios e incentivos fiscais que implicam a alteração na regra matriz do tributo (item 22). E, ainda, que o próprio termo "benefício" traz a conotação de um tratamento diferenciado e favorecido, de leis específicas que pressupõem a liberalidade legislativa para alterar a regra-matriz de incidência tributária de forma discriminada.

Decididamente, pela lei da repartição semântica, o Reintegra também não se confunde com normas tributárias exonerativas.


Portanto, é a lei que autoriza a apuração do crédito pelo exportador. É a lei que direciona o exportador a atentar para as condições das manufaturas (bens) exportadas antes da apuração, observados os requisitos legais. A materialidade do direito ao crédito é a exportação de bens industrializados no país (listados no anexo expedido pelo Poder Executivo, cujos custos dos insumos importados não devem superar 40% do preço da exportação). A lei só delega ao Poder Executivo a competência para definir as alíquotas e as manufaturas nacionais que ensejarão o direito, sem mais.

O exportador, para fins de apuração do crédito, deve declarar as condições do bem, preenchendo os campos do sistema PER/DCOMP com os dados da (s) nota (s) fiscal (is) de exportação e do (s) registro (s) de exportação (ou DUE, conforme o caso), sem juntada de quaisquer documentos ou constituição de dossiê eletrônico. Ou seja, não há instauração de um processo administrativo anterior à elaboração e transmissão do pedido de ressarcimento, capaz de ratificar o direito de fruição ao crédito de Reintegra.

Após a transmissão, caso o pedido não seja atendido em até 360 dias, a União Federal estará, automaticamente, em mora com o exportador [12], sem a necessidade de invocar o judiciário para ratificar o direito de atualizar o crédito pela taxa Selic a partir do 361º dia, haja vista a expressa disposição do artigo 152, IN RFB nº 2055/2021. A autoridade administrativa, portanto, deverá analisar o pedido de ressarcimento transmitido, instaurando um juízo de adequação entre os dados fornecidos e as disposições legais, para anuir, total ou parcialmente, com o crédito requerido.

Neste sentido, o procedimento executado a posteriori pela autoridade administrativa é o de homologação, não se confundindo com ato de concessão ou habilitação de benefício ou incentivo fiscal.

A propósito, caso venha a ser negado o crédito de Reintegra, o exportador poderá se insurgir contra o despacho decisório por meio de uma manifestação de inconformidade, consoante §7º do artigo 74 da Lei nº 9.430/1996 [13]. Já na hipótese de indeferimento de pedido de concessão ou habilitação de benefícios ou incentivos fiscais, o recurso cabível é o hierárquico previsto no artigo 56 da Lei. 9.784/99 [14]. Sendo assim, fica ainda mais evidente que estamos diante de palavras que não podem ser usadas uma pela outra, como já alertava Michel Bréal [15].

Tudo isso para dizer que os artigos 18 da Lei nº 12.884/13 e 60 da Lei nº 9.069/95 [16], para os quais a concessão de benefícios ou incentivos fiscais ficam condicionados à exigência de apresentação da certidão de regularidade fiscal pela pessoa jurídica requerente, também não se aplicam ao regime em questão.

O direito de apurar o Reintegra independe da situação fiscal do exportador. Não queremos com isso dizer que não há aferição da regularidade fiscal, apenas advertir que o procedimento executado é outro. A situação é conferida pela autoridade administrativa durante o processo de homologação do pedido de ressarcimento, em um ato previsto no artigo 7º do Decreto-Lei n° 2.287/86, grosso modo, chamado de encontro de contas.

Como igualmente veicula o artigo 73 da Lei nº 9.430/1996 [17], a restituição ou o ressarcimento será efetuado, integral ou parcialmente, depois de verificada a ausência de débitos perante a Fazenda Nacional na conta corrente do credor. Casa haja débitos, a autoridade administrativa é obrigada a comunicar o credor para que realize o pagamento voluntário ou anua com a compensação de ofício  ato administrativo através do qual os créditos (ou parte deles) quitam os débitos. Uma vez ultrapassadas essas etapas, é então efetuado o pagamento do saldo credor, conforme artigo 6º do Decreto-Lei nº 2.138/1997 [18].

Inatacável, portanto, a conclusão de que o ato a posteriori de aferição da situação fiscal quando da liquidação do crédito de Reintegra pela União, não se confunde com o ato de concessão de Reintegra pela União. São distinções desta natureza que caracterizam a lei da repartição da linguagem, tão necessária em nosso ofício. É bem verdade que às vezes a palavra justa brota imediatamente. Outras vezes se faz esperar: então o dicionário latente entra em funcionamento e envia sucessivamente os sinônimos que têm em reserva, até que o termo desejado se dê a conhecer [19].

[1] BRÉAL, Michel. Ensaio de Semântica: ciência das significações. São Paulo: EDUC, 1992, pág. 32.

 

[2] "O povo possui, portanto, os seus sinônimos, que ele dispõe e subordina segundo suas ideias". Cf. BRÉAL, Michel. Ensaio de Semântica: ciência das significações. São Paulo: EDUC, 1992, pág. 34.

[3] DA CUNHA, Antônio Geraldo. Dicionário etimológico da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Lexikon, 2007.

[4] Leis nº 12.546/2011 e nº 13.043/2014.

[5] Artigo 22. No âmbito do Reintegra, a pessoa jurídica que exporte os bens de que trata o artigo 23 poderá apurar crédito, mediante a aplicação de percentual estabelecido pelo Poder Executivo, sobre a receita auferida com a exportação desses bens para o exterior.

Artigo 23. A apuração de crédito nos termos do Reintegra será permitida na exportação de bem que cumulativamente:



 

[7] O sujeito passivo tem direito, independentemente de prévio protesto, à restituição total ou parcial do tributo, seja qual for a modalidade do seu pagamento, ressalvado o disposto no §4º do artigo 162, nos seguintes casos: I – cobrança ou pagamento espontâneo de tributo indevido ou maior que o devido em face da legislação tributária aplicável, ou da natureza ou circunstâncias materiais do fato gerador efetivamente ocorrido;

[8] Artigo 74. O sujeito passivo que apurar crédito, inclusive os judiciais com trânsito em julgado, relativo a tributo ou contribuição administrado pela Secretaria da Receita Federal, passível de restituição ou de ressarcimento, poderá utilizá-lo na compensação de débitos próprios relativos a quaisquer tributos e contribuições administrados por aquele Órgão.

[9] Lei nº 11.196/2005.

[10] IN RFB nº 1911/ 2019.Artigo 581.

[11] IN RFB nº 1781/ 2017.Artigo 5º.

[12] IN RFB nº 2055/2021. Artigo 152. Na hipótese de não haver o ressarcimento de créditos do IPI, da Contribuição para o PIS/Pasep, da Cofins e relativos ao Reintegra, no prazo de 360 dias da data do protocolo do pedido de ressarcimento, aplica-se à parcela do crédito não ressarcida ou não compensada o acréscimo de que trata o caput do artigo 148.

[13] "Artigo 74. O sujeito passivo que apurar crédito, inclusive os judiciais com trânsito em julgado, relativo a tributo ou contribuição administrado pela Secretaria da Receita Federal, passível de restituição ou de ressarcimento, poderá utilizá-lo na compensação de débitos próprios relativos a quaisquer tributos e contribuições administrados por aquele Órgão.

§7o Não homologada a compensação, a autoridade administrativa deverá cientificar o sujeito passivo e intimá-lo a efetuar, no prazo de 30 dias, contado da ciência do ato que não a homologou, o pagamento dos débitos indevidamente compensados".

[14] Artigo 56. Das decisões administrativas cabe recurso, em face de razões de legalidade e de mérito.

[15] BRÉAL, Michel. Ensaio de Semântica: ciência das significações. São Paulo: EDUC, 1992, pág. 39.

[16] Artigo 60. A concessão ou reconhecimento de qualquer incentivo ou benefício fiscal, relativos a tributos e contribuições administrados pela Secretaria da Receita Federal fica condicionada à comprovação pelo contribuinte, pessoa física ou jurídica, da quitação de tributos e contribuições federais.

[17] Artigo 73. A restituição e o ressarcimento de tributos administrados pela Secretaria da Receita Federal do Brasil ou a restituição de pagamentos efetuados mediante DARF e GPS cuja receita não seja administrada pela Secretaria da Receita Federal do Brasil será efetuada depois de verificada a ausência de débitos em nome do sujeito passivo credor perante a Fazenda Nacional. (Redação dada pela Lei nº 12.844, de 2013)

Parágrafo único. Existindo débitos, não parcelados, inclusive inscritos em Dívida Ativa da União, os créditos serão utilizados para quitação desses débitos, observado o seguinte:

I – o valor bruto da restituição ou do ressarcimento será debitado à conta do tributo a que se referir;

II – a parcela utilizada para a quitação de débitos do contribuinte ou responsável será creditada à conta do respectivo tributo.

[18] Artigo 6° A compensação poderá ser efetuada de ofício, nos termos do art. 7° do Decreto-Lei n° 2.287, de 23 de julho de 1986, sempre que a Secretaria da Receita Federal verificar que o titular do direito à restituição ou ao ressarcimento tem débito vencido relativo a qualquer tributo ou contribuição sob sua administração.

[19] BRÉAL, Michel. Ensaio de Semântica: ciência das significações. São Paulo: EDUC, 1992, pág. 39.

Autores

  • é doutora e mestre em Direito Tributário pela PUC-SP, professora em cursos de pós-graduação (Ibet, PUC-SP e Universidade Mackenzie) e sócia fundadora do FH Advogados.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!