Opinião

A governança da ética no ambiente público

Autores

  • Antonio Carlos Vasconcellos Nóbrega

    é coordenador acadêmico do Ibmec-Brasília corregedor-geral da Dataprev e conselheiro da Comissão de Ética Pública. Foi corregedor-geral da União/CGU e conselheiro do Coaf. É mestre em Direito pela Universidade Católica de Brasília.

  • Edson Leonardo Dalescio Sá Telles

    é conselheiro e presidente da Comissão de Ética Pública e Secretário de Controle Interno da Presidência da República ex-coordenador do Regime de Recuperação Fiscal do Estado do Rio de Janeiro corregedor Adjunto da Corregedoria-Geral da União/CGU e especialista em Direito Constitucional pela Universidade Católica de Brasília (UCB).

6 de abril de 2022, 15h02

É certo que o exercício da ética, em sua mais abrangente acepção, é etapa necessária na busca por um ideal civilizatório. A compreensão da noção de bem comum, a adoção de práticas virtuosas no campo social e político e o respeito cotidiano ao próximo são alguns dos desejáveis elementos formadores de uma sociedade moderna.

Muito embora a ideia de ética seja constantemente discutida e tratada no campo filosófico, é justamente no plano concreto que se encontram os maiores desafios. De fato, dar concretude aos valores que reconhecidamente integram o conceito da ética vem sendo tema recorrente para os estudiosos das mais diversas ciências sociais. Apesar do amplo espaço que o assunto sempre ocupou na academia, na política e na sociedade, deve-se reconhecer que ainda resta um longo caminho para que preceitos éticos sejam definitivamente incorporados em nossa realidade.

A profundidade necessária para que a matéria seja adequadamente tratada e a presença de aspectos sociais, culturais, políticos e históricos nesse debate evidenciam as dificuldades para que se possa buscar a efetividade de um ideal de justiça. As experiências pessoais de cada um de nós e o respectivo substrato social em que estamos inseridos podem permitir diferentes concepções sobre a simples ideia do certo e errado, do justo e injusto, com reflexos nas discussões sobre ética e moral.

Não obstante esse cenário, é preciso admitir que o debate sobre a necessidade de padrões de integridade e honestidade ganhou força nas últimas décadas no Brasil e no mundo, com um enfoque, tal como desejável, que vai além do comportamento individual, mas que igualmente se projeta nas organizações públicas e privadas.

Escândalos de corrupção e a real percepção da sociedade dos custos relativos a fraudes e desvios, bem como a falta de tolerância a comportamentos oportunistas e voltados estritamente ao bem-estar individual, acentuaram o debate sobre qual deve ser a conduta esperada do indivíduo, na sua qualidade de cidadão e de integrante de uma coletividade.

Por décadas, uma das estratégias para estimular a adoção de um modelo de conduta correto, probo e honesto lastreava-se em leis e normas de caráter preponderantemente repressivo. Ou seja, regras e disposições legais vigentes geravam uma sanção para aqueles que praticassem atos considerados lesivos ao interesse comum. Tais penalidades, não se limitando à esfera criminal, também podem ser histórica e presentemente identificadas em outros campos do direito (civil, trabalhista etc) ou mesmo em códigos de conduta ou de ética adotados nas mais variadas organizações.

Assim, além da possível reprimenda social a que estão sujeitos aqueles que se comportam de modo contrário aos padrões de integridade esperados do cidadão, um sistema normativo presente em diferentes camadas também acaba por gerar, por meio da previsão de diferentes tipos de sanções, estímulos para que comportamentos inapropriados e indesejados não sejam praticados na comunidade. O advento de um conjunto normativo voltado para a criminalização de condutas e para o aumento de penas segue justamente nessa direção.

Todavia, a experiência e vivência prática de nossa sociedade moderna indicaram a necessidade de ir além. Com efeito, a criação de um ambiente permeado por práticas virtuosas e avesso ao individualismo puramente oportunista passa pela criação de uma estrutura de incentivos positiva, com estímulos reais para a promoção de uma cultura de integridade.

A ética, ainda que permeada por conceitos abstratos e dotados de certa carga de imprecisão, é ferramenta essencial neste caminho. O interesse pelo estudo e aplicação de princípios éticos no cotidiano permite maior clareza sobre qual cenário deva ser buscado para alcançar níveis satisfatórios de equidade e justiça na sociedade. E, nesta mesma toada, são os preceitos da ética os alicerces do arcabouço de ferramentas a serem instituídas e organizadas para estimular boas práticas em organizações e no ambiente de convívio social.

No âmbito corporativo, são diversos os mecanismos de compliance que buscam assegurar a criação e a manutenção de uma postura de conformidade, com leis, regras, regulamentos e valores. Treinamentos contínuos e a criação de manuais, políticas empresariais e códigos voltados ao tema são alguns exemplos.

Também, no cotidiano, são diversos os fatores que podem nos impulsionar para um caminho em harmonia com preceitos éticos. A valorização da virtude cívica, da responsabilidade social e da honestidade por meio de campanhas educacionais e pela conscientização de todos sobre os ganhos conquistados pela comunidade são motivadores importantes nessa missão. A discussão do tema nas escolas e universidades, bem como a força do exemplo também têm reconhecido potencial para colaborar na materialização de uma sociedade mais justa.

Questão relevante e que se coloca como oportuna nesse debate é o fomento à adoção de comportamentos alinhados com a ética e moral em ambiente público. Então, como garantir que em órgãos e entidades da administração, nos mais diferentes níveis de governo, sejam observados e praticados os valores e preceitos alinhados com esse ideal e com o interesse público? Quais são os desafios concretos que devem ser considerados na busca pela criação de uma cultura virtuosa voltada aos agentes públicos? Quais as providências e ferramentas a serem buscadas pelos gestores e pelos ocupantes de cargos políticos?

Pois bem, de início, é essencial recordar que na administração pública, diferentemente do que se verifica no segmento privado, vigora o princípio da supremacia do interesse público, de modo que a atuação de seus agentes deve se pautar, preponderantemente, pelo atendimento às necessidades da coletividade e pela garantia do bem-estar social, com a necessária observância de diversos outros princípios e valores, tais como os da moralidade, equidade, transparência, honestidade e justiça.

Além disso, na administração pública vigora o princípio da legalidade, que rege suas relações externas e internas. E, por consequência, o administrador deverá sempre agir com a observância das regras e normas vigentes, com limitada discricionariedade, não só em seu relacionamento com o cidadão e a comunidade, mas também com os demais servidores públicos.

Se, por um lado, esse conjunto de princípios, de vocação constitucional, evidencia o dever do Estado de pautar sua atuação em valores desejados e esperados pela sociedade, por outro impõe limites e cria contornos normativos definidos para a adoção de medidas para fortalecer esse cenário. Os instrumentos e ferramentas implementados para fomentar boas práticas em órgãos e entidades públicos devem considerar essas características da administração.

Um dos princípios que fundamenta a atuação daqueles que ocupam cargos na administração é o da moralidade, que exige justamente a aderência a padrões de ética e probidade. Assim sendo, a criação e o desenvolvimento dessa cultura de integridade passam pela compreensão, por parte dos agentes públicos, dos conceitos de ética e moral, de forma que, no exercício diário de suas atribuições, fazer o correto seja algo intuitivo e natural.

É imperativo que mecanismos voltados a reprimir e inibir condutas inadequadas, tais como normas e regulamentos que instituem sanções disciplinares, possam coexistir com instrumentos de conscientização e de fomento a condutas virtuosas, que visam fomentar a cultura da probidade na administração. O exercício da ética e da integridade deve ser realizado em razão simplesmente do fato de que é o correto a fazer, e não em virtude do temor de uma medida punitiva.

E é nessa direção que cursos, palestras e seminários sobre o tema têm um relevante papel, pavimentando o caminho para que esse objetivo seja alcançado. O reforço e a promoção dos valores e princípios desejáveis daqueles que exercem funções na máquina pública deve ser feito constantemente, com a abordagem do assunto no plano teórico e na realidade concreta vivenciada por cada agente público. Pretende-se, destarte, assegurar uma reflexão e compreensão do que é o exercício da ética no ambiente público.

Questões relativas a conflitos de interesses igualmente requerem atenção. O enfrentamento a comportamentos oportunos e ao patrimonialismo na administração deve ser constante, de modo que seja possível uma clara separação entre as funções públicas e interesses privados.

Novamente, sem prejuízo de medidas de cunho punitivo, o enfoque preventivo deve ter destaque. A criação de um canal de consulta para servidores, o adequado tratamento normativo da matéria e treinamentos são ferramentas valiosas nessa proposta. Oportuno destacar, no âmbito do governo federal, as funções exercidas pela Comissão de Ética Pública e pela Controladoria-Geral da União, órgãos que, nos termos da Lei nº 12.813/13 (Lei de Conflito de Interesses), têm a atribuição de tratar de questões de conflito e esclarecer dúvidas dos agentes públicos sobre o assunto, com o estabelecimento de parâmetros claros para apreciação de casos concretos que envolvam possíveis conflitos e desvios éticos.

A cobrança da sociedade pela observância de um padrão virtuoso em órgãos e entidades públicos também é um importante reforço no fomento à cultura da ética pública. Para tanto, faz-se indispensável garantir a devida transparência nos atos da administração.

A divulgação dos gastos e despesas dos governos segue nesse caminho, e sua imprescindibilidade foi reforçada pela Lei nº 12.527/11, conhecida como Lei de Acesso à Informação. O controle social é aqui uma notável ferramenta para cobrar uma postura ética e adequada dos gestores no gerenciamento dos recursos do erário.

Além disso, a já citada Lei de Conflito de Interesses trouxe a obrigatoriedade da divulgação das agendas das altas autoridades do Poder Executivo federal, com informações, por exemplo, sobre viagens, diárias recebidas e reuniões realizadas com agentes privados. Trata-se de mais um mecanismo que permite ao cidadão acompanhar a rotina daqueles que exercem funções relevantes na administração, exigindo um padrão elevando de comportamento desses servidores.

Questões relacionadas a assédio, inclusão, acessibilidade e preocupações ambientais também vêm ganhando um merecido espaço no campo público, na esteira do fortalecimento das políticas de ESG (environmental, social and governance) no mundo corporativo. A cobrança social para que essas boas práticas avancem na administração alinha-se com a busca pelo exercício dos princípios universais e fundamentais da ética, com a valorização do próximo, como indivíduo, e do ambiente que o cerca.

Novamente, devem ser implementadas ferramentas para assegurar a conscientização da relevância desse movimento por aqueles que exercem cargos públicos. E, portanto, além da criação de um arcabouço normativo que tutele esses importantes direitos e reprima comportamentos lesivos que os violem, deve-se buscar discutir e debater, por meio de palestras, cursos, códigos e treinamentos, a importância da adoção dessas políticas, e demonstrar sua manifesta relação com a mais pura concepção da ética.

As reflexões expostas nos parágrafos anteriores têm como objetivo expor a nítida correlação entre a boa governança e a defesa do interesse público, com o adequado exercício dos princípios e valores da ética na administração. Não obstante a elevada carga de abstração que permeia os conceitos de ética e moralidade administrativa, é certo que o estímulo à adoção de práticas virtuosas e a valorização de uma conduta íntegra e proba — objetivo que pode ser alcançado por meio de algumas das medidas elencadas no presente artigo — caminha para a construção de um ambiente mais justo e em harmonia com os interesses mais legítimos da sociedade.

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