Território Aduaneiro

O dia em que preço de transferência virou valor aduaneiro

Autor

  • Liziane Angelotti Meira

    é presidente da 3ª Seção do Carf auditora fiscal da Receita Federal professora pesquisadora e coordenadora adjunta do Programa de Mestrado em Políticas Públicas e Governo da FGV-EPPG membro da Academia Internacional de Direito Aduaneiro doutora em Direito Tributário pela PUC-SP mestre em Direito e especialista em Tributação Internacional pela Universidade Harvard e agraciada com o Prêmio Landon H. Gammon Fellow por Harvard.

5 de abril de 2022, 8h00

Esta semana tive a satisfação de concluir um artigo sobre valoração aduaneira com a colega Daniela Floriano [1]. Trabalho intenso, que tomou meus pensamentos aduaneiros! Por isso, vou dedicar a coluna a esse importante tema. Preciso confessar que fui também inspirada pelo artigo escrito pelo colega colunista Leonardo Branco [2], intitulado "Valoração aduaneira e preços de transferência".

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Mas façamos um pouco diferente: partamos de um julgamento do Carf (acórdão nº 3201-009.605) [3], recente, importante, intrincado e controverso. Não faremos abordagem exaustiva do acórdão, mas examinaremos seu ponto principal e que nos interessa: a lide no que concerne à valoração aduaneira.

A questão que fica sobre a mesa é se o preço de transferência pode servir de parâmetro para definir o valor aduaneiro, para compor a base de cálculo dos tributos e multas incidentes na importação. Para entendermos esse posicionamento, necessário retomar aspectos do valor aduaneiro e depará-lo com o preço de transferência.

O valor aduaneiro é utilizado como base de cálculo do imposto sobre a importação, bem como da contribuição para o PIS/Pasep e da Cofins incidentes na importação. O valor aduaneiro também integra a base de cálculo do IPI e do ICMS na importação. Conforme verificamos em artigo anterior, a tributação da importação alcança um valor aproximado de 50% do valor da mercadoria [4].

O valor aduaneiro possui outras importantes funções, serve de parâmetro para várias multas aplicadas na importação, por exemplo, a multa no caso de mercadoria sujeita a pena de perdimento não localizada ou que tiver sido consumida ou revendida, conforme artigo 689, § 1º, do RA. Na verdade, há numerosas multas na importação fixadas com base no valor aduaneiro, conforme verifica-se nos artigos 698, 705, 706, 709, 710, 711, 712 do RA.

E tem mais: o valor aduaneiro também pode servir de critério para a aplicação das medidas de defesa comercial (medidas antidumping, compensatórias ou de salvaguarda).

Assim, para o importador, é muito significativa a correta estipulação do valor aduaneiro, havendo um ponto de tensão em relação ao custo das importações.

Os preços de transferência, por sua vez, foram estabelecidos pela legislação brasileira com referência aos preceitos da OCDE e são aplicados na tributação da renda produzida nas operações comerciais internacionais. A ideia é estabelecer um valor de mercado [5] para essas operações, com o objetivo de que ocorra uma tributação normal nas operações entre pessoas vinculadas ou com pessoas situadas em países de tributação favorecida (os denominados "paraísos fiscais") [6].

Preço de transferência e valor aduaneiro, portanto, são estipulados com base em regras diversas advindas de organismos internacionais diferentes. Apesar de haver uma preocupação no âmbito internacional de aproximar ou harmonizar os institutos, normalmente a aplicação ocorre de forma independente. Ademais, o fato de o valor aduaneiro divergir do preço de transferência não configura em si nenhum problema, no máximo, pode ser um indício que desperte a atenção da fiscalização.

No julgado administrativo em exame nesta coluna, o valor aduaneiro é o parâmetro para a determinação do imposto sobre a importação, do IPI, da contribuição para o PIS-Importação e da Cofins-Importação, assim como dos acréscimos legais e da multa por declaração inexata [7].

Para ilustrar a importância da adequada aferição do valor aduaneiro e das consequências de sua revisão, na situação em análise, conforme consta do julgado publicado no sítio do Carf [8], a fiscalização revisou as importações ocorridas um período de quatro anos. Foram 8.503 importações, no valor total de US$ 236.290.805,55. Considerado o valor, 43% das importações foram realizadas entre exportadores do mesmo grupo econômico.

O Acordo sobre Valoração Aduaneira (AVA) [9] indica seis métodos para aplicação das regras de valoração aduaneira, e a utilização destes deve ser sequencial, de modo que, somente na impossibilidade de se pautar pelos anteriores, deve ser adotado o método subsequente. São eles os seguintes: 1 – método do valor de transação ajustado; 2 – método do valor de transação de produtos idênticos ao importado; 3 – método do valor de transação de produtos similares; 4 – método dedutivo; 5 – método computado; 6 – método dos critérios razoáveis ou método residual [10].

No primeiro método, toma-se como valor aduaneiro o preço efetivamente pago ou a pagar do produto importado, acrescido dos custos de importação (caso não estejam incluídos no preço pago ou a pagar). Esse critério é válido desde que não haja vinculação entre comprador e vendedor, ou, se houver, que tal vinculação não afete o preço efetivamente pago ou a pagar. Trata-se do método mais utilizado.

Na situação sob análise, ocorreu justamente o afastamento do primeiro método, utilizado pelo importador, porque o Fisco entendeu que os preços foram influenciados pela vinculação existente entre o importador e seus fornecedores estrangeiros (devidamente informada na DI pelo importador). A referência da fiscalização para essa conclusão foi justamente o preço de transferência informado na declaração de imposto de renda pela pessoa jurídica.

Muito interessante a discussão que se travou no processo sobre o descarte dos métodos 2º a 5º do AVA, pois a normativa é muito clara: só se pode avançar para o método seguinte se verificada a impossibilidade de aplicar os anteriores. Essa discussão motivou inclusive prévia conversão em diligência (por meio da Resolução 3401-001.799, de 30/01/2019), para detalhamento da existência (ou não) de importações de mercadorias idênticas e similares [11].

De acordo com o segundo método do AVA, o valor de transação de produtos idênticos ao importado deve ser adotado sempre que não puder ser usado o primeiro método, especialmente se houver vinculação entre exportador e importador que afete o preço, ou se, por exemplo, o bem tiver sido objeto de doação, comodato, aluguel, leasing. Observe-se que têm de ser avaliados produtos, além de iguais ao objeto de valoração, produzidos no mesmo país exportador. No caso em análise, o importador informou ao Fisco que não seria possível a utilização do método relativo a mercadorias idênticas porque seus fornecedores vinculados não promovem vendas a outros importadores não vinculados no Brasil e também porque que não havia operações com produtos idênticos por terceiros. O Fisco, por seu turno, afirmou não ter encontrado no Siscomex produtos com descrição semelhante e, em consequência, afastou o segundo método.

Na impossibilidade de usar os métodos anteriores, deve-se passar para o terceiro método: mediante o valor de transação de produtos similares negociados em operação da mesma natureza entre os mesmos países e em data idêntica ou próxima. Também se baseando nas informações do importador e nas suas buscas infrutíferas no Siscomex, o Fisco concluiu que não seria possível usar este método.

O quarto método é o dedutivo, que considera o valor de venda no mercado importador do produto estrangeiro ou de similares, deduzidos os valores agregados após a entrada da mercadoria no país importador. O importador informou que suas importações não eram destinadas à revenda, mas à produção. Assim, o Fisco entendeu que não era aplicável também este método.

O quinto método, denominado método computado, consiste no cálculo do valor aduaneiro mediante a soma do custo (ou valor) dos materiais e da operação de produção dos bens importados. Este método foi rejeitado porque o Fisco entendeu não haver elementos objetivos que permitissem a quantificação dos dados específicos de cada operação e a determinação do que seriam os lucros e despesas gerais usualmente praticados nos países de cada um dos fornecedores em vendas de mercadorias da mesma classe ou espécie.

Realmente, somente diante da impossibilidade de se pautar pelos outros cinco métodos, é permitido passar-se ao sexto método ou método residual (último recurso). Tal impossibilidade deve estar explícita e bem fundamentada na auto de infração. Neste último método, o valor aduaneiro deve ser determinado segundo "critérios razoáveis", condizentes com as disposições gerais constantes do AVA e com o Artigo VII do Acordo Gatt-1994.

Importante destacar que a decisão do Carf no precedente citado, apesar de ter sido tomada por maioria no que se refere ao mérito, foi unânime para afastar as alegações preliminares de nulidade, entre elas a de que o auto de infração seria nulo por ter como objeto a valoração aduaneira e terem sido solicitados documentos referentes a preços de transferência. Perceba-se que todos os conselheiros acolheram, portanto, o argumento de que em uma fiscalização de valoração aduaneira podem ser tomados em conta documentos relativos a preços de transferência.

Não é o objetivo do presente estudo analisar a matéria probatória do referido precedente, cujo trâmite administrativo ainda não esgotou, necessariamente. Mas é relevante tomar em conta a acolhida unânime da tese jurídica de possibilidade de utilização de documentos e dados relativos a preços de transferência na valoração aduaneira. No caso concreto, por maioria, decidiu-se, após o afastamento de cada um dos cinco métodos iniciais de valoração aduaneira, pela utilização do último recurso (sexto método), que abrange "critérios razoáveis", tendo sido considerada razoável a utilização dos preços de transferência declarados pelo importador. Enfatize-se que valoração aduaneira e preços de transferência são temas distintos, afetos a organizações internacionais diferentes, e com propósitos diversos. Mas isso não permite afirmar que é proibido utilizar como valor aduaneiro o montante declarado pelo importador a título de preços de transferência.

Em situações raras e particulares, a combinação da tese jurídica unanimemente acatada no precedente com o resultado da análise dos elementos probatórios do caso concreto (majoritária, em tal precedente) permite um "alinhamento astrológico" (como em um solstício ou um equinócio), que leva à situação descrita no título que elegemos, configurando o dia em que o "preço de transferência virou valor aduaneiro".


[1] O livro já está indo para o prelo e se trata de uma daquelas relevantes obras de Direito Aduaneiro coordenadas por Rosaldo Trevisan. Em breve, teremos oportunidade de conferir! Sobre o tema, também ficam mais algumas a dicas: os artigos de Leonardo Correia Lima Macedo ("Valoração aduaneira: a crise do valor de transação") e de José e Sofia Rijo ("Valor aduaneiro: o regresso do livre arbítrio"), que acabaram de ser publicados nos "Temas Atuais de Direito Aduaneiro III", obra também organizada por Rosaldo Trevisan.

[3] Processo no 11080.724128/2015-21, julgado em 14/12/2021.

[5] Denominado pela doutrina de "arm’s lenght".

[6] A IN RFB 1.037, de 2010 relaciona "países ou dependências com tributação favorecida e regimes fiscais privilegiados".

[7] Multa de 1% do valor aduaneiro, referida no artigo 711, III, do Regulamento Aduaneiro.

[9] O AVA é administrado pela OMC e foi recepcionado no Direito brasileiro pelo Decreto Legislativo nº 30, de 1994, e regulamentado pelo Decreto nº 2.498, de 1998. Este foi revogado pelo Decreto nº 4.543, de 2002, o qual foi revogado pelo Decreto nº 6.759, de 2009, cujos artigos 75 a 89 versam sobre valoração aduaneira.

[10] Conforme MEIRA, Liziane Angelotti. Tributos sobre o Comércio Exterior. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 266/267.

[11] Vencida a relatora na conversão em diligência. O voto vencedor, que fundamenta a conversão, analisa detidamente a relação entre valoração aduaneira e preços de transferência, colacionando substancial doutrina a respeito do tema.

Autores

  • é conselheira e presidente de Turma no Carf, auditora fiscal da Receita Federal, professora, pesquisadora e coordenadora adjunta do Programa de Mestrado em Políticas Públicas e Governo da FGV-EPPG, membro da Academia Internacional de Direito Aduaneiro, doutora em Direito Tributário pela PUC-SP, mestre em Direito e especialista em Tributação Internacional pela Universidade Harvard e agraciada com o Prêmio Landon H. Gammon Fellow por Harvard.

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