Opinião

Consolidação do entendimento do STF sobre precatórios do Fundef/Fundeb

Autor

  • Mário Augusto Silva Araújo

    é advogado mestre em Constituição e Garantia de Direitos e Especialista em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte e professor de Direito Administrativo e Financeiro.

4 de abril de 2022, 15h03

Um problema estruturante que envolve toda a administração pública brasileira é o processo de planejamento das contas, cuja ineficiência resta evidenciada quando da atuação dos órgãos de controle.

Os desafios para a gestão financeira do gasto público estão enraizados em uma matriz de planejamento que se baseia em um diagnóstico sistêmico com dois horizontes distintos, mas que se complementam: o planejamento administrativo e o planejamento fiscal.

O planejamento administrativo envolve a teoria dos direitos fundamentais sociais, que outorga responsabilidade à administração pública de ser provedora de ações institucionais que proporcionem suporte no sentido de serem uma ferramenta apta para o desenvolvimento das pessoas.

Esses arranjos institucionais envolvem um olhar voltado para a moldura pela qual se alicerça os direitos fundamentais prestacionais, que podem ser entendidos como uma perspectiva subjetiva do cidadão em postular ao Estado a prestação de serviços públicos, balizado pela matriz constitucional que determina atuação estatal guiada pelos direitos sociais.

O planejamento fiscal, por sua vez, envolve a estratégia de canalizar o fôlego orçamentário da gestão no afã de custear ações institucionais aptas a proverem direitos, o que obriga o gestor público exercer um juízo de ponderação entre o ter, na perspectiva de possibilidade orçamentária, e o fazer, no horizonte da prestação de políticas públicas.

Nesse sentido o exercício da função administrativa de ordenação de despesas, não é de hoje, vivencia um cenário de escolhas trágicas, que é o raio de atuação do gestor público diante de um cenário de conflitos entre a ampla matriz de direitos fundamentais que deve ofertar e a disponibilização financeira para albergar aquele lençol institucional de prestação de serviços, consoante esclarece o STF nos termos do RE 581352 AgR/AM, de relatoria do ministro Celso de Mello.

A teoria das escolhas trágicas é uma evolução conceitual que possui como fundamento os diálogos teóricos entre a reserva do possível e o mínimo existencial e conforme registra aquela tese do Supremo, "nada mais exprimem senão o estado de tensão dialética entre a necessidade estatal de tornar concretas e reais as ações e prestações de saúde em favor das pessoas, de um lado, e as dificuldades governamentais de viabilizar a alocação de recursos financeiros, sempre tão dramaticamente escassos, de outro".

Embora aquele julgado tenha exemplificado o direito à saúde como matriz diretiva, é preciso estender a sua aplicabilidade para todo o leque prestacional correlato aos direitos fundamentais prestacionais, como é o caso do direito à educação.

No âmbito do financiamento da educação básica pública, o legislador atribuiu uma indexação orçamentária mínima para cobertura de ações intrínsecas à manutenção e desenvolvimento do ensino, prevista no artigo 212, caput, da Constituição Federal: a União não deve aplicar menos de 18% da arrecadação de impostos e os Estados, Distrito Federal e Municípios não menos do que 25%.

Além disso, a Emenda Constitucional nº 108/2020 trouxe à jurisdição constitucional uma fonte específica para o financiamento da educação básica brasileira: o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb), destinado a lastrear ações correlatas à manutenção e desenvolvimento do ensino da educação básica e à remuneração condigna de seus profissionais.

A constitucionalização do Fundeb é um indicativo a respeito da importância em relação à garantia orçamentária para custear ações com o direito à educação. Em uma linha do tempo, o Fundeb inclusive é a reiteração e consolidação de outro custeio específico: o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (Fundef).

Vale destacar que a criação de fundos é uma estratégia de proteção orçamentária que garante a execução do planejamento conforme previsto e evita intempéries que possam resultar na desestruturação financeira do custeio de políticas públicas.

Instrumento estratégico correlato ao Direito Financeiro, os fundos, nos termos do artigo 71 da Lei nº 4.320/1964 são "o produto de receitas especificadas que por lei se vinculam à realização de determinados objetivos ou serviços, facultada a adoção de normas peculiares de aplicação".

Como se vê, a instituição de fundos é uma faculdade atribuída à administração pública para garantir uma destinação específica de lastro financeiro que possibilite o custeio de ações administrativas que pavimentem a concretização da oferta de direitos.

Aquela ferramenta possibilita a oferta de garantia orçamentária para o processo de planejamento fiscal de determinada atuação estatal, como são os casos dos direitos sociais, exemplo do direito à educação, política pública estruturante que envolve a atuação concorrente de todos os entes federados e exige amplo esforço a respeito da capacidade alocativa de recursos.

Como se vê, a estrutura do financiamento da educação básica brasileira outorga vinculação daquele fundo às ações de manutenção e desenvolvimento do ensino e remuneração condigna de profissionais da educação básica pública, o que implica em uma ideia de função republicana alocativa do orçamento público.

No âmbito do direito financeiro a função republicana alocativa pode ser entendida como uma representação normativa a respeito de uma preocupação com lastro financeiro que possibilite a garantia de implementação de políticas públicas estratégicas com ênfase no desenvolvimento do país.

Em outras palavras: ciente de que o estabelecimento de normas constitucionais programáticas que caracterizam os direitos fundamentais sociais é uma obrigação eminentemente abstrata, que pode ser asfixiada pelo leviatã institucional em relação ao custeio de direitos, o próprio legislador elenca algumas fontes específicas como vetores que pavimentam a prestação de políticas públicas específicas para o desenvolvimento do país, como é o caso da educação.

Dessa maneira, a previsão de uma matriz mínima de dotação orçamentária com previsibilidade de cobertura financeira objetiva proporcionar eficiência na condução daquele tipo de política setorial.

Assim, o seu arranjo institucional na perspectiva de destinação de verbas vai além do orçamento geral. A estrutura do financiamento da educação básica pública é um cobertor orçamentário apto a aperfeiçoar o planejamento daquele tipo de política pública por causa da previsibilidade financeira para custear despesas.

É, portanto, uma estratégia constitucional.

O custeio do direito à educação envolve uma lógica de reforço orçamentário que vai ao encontro da ideia de eficiência administrativa por intermédio da especificação de fontes. Essa estratégia possibilita uma política de governança baseada em planejamento contínuo mensurado pelo monitoramento de receitas.

A previsibilidade de receitas decorrente da indexação orçamentária mínima e das verbas correlatas ao Fundeb possibilita uma perspectiva de racionalidade do gasto, o que denota ao direito à educação uma política de governança pautada em uma perspectiva de sustentabilidade fiscal.

A vinculação de receitas à educação é um tema controverso que ao longo do tempo vem sendo pautado pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF), cujo entendimento se consolida na perspectiva de ratificar a intenção do legislador em relação à garantia de cobertura orçamentária vinculada que possibilite o custeio daquele direito.

Inclusive recentemente o STF apreciou novamente uma polêmica que vem sido esclarecida por sua jurisprudência: a destinação de precatórios do Fundef e do Fundeb para custear alguns gastos não previstos naquela sistemática de fundos.

O assunto daqueles precatórios possui gênese em uma ação civil pública promovida pelo Ministério Público Federal (MPF) no Estado de São Paulo "pedindo que a União fosse condenada a ressarcir o Fundef no valor correspondente a toda a diferença entre o valor mínimo definido conforme o critério do artigo 6º, §1º, da Lei do Fundef (Lei 9.424/1996) e aquele fixado em montante inferior, desde o ano de 1998, acrescido dos consectários legais", consoante registra o Tribunal de Contas da União (TCU) [1].

Como as verbas decorrentes do pagamento de precatórios aparentemente não possuem destinação específica, porquanto possuem natureza jurídica extraorçamentária, uma vez que, em tese, fazem parte do orçamento geral, a prática dos gestores públicos até então tem sido destinar aquela verba de maneira discricionária, dissonante do caráter específico dos fundos.

Exemplo disso foi uma estratégia da gestão municipalista em atrelar o pagamento de honorários advocatícios ao êxito em ações que envolvessem as verbas correlatas ao Fundef/Fundeb como objeto, cuja fonte de pagamento era a própria verba precatorial.

Era uma obrigação  cujo pagamento era vinculado ao resultado; ao êxito da demanda.

O raciocínio funciona assim: Se aquelas verbas de precatórios são destinadas aos cofres públicos como instrumento de recomposição orçamentária, logo, estariam desindexadas das destinações específicas previstas pela lei que regulamentava o Fundef e regulamenta o Fundeb.

Ocorre que aquela solução de engenharia orçamentária foi questionada judicialmente sob o argumento de que as verbas oriundas de precatórios do Fundef deveriam ser aplicadas com as finalidades daqueles fundos.

O assunto chegou ao STF, que fixou a tese de que aqueles precatórios não podem ter destinação diferente da natureza jurídica distinta da finalidade estabelecida em lei: "Com efeito, o plenário desta Corte já decidiu diversas vezes que os valores a serem percebidos pelos municípios requerentes não podem ter destinação, ainda que parcial, diversa daquelas compreendidas no âmbito do Fundef, sendo notadamente descabida sua utilização para o pagamento de honorários advocatícios com escritórios particulares de advocacia" [2].

Recentemente ao apreciar o assunto, mas com outro eixo, o de subvinculação de verba precatorial ao pagamento do magistério da educação básica pública, o STF reiterou o seu posicionamento em relação à vinculação.

A tese enfrentada reside no seguinte panorama: a lei do Fundef destinava vinculação de 60% dos seus recursos à despesa com pessoal de profissionais do ensino e como houve direito indenizatório em decorrência de repasses indevidos para menor pela União, o pleito que se tinha era de que no pagamento via precatório deveria ser destinada aquela subvinculação.

Ora, se os professores à época do repasse a menor não receberam o que lhe era devido, logo, deveriam, em tese, receber a devida compensação com o posterior reconhecimento judicial do pagamento indevido mediante a condenação à União do pagamento de precatórios.

Mas o Supremo entende que não. No julgamento da Ação Direta de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 528/DF (ADPF 528) o STF pontuou que aquelas verbas precatórias devem guardar pertinência temática com a sua previsão constitucional, com exceção dos juros moratórios, que podem ter destinação para o pagamento de honorários advocatícios.

Sob o argumento de que os juros moratórios possuem natureza indenizatória, o STF pontuou que como aquele tipo de verba não aumenta o patrimônio do credor e que os juros de mora possuem natureza autônoma em relação à natureza jurídica da verba em atraso, é possível estabelecer destinação dos juros moratórios para o pagamento de honorários.

Como se vê, o custeio das ações de manutenção e desenvolvimento do ensino, bem como da remuneração condigna dos profissionais da educação básica por intermédio de um fundo específico é uma preocupação do legislador constituinte ratificada pelo entendimento jurisprudencial do STF.

Dessa forma é possível afirmar que o financiamento da educação básica é uma política pública específica que objetiva garantir condições orçamentárias para o desenvolvimento de políticas que possibilitem condições de infraestrutura e pagamento de pessoal, tão estratégicas no âmbito da gestão pública.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. STP 741/AL. Relatoria do ministro Presidente Luiz Fux
________________________________ RE 581352 AgR/AM. Relatoria do ministro Celso de Mello.
___________________________________ ADPF 528/DF. Relatoria do ministro Alexandre de Moraes.
https://contas.tcu.gov.br/ords/f?p=FUNDEF:inicio

[1] https://contas.tcu.gov.br/ords/f?p=FUNDEF inicio acesso em 28/03/2022.

[2] STP 741/AL. Relatoria do ministro presidente Luiz Fux. Data do Julgamento: 08/03/2021. Data da Publicação: 09/03/2021.

Autores

  • é advogado, mestre em Constituição e Garantia de Direitos, especialista em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte e professor de Direito Administrativo e Financeiro.

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