Defesa da Concorrência

Condutas de exclusividade na mira do Cade

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4 de abril de 2022, 13h09

A prática de exclusividade anticompetitiva é a conduta unilateral mais investigada e punida pelo Cade historicamente, particularmente após a promulgação da nova Lei Antitruste em 2011. É o que demonstra relatório do Instituto Brasileiro de Estudos de Concorrência, Consumo e Comércio Internacional (Ibrac) recentemente apresentado pelo instituto [1], como resultado de um minucioso estudo de todos os procedimentos administrativos que já tramitaram no Cade envolvendo condutas unilaterais até recentemente. Se considerados os 610 processos analisados pelo grupo técnico responsável, cerca de 26% são investigações de acordos de exclusividade. Analisando apenas os processos sob a Lei nº 12.529/2011, esse percentual é ainda maior, de aproximadamente 36%.

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Trata-se de uma representatividade tão elevada que o número por si só deveria servir como um indicativo às empresas brasileiras de cuidado com essa espécie contratual, que embora esteja longe de ser um ilícito per se, e na realidade seja uma cláusula comum e justificável em diversas espécies de arranjos, em situações concorrencialmente sensíveis pode gerar preocupações.

Entre as várias condutas unilaterais de caráter potencialmente exclusionário, a exclusividade talvez seja aquela que expresse de forma mais intuitiva os efeitos anticompetitivos eventualmente derivados dessa prática, quando o contexto fático assim o permite. Na situação clássica, se um agente com elevada posição dominante no fornecimento de um dado insumo, do qual o mercado depende fortemente, resolve conferir uma exclusividade de fornecimento a um agente específico, os concorrentes desse agente terão dificuldade de se manter no mercado de forma competitiva. Outro exemplo clássico ocorre quando o agente dominante, detentor de um insumo do qual todos dependem, exige, como contrapartida ao fornecimento do valioso produto, que os adquirentes comprem o insumo somente dele; situação na qual pode tornar-se difícil que concorrentes desse agente dominante entrem e compitam adequadamente no mercado, dado que terão poucas opções de clientes para acessar.

Essa aparente facilidade de visualização dos efeitos anticompetitivos potenciais da conduta talvez seja uma das explicações para o elevado número de investigações antitruste relacionadas a cláusulas de exclusividade. Outra explicação tem a ver com a usual facilidade da prova: no mais das vezes, uma cláusula contratual expressa (muito embora o Cade já tenha condenado, inclusive, exclusividades "de fato", não necessariamente previstas em um contrato).

Dito isso, a verdade é que a constatação de efeitos anticompetitivos derivados de condutas de exclusividade está longe de ser óbvia ou fácil. Pelo contrário, na maior parte dos contextos cláusulas de exclusividade são perfeitamente lícitas, usuais, justificáveis e, muitas vezes, pró-competitivas e geradoras de eficiências. Exclusividades são comumente justificadas por uma série de razões legítimas, como proteção e incentivos a investimentos. Ademais, nos casos (majoritários) em que as partes contratantes não detenham poder de mercado elevado, efeitos concorrenciais são inócuos e inexpressivos. Finalmente, mesmo em contextos que envolvem empresas com participações de mercado significativas, uma série de fatores pode manter níveis de concorrência elevados e suficientes no mercado. Intervir erroneamente em relações de exclusividade legítimas pode, portanto, gerar sérias ineficiências.

Não por outro motivo, o Cade e outras autoridades antitruste mundo afora analisam condutas de exclusividade utilizando a regra da razão, que avalia a efetiva potencialidade de efeitos anticompetitivos da prática antes de condená-la. A jurisprudência do Cade evoluiu para essa metodologia de análise: existência de posição dominante, verificação dos reais ou potenciais efeitos anticompetitivos e das potenciais eficiências da exclusividade, bem como avaliação de justificativas razoáveis para a prática no caso concreto.

Não obstante, o nível de subjetividade e variâncias de rigor com a avaliação de cada um desses elementos dá grande margem à autoridade para adotar políticas mais ou menos permissivas em relação às condutas, e tudo indica que o Cade, que embora sempre tenha avaliado arranjos de exclusividade com rigor, parece ter se tornado ainda mais rígido em tempos recentes.

Marcante nessa virada é o julgado que em 2018 condenou exclusividade na utilização de freezers para armazenamento de sorvetes, atribuída à Unilever [2]. Nesse caso, o Tribunal do Cade condenou a empresa pelas práticas de exclusividade de vendas e merchandising, contrariando a opinião da Superintendência-Geral pelo arquivamento, e demonstrando como tal avaliação pode ser controversa. Nesse caso, o principal elemento que levou à condenação foi a suposta constatação da existência de poder de mercado e seus efeitos potenciais. Mas o diabo está nos detalhes. A maior ou menor participação de mercado variava significativamente a depender do mercado relevante adotado. Constatou-se que os acordos de exclusividade não atingiam um percentual significativo dos estabelecimentos, mas segundo o voto condutor, seriam os "melhores" pontos de venda. A mensuração aprofundada de efetivos efeitos derivados da conduta, sobretudo de fechamento de mercado, que supostamente ocorria há anos, foi tomada como de difícil aferição, havendo essencialmente uma presunção de efeitos (potenciais) com base na suposta posição dominante da empresa. Em suma, sob vários ângulos, a condenação dependeu da adoção da cumulação de posicionamentos bastante rigorosos.

O acirramento de uma política agressiva contra condutas de exclusividade se mostrou de forma ainda mais intensa a partir de 2019, com o expressivo aumento da concessão de medidas preventivas em face de denúncias dessa natureza, expediente raro na prática da autoridade antitruste até então. Nos cinco últimos casos significativos instaurados pela Superintendência-Geral do Cade envolvendo condutas de exclusividade  Gympass [3]; Sem-Parar/Conectcar [4]; Ifood [5]; Clickbus [6]; e Hemobancos [7] , em quatro deles houve adoção de medida preventiva suspendendo a conduta em todo ou em parte, antes do seguimento de uma análise de mérito final.

As medidas variam em grau de vedação imposta, mas no todo são bastante significativas, exigindo em geral que nenhum novo contrato celebrado tenha exclusividade e até mesmo que contratos atuais, quando renovados devam retirar essa cláusula.

Note-se nessa lista de casos, também, outro padrão: quatro dos cinco envolvem mercados digitais, outro recente alvo de maior rigor por parte de algumas autoridades antitruste, e que ao menos nesses casos agora transparece no Brasil, formando uma combinação potencialmente explosiva, se os recentes precedentes da autoridade concorrencial brasileira forem um indicativo disso: cláusula de exclusividade em plataformas digitais.

Sobre a adoção de medidas preventivas sucessivas focadas em casos de exclusividade, mais provável do que presumir que o Cade criou métodos para analisar profundamente com maior velocidade todos os elementos da regra da razão que envolvem exames de condutas unilaterais, nos parece ser mais razoável assumir que a autoridade passou de fato a adotar uma postura muito mais agressiva em relação ao que deve ser a potencialidade mínima de risco para justificar a medida, e muito mais rigorosa em relação à presunção de prejuízos de condutas de exclusividade, notadamente, talvez, em mercados digitais.


[1] O "Relatório do Trabalho de Mapeamento de Decisões em Condutas Unilaterais" foi apresentado em debate promovido pelo Ibrac em 11 de março de 2022. O vídeo completo do evento encontra-se disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=abv73OuyTWQ >

[2] Processo Administrativo nº 08012.007423/2006-27.

[3] Inquérito Administrativo nº 08700.004136/2020-65.

[4] Inquérito Administrativo nº 08700.000989/2019-94.

[5] Inquérito Administrativo nº 08700.004588/2020-47.

[6] Inquérito Administrativo nº 08700.004318/2018-11.

[7] Inquérito Administrativo nº 08700.000381/2020-01.

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