Opinião

Delitos de opinião não vão mais permitir aplicação de prisão preventiva

Autor

  • César Dario Mariano da Silva

    é procurador de Justiça (MP-SP) mestre em Direito das Relações Sociais (PUC-SP) especialista em Direito Penal (ESMP-SP) professor e palestrante autor de diversas obras jurídicas dentre elas: Comentários à Lei de Execução Penal Manual de Direito Penal Lei de Drogas Comentada Estatuto do Desarmamento Provas Ilícitas e Tutela Penal da Intimidade publicadas pela Editora Juruá.

4 de abril de 2022, 11h10

A Lei nº 14.197, de 1º de setembro de 2021, que revogou a Lei de Segurança Nacional, cuida de delitos que atentam contra o Estado democrático de Direito em seu sentido mais amplo.

A nova lei, que inclui o Título XII no Código Penal, foi publicada no dia 2 de setembro de 2021, e contou com diversos vetos presidenciais, que serão apreciados pelo Congresso brevemente, como tem ocorrido atualmente.   

Ela impactará sensivelmente em diversos processos e investigações em andamento, de gente processada ou investigada por crimes definidos na Lei de Segurança Nacional, atualmente revogada expressamente.

Isso porque os delitos de opinião, aqueles cometidos por escrito ou palavra (artigos 23 e 26), deixam de ser tipificados na Lei de Segurança Nacional e passam a ser crimes comuns, descritos no Código Penal (calúnia, difamação e incitação ao crime). As penas para tais infrações não são severas e, por isso, passíveis de acordo de não persecução penal e até mesmo de transação penal para a maioria das figuras típicas, de competência do Juizado Especial Criminal.

Mesmo proposta a ação penal por faltarem os requisitos para esses benefícios pré-processuais, ainda assim são delitos passíveis de suspensão condicional do processo (maioria das hipóteses) e, no caso de condenação, de substituição da pena prisional por restritiva de direitos ou aplicação da suspensão condicional da pena (sursis).

Inclusive, a novel legislação incluiu parágrafo único no artigo 286 do Código Penal, que traz conduta que era prevista como crime contra a segurança nacional pela Lei nº 7.170/1983 (artigo 23, inciso II), expressamente revogada.

Uma das imputações mais comuns contra os jornalistas e parlamentares processados ou investigados é justamente por esse dispositivo, que continua a vigorar, mas com definição típica prevista agora no Código Penal, ocorrendo a denominada continuidade normativa-típica.

De acordo com o novo dispositivo, será punido com a mesma pena da figura fundamental (artigo 286 do CP) aquele que incitar, publicamente, não a um delito qualquer, mas à animosidade entre as Forças Armadas, ou entre estas e os Poderes da República (Executivo, Legislativo e Judiciário), as instituições civis ou a sociedade. A pena cominada é de três a seis meses de detenção ou multa.

Para esse delito é cabível acordo de não persecução penal, transação penal e suspensão condicional do processo. É, portanto, muito pouco provável a instauração de processo criminal e a imposição de pena de prisão, até porque, advindo condenação, é passível de substituição da pena prisional por restrições de direitos e suspensão condicional da pena (sursis).

Como norma de encerramento do novo Título, o artigo 359-U do Código Penal dispõe sobre a liberdade de expressão e de manifestação do pensamento, direito fundamental e já consagrado na Constituição Federal (artigo 5º, IV), tão vilipendiado na atualidade. Dispõe a norma que: "Não constitui crime previsto neste Título a manifestação crítica aos poderes constitucionais nem a atividade jornalística ou a reivindicação de direitos e garantias constitucionais por meio de passeatas, de reuniões, de greves, de aglomerações ou de qualquer outra forma de manifestação política com propósitos sociais".

O direito à livre manifestação do pensamento consiste justamente em poder dizer o que pensa sobre algo ou alguém, inclusive poderes constituídos e seus agentes, sem que importe crime (atipicidade formal e material). Esta regra constitucional é fruto de um país democrático e uma lei, que tutela justamente o Estado democrático de Direito, nunca poderia punir a manifestação do pensamento, que é um dos seus pilares.

Qualquer pessoa ou Instituição, não estando livre os chefes de Estado, de Poder e outros agentes públicos e políticos, podem ser criticados, cabendo ao Poder Judiciário realizar juízo de ponderação de valores para chegar à conclusão sobre a natureza jurídica da crítica (exercício de um direito ou crime), observando que medidas desproporcionais devem ser coibidas.

Do mesmo modo, não é possível criminalizar as atividades jornalísticas e de comunicação, que também possuem fundamento constitucional. O artigo 5º, inciso XI, da Magna Carta, dispõe ser livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença. No mesmo sentido, o disposto no artigo 220 da Carta Constitucional, que veda qualquer tipo de restrição à manifestação do pensamento, à criação, à expressão e à informação, sob qualquer forma, processo ou veículo, observadas outras regras constitucionais, que devem conviver harmonicamente sem que haja qualquer tipo de excesso. E complementa o dispositivo seu §2º, que veda qualquer espécie de censura de natureza política, ideológica e artística. 

Por fim, reivindicações de direitos e garantias constitucionais, por meio de passeatas populares, reuniões, greves ou quaisquer outras formas de manifestações políticas com propósitos sociais, não podem ser consideradas infrações penais. Nunca um direito protegido pela própria Constituição Federal pode ser criminalizado, o que seria paradoxal, ilógico e certamente inconstitucional.

Claro que esses direitos, como quaisquer outros, não são absolutos e, quando ultrapassados seus limites, seu indevido exercício pode constituir infração, inclusive de natureza penal.

Aliás, cuidando-se de norma penal benéfica ao acusado ou investigado, deve ser aplicada analogicamente a outros tipos penais que punem os delitos de opinião, como os contra a honra (artigos 138, 139 e 140 do CP) e incitação ao crime (artigo 286 do CP).

Com o novo regramento, que já se encontra em vigor, muito dificilmente haverá condenação à pena privativa de liberdade para as pessoas presas e/ou processadas em razão de delitos de opinião até então capitulados na Lei de Segurança Nacional, que passam a ser previstos no Código Penal.

Tal intercorrência fatalmente resultará nova análise da situação processual de cada um dos presos (ou com mandado de prisão expedido), já que a maioria dos delitos imputados é de opinião, além de outro igualmente leve (ameaça), punidos com penas amenas, lembrando que norma penal mais benéfica sempre retroage em favor do acusado.

Não há sentido e nem é permitido pelo Código de Processo Penal, exceto se o delito envolver violência doméstica ou familiar contra a mulher, criança, adolescente, idoso, enfermo ou pessoa com deficiência, para assegurar a execução das medidas protetivas de urgência, ou quando o agente não é identificado ou reincidente em crime doloso, decretar-se a prisão preventiva em crimes cuja pena máxima não exceda a quatro anos, notadamente se, mesmo advindo a condenação, não resultar no cumprimento de pena de prisão, mas de restritiva de direitos ou aplicação da suspensão condicional da pena (sursis).

Enfim, as novas regras implicam necessidade de reanálise de todos os processos e investigações em andamento em que a imputação seja pela prática de crime contra a segurança nacional, a fim de que as normas penais mais benéficas sejam aplicadas aos acusados ou investigados, o que poderá ensejar a concessão de liberdade provisória ou revogação da prisão preventiva, com ou sem a aplicação de outras medidas cautelares, a depender do caso concreto.

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