Opinião

Lei 13.964/2019 e as medidas cautelares decretadas de ofício

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4 de abril de 2022, 9h19

Antes da Lei 13.964/2019, vigorava no Código de Processo Penal o dispositivo legal que previa a decretação de medida cautelar de ofício pelo juiz; após a entrada em vigor da lei — e isso já faz mais de dois anos — não mais se divisa tal cabimento. Todavia, são ora trazidas três situações recentes distintas e que ilustram com indiscutível evidência os mesmos entraves que obstam sedimentar a nova ordem para o aperfeiçoamento do processo penal de cunho puramente acusatório. Não se ocupa aqui de validar ou não opção de julgador, mas de estreito alinhamento com a estrutura acusatória norteadora de um processo penal democrático em que se funda e com a qual se confunde.

Em julgado do Superior Tribunal de Justiça — RHC nº 161.888/MG —, o ministro Antônio Saldanha Palheiro concedeu liminarmente a ordem para relaxar prisão preventiva que derivou de conversão da prisão em flagrante — furto simples — decretada ex officio pelo magistrado por ocasião de audiência de custódia. Consta que, irresignada, a defesa impetrou HC com pedido de liminar perante o Tribunal de Justiça de Minas Gerais pugnando pela ilegalidade do ato que contrariou as disposições dos artigos 310 e 311 do CPP, sendo indeferida a liminar e denegada a ordem por maioria de votos com o fundamento de não ser caso de ilegalidade, porquanto é o juiz que pode converter a prisão em flagrante em preventiva e ainda que sem prévio requerimento da autoridade policial ou do Ministério Público, ao alcance do previsto no artigo 310, inciso II, do CPP.

Sobre o tema e na seara do STJ — RHC 145225/RO —, o ministro Rogerio Schietti Cruz manifestou seu entendimento de que, na hipótese de decretação de medida cautelar mais gravosa que a requerida pelo Ministério Público, ainda assim fica afastada a caracterização de atuação de ofício pelo magistrado. No caso, o réu foi preso em flagrante por crimes cometidos no contexto de violência doméstica contra a mulher e tal prisão foi convertida em preventiva pelo juiz em audiência de custódia, embora o MP tenha requerido na ocasião a aplicação de outras medidas cautelares diversas da prisão. Assim e na visão do ministro, o juiz não está vinculado ao pedido formulado pelo órgão acusador, porquanto, a contrário senso, seria "…transformar o julgador em mero chancelador de suas manifestações…" [1].

Por derradeiro, Habeas Corpus em favor de paciente alvo de quebra de sigilo telefônico determinado pelo juízo de primeiro grau sem requerimento da autoridade policial ou do MP e julgado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo — HC 2200070-67.2021.8.26.0000 —, cujo relator, desembargador Marcelo Semer, considerou como prova ilícita o laudo pericial dos aparelhos celulares do acusado que fora produzido a partir de decisão que contraria o sistema acusatório vigente, porquanto verificada a ausência de provocação da autoridade policial ou do órgão acusador, ante o que determinou-se o desentranhamento daquela prova e de outras dela eventualmente derivadas para o correto saneamento do processo. HC concedido por maioria [2].

Depreende-se dos casos trazidos, em maior ou menor escala, a observação da relativização, da hipótese de atuação ex officio do julgador que, ora se pautando pela interpretação seletiva dos dispositivos alcançados pelas alterações promovidas pela lei 13.964/2019, ora se afastando simples e completamente dos contornos intrínsecos aos mandos do próprio CPP, quedou-se por vislumbrar a possibilidade de assim proceder de ofício, movimento esse que sugere o apartamento da melhor interpretação da lei processual penal ungida pelas garantias constitucionais, desempenho que se apresenta como variação e resquício de um sistema inquisitorial ainda não totalmente sepulto e que de tal modo demonstra anseio em ressuscitá-lo.

Quando da alteração do artigo 282, do CPP, promovida pela lei 13.964/2019, cumpre destacar que a nova redação desse dispositivo — que se insere no Título IX, Da Prisão, das Medidas Cautelares e da Liberdade Provisória, e no seu Capítulo I, das Disposições Gerais —, pela posição topológica que ocupa e, por evidente, pelo conteúdo mandatário inerente a sua própria característica de dispositivo geral, quanto mais pelo conteúdo de seu § 2º, que se envolve e se preocupa com a necessidade de manifestação prévia das partes, ou por representação da autoridade policial ou requerimento do Ministério Público para a decretação de medidas cautelares pelo juiz, se alinha total e diretamente com o conceito de sistema acusatório estruturado, alicerçado nos dispositivos do artigo 129, incisos I e VIII, da Constituição da República, o que estabelece de forma translúcida a quem cabe a ação penal pública; e, por conseguinte, os limites de atuação de quem obra como defesa; da mesma forma, a atuação daquele que presta a jurisdição conforme suas atribuições funcionais e dentro das balizas do que pede o órgão acusador, bem como do que pleiteia o elemento defensor. Em bom português: cada um no seu quadrado!

A interpretação de todo e qualquer dispositivo do Título IX do CPP em consonância com as disposições do seu Capítulo I, mormente quando se depare com circunstâncias sujeitas às disposições do Art. 310 (do Capítulo II, Da Prisão em Flagrante) ou do artigo 312 (do Capítulo III, da Prisão Preventiva), cabendo não só, mas principalmente, conjugarem-se aqueles conteúdos ao que prevê o artigo 282, sugere mostrar-se razoável e como a boa técnica de hermenêutica para assegurar, para buscar a escorreita aplicação do direito processual penal a toda e qualquer medida cautelar, prevista ou não no âmbito do CPP. E ao reforço da estrutura acusatória inaugurada pela CRFB/88 e convalidada pelas disposições da lei 13.964/2019, inserem-se as alterações trazidas pelo artigo 3º-A, do CPP, — embora de efeitos suspensos em razão das aventadas dificuldades de ordem prática para implementação do juiz das garantias — ADI 6299 —, que consagram com firmeza e objetividade a figura de um processo penal essencialmente democrático, pautado pelos direitos e garantias fundamentais amalgamados e consolidados em nossa Constituição, cuja suspensão circunstancial não o podem relegar ao escaninho da indiferença a ponto de neutralizá-lo, porquanto não se discute a validade de seu conteúdo. Ei-lo:

Artigo 3º-A. O processo penal terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão acusador.

Admitir a atuação do juiz fazendo as vezes de Ministério Público ou mesmo interpretar com leniência dispositivos legais que o permitiriam obrar de ofício é algo que se estreita com uma espécie de versão mal adaptada, ampliada e deturpada da ideia por si só desgastada de in dubio pro societate que permeia alguns posicionamentos eventualmente menos alinhados com o arranjo democrático vigente. Daí que o sistema acusatório urge seja convalidado como fundamental vetor, orientador maior do processo penal democrático, garantista, sabido que é tratar-se de um modo imperfeito de conduzir ao ideal do justo, porque permeado de falhas tão próprias das relações humanas, mas cujos fundamentos se orientam válidos e como forma de preservar direitos e garantias como regra, ainda que se tenha que conviver com sacrifícios excepcionais que possam inclusive perpassar pela órbita da impunidade de culpados.

 


[1] https://www.conjur.com.br/2022-mar-10/cautelar-grave-requerida-mp-nao-atuacao-oficio

[2] https://www.conjur.com.br/2022-fev-15/tj-sp-anula-prova-produzida-oficio-juiz-primeira-instancia

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