Processo Tributário

Limites do negócio jurídico processual: como avaliá-los?

Autor

  • Paulo Cesar Conrado

    é juiz federal em São Paulo professor do Curso de Especialização do Ibet professor e coordenador do curso e do grupo de estudos do "Processo tributário analítico" do Ibet e professor do programa de mestrado profissional da FGV Direito-SP.

3 de abril de 2022, 8h00

O negócio jurídico processual (NJP) é uma das figuras que, marcadamente vinculada ao ambiente de consensualidade posto em cena pelo Código de Processo Civil de 2015, ainda requisita um certo nível de experimentação prática para que se aproxime de nossa intimidade.

Natural: do paradigma ortodoxo, de litigiosidade mais que exacerbada, não migramos para a plena compreensão de instrumentos desse timbre de uma hora para outra.

Teoricamente — mas falando de forma bem direta —, podemos defini-lo como meio que customiza, segundo a vontade das partes, a linha de desenvolvimento do processo, numa espécie de substituição individualizada do rito legal pelo rito "contratual".

Atraído para o plano tributário por uma série de normativos que tentam objetivar sua incidência nas causas fazendárias, o NJP tem sido constantemente aplicado pela União (à luz das Portarias PGFN 360 e 742, ambas de 2018) e outras entidades, como o estado de São Paulo, que também tem seus normativos sobre o tema caminhando a pleno vapor (Portaria SUBGCTF 14/2021).

A despeito da existência desses normativos — ou até mesmo por sua presença —, muitas são as questões que seguem "incomodando" os usuários (ou potenciais usuários) do instituto, sobretudo quanto aos limites que o contornam em seu emprego prático.

Tomemos pé que esses incômodos não decorrem propriamente da "juventude" do NJP, mas da relativa incompreensão de seu perfil — daí a necessidade (mencionamos de início) de experimentação no mundo concreto; é ela que nos fará compreender o instituto.

A legislação processual geral não responde (e nem pode responder) as infindáveis perguntas que a vida real nos apresenta — geral que é, não é seu escopo desenhar denotativamente, a não ser que assim desejasse, os limites de um instituto como o NJP, cuja aplicação, observadas as diretrizes do sistema global, deve ser o mais alargado possível.

Os normativos fazendários, a seu turno, estão naturalmente muito mais afeitos à ideia de padronização de práticas internas (o que é sempre desejável) do que à definição do conteúdo, em si, dos NJPs que seriam realizáveis pela Fazenda em matéria tributária.

Resultado: nem em uma, nem em outra das camadas legislativas mencionadas, encontramos a solução para os tais "incômodos" a que nos que nos referimos. E daí sobrevém, por derivação, uma outra questão ainda mais aflitiva, mas cujo enfrentamento é importante para que avancemos para a "boa prática": se não conhecemos os limites do instituto, como fazê-lo operativo? Usando outros termos: esse estado de coisas relativamente "aberto" não nos levaria a um potencial (e indesejável) desuso do NJP?

Nossa intenção, aqui, é confrontar, de cara, essas impressões "ruins" que a dúvida sobre os limites práticos do NJP (mormente o tributário) pode nos deixar, requalificando-as: não são "ruins"; são impressões que não devem ser tratadas como uma patologia, mas como algo "normal".

Tenhamos em mira, primeiro de tudo, que um instrumento que tem a missão de customizar (1) segundo as características do caso concreto e (2) a partir da consensual posição das partes integrantes desse mesmo caso, nunca poderia ser visto como algo absolutamente prêt-a-porter.

A customização, elemento ínsito ao NJP, se dá no óbvio plano da concretude, operando, portanto, sobre dimensão individualizada, em que as nuances, as particularidades, as marcas históricas de cada caso devem sempre falar mais alto. Tudo normal!

Radicalizando, alguém poderia cogitar: "então, tudo é possível!". Por certo que não; há de se identificar, sempre, um ponto em que a aplicabilidade do NJP cessa, mormente em ambiente fazendário. O fato, porém, é que esse ponto está inscrito em pedra, como regra taxativa, algoritmicamente aplicável.

Pois é (ou deve ser) justamente do cenário de customização procedimental que essas bordas devem ser identificadas, o que quer significar, em suma, duas coisas: (1) que os limites do NJP, inclusive e principalmente o fazendário, devem ser buscados no próprio caso, e (2) uma mesma convenção pode ser concretamente possível num caso, mas em outro, não.

Pensemos no NJP sobre oferecimento de garantia; acresçamos um dado: o que se deseja é a formalização consensual da penhora sobre um ativo legalmente classificável como bem de família. Pode a Fazenda "assumir" essa convenção?

Seguida a linha que vimos sustentando, diríamos: sim e não, depende do caso.

Se estamos falando de bem de família que serve de moradia apenas do devedor, poderíamos inferir que ele está abrindo mão da proteção legal em nome de uma vantagem que lhe é mais interessante (aspecto que poderia vir inserido, inclusive, como cláusula no NJP). Sem nenhum problema, portanto.

Agora, pensemos que, além do devedor, o mesmo imóvel serve de moradia para um núcleo familiar plural — cônjuge, filhos etc. O NJP, nessa situação, estaria dispondo sobre aspecto processual (penhora) fora dos limites legais (impenhorabilidade) — o que, em princípio, não seria um problema, afinal, o NJP serve para isso mesmo —, mas de modo a abranger mais do que o plano do processo concreto e suas partes: estariam sendo atingidos terceiros e a proteção legal que os recobre. Aqui, embora o conteúdo do NJP seja o mesmo, a cena oferecida pelo caso cria um limite, um impeditivo.

Evidentemente que a extensão subjetiva dos efeitos do NJP (hipótese descrita) não configura a única preocupação que devemos ter quando nos perguntamos sobre se é possível a inserção desse ou daquele tipo de convenção in concreto. Usamos esse ponto (da extensão subjetiva, repita-se) apenas como exemplo (fazendo-o genericamente, por óbvio) para poder reafirmar ao final: a falta de uma lista de critérios fechados, apontando para os limites do NJP não é um defeito do sistema, mas uma derivação do instrumento de que tratamos, a ser resolvida segundo os contornos que o caso posto revela.

E talvez aí esteja o melhor dos lados do NJP — assim como de outros tantos instrumentos que operam sob o signo da consensualidade: sua plasticidade. Enaltecemo-la!

Autores

  • é juiz federal em São Paulo, professor do curso de especialização do Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet), professor e coordenador do curso e do grupo de estudos em "Processo Tributário Analítico" do Ibet e professor do programa de mestrado profissional da FGV Direito-SP.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!