Opinião

Segurador sub-rogado não se submete à eleição de foro em contrato de transporte

Autor

  • Paulo Henrique Cremoneze

    é advogado sócio fundador de Machado Cremoneze Lima e Gotas Advogados Associados mestre em Direito Internacional pela Universidade Católica de Santos especialista em Direito dos Seguros em Contratos e Danos e em Direito Processual Civil e Arbitragem pela Universidade de Salamanca professor de Direito dos Seguros membro efetivo da Academia Nacional de Seguros e Previdência da Associação Internacional de Direito dos Seguros (Aida-Brasil) do Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp) da Ius Civile Salmanticense (Espanha) vice-presidente da União dos Juristas Católicos de São Paulo (Ujucasp) presidente do Instituto de Direito dos Transportes (IDTBrasil) membro do Clube Internacional de Seguros de Transportes (Cist) autor de livros de Direito dos Transportes e Direitos dos Seguros associado da Sociedade Visconde de São Leopoldo e laureado pela OAB-Santos pelo exercício ético e exemplar da profissão.

3 de abril de 2022, 9h11

No último dia 25 de março, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça decidiu que o segurador sub-rogado não se submete à cláusula de eleição de foro firmada entre o segurado, dono da carga, e o transportador, causador de dano.

Impossível não conter a alegria, já que se trata de um dos meus temas preferidos, acadêmica e profissionalmente.

Escrevi muitos artigos e ensaios a respeito disso, comentando decisões judiciais e argumentos doutrinários. Foi o tema que escolhi para a titulação de especialista em Contratos e Danos pela Universidade de Salamanca, Espanha.

Logo, é um tema do meu cotidiano, sobre o qual me julgo apto a opinar com alguma substância.

A rigor entendo que a cláusula de eleição de foro em contrato internacional de transporte de carga é ilegal, porque abusiva.

Raramente é negociada de forma livre e desimpedida entre as partes contratantes. Sendo o contrato de transporte tipicamente de adesão, o transportador impõe o foro de sua vontade ao embarcador e ao consignatário da carga.

Então, o foro não é eleito, porém imposto. E como não há renúncia tácita ao pleno exercício da garantia fundamental de acesso à jurisdição, tenho que a cláusula de imposição (a palavra correta é esta) de foro estrangeiro é ilegal e, antes, inconstitucional.

Mas, ainda que eventualmente negociada pelo dono da carga, formal e expressamente aceita, é inoponível ao segurador sub-rogado por não ser parte do contrato de transporte e porque a lei determina ser ineficaz qualquer ato praticado pelo segurado com outrem que venha de algum modo a prejudicar o pleno exercício do direito de regresso.

Insisto: nada pode prejudicar o direito de regresso do segurador-sub-rogado, muito menos lhe retirar, sem sua concordância prévia, a garantia fundamental de acesso à jurisdição.

Mais do que um direito, a busca do ressarcimento é dever do segurador sub-rogado, ato de lealdade ao mútuo, ao colégio de segurados que representa. E, ainda, considerando a singular natureza do negócio de seguro, é ato revestido de elevada função social, já que a todos aproveita mantê-lo saudável.

Também insisto dizer que, ao pagar a indenização de seguro a quem de direito e buscar o ressarcimento em regresso, o desenho jurídico do caso concreto muda completamente.

O que quero dizer com isso?

Sai de cena, por exemplo, o contrato internacional de transporte de carga, as normas e convenções internacionais, o Direito dos Transportes, o Direito Marítimo, as regras de transporte aéreo e afins, e entram em cena o Direito Civil e o Direito dos Seguros.

E o Código Civil e as normas de responsabilidade civil se avolumam na busca do ressarcimento, nada mais. O segurador sub-rogado persegue na Justiça, ou em qualquer meio de solução de litígios, o reembolso dos prejuízos contra o causador do dano, o autor do ato ilícito.

Se este é armador, empresa de transporte aéreo, construtor ou motorista de passeio descuidado, importa menos. O que realmente importa é representar o mútuo contra aquele que tem o dever de responder pelos prejuízos.

Um segurador não demanda exatamente contra o transportador de cargas, mas contra o autor de dano. Nada além, nada aquém. Por isso, tudo o que supostamente diz respeito ao contrato de transporte, nacional ou internacional, lhe é absolutamente estranho, irrelevante.

Contra o segurador não se há de discutir eleição (imposição) de foro ou de arbitragem, apresentação ou não de carta-protesto, limitação de responsabilidade. Discute-se apenas o que se encaixar nesta equação jurídica: pagamento de indenização, nexo de causalidade, certeza sobre o lesador, imputação de responsabilidade e dever de ressarcimento integral.

Daí, insisto, o encanto com a decisão em estudo e seus magníficos fundamentos. Decisão que se soma a outras, do Tribunal de Justiça de São Paulo e do Supremo Tribunal Federal, em litígios envolvendo seguradores sub-rogados contra transportadores internacionais marítimos ou aéreos de cargas, as quais resumo nos seguintes tópicos: 1) primazia da jurisdição nacional; 2) autonomia do contrato de seguro; 3) compreensão plena da sub-rogação; 4) ineficácia ao segurador sub-rogado de cláusulas de contrato do qual ele não é parte; 5) inexistência de renúncia tácita da garantia de acesso à jurisdição; 6) preferência do Código Civil às demais normas quanto o litigante for segurador sub-rogado; e 7) defesa do ressarcimento amplo e integral como bem social.

Peço vênia ao amigo leitor para lembrar argumentos, amparados em decisões judiciais, que já usei em ensaios e artigos, bem como peças forenses, reforçando o que acima afirmei.

Ainda sobre a sub-rogação e a insubmissão do segurador aos termos de um contrato do qual não é parte, convém lembrar o que entende a Justiça paulista:

"Isso porque, a apelante veio a juízo pleitear direito próprio decorrente do contrato de seguro (fls. 48/63) e não do contrato de transporte marítimo que possui a cláusula de compromisso arbitral. A sub-rogação da seguradora não é do mesmo direito material que emerge do contrato de transporte marítimo, mas sim do contrato de seguro". [TJSP — Apel. 1011256-26.2019.8.26.0011 — rel. des. J.B.Franco de Godói — 23ª Câmara de Direito Privado, j. 9/12/2020].

O direito de regresso deriva do pagamento de indenização ao segurado, vítima do dano. O segurador sub-rogado, portanto, não litiga contra transportador que inadimpliu obrigação de transporte, mas contra o genérico autor do ilícito.

Trata-se, repito, de outro e mais importante enquadramento jurídico, cujo objetivo é punir o causador do dano e restituir ao mútuo, ao colégio de segurados, o que é dele. Saí de cena o Direito Marítimo, o Direito dos Transportes, e entra o Direito dos Seguros e o Direito Civil. Busca-se o ressarcimento em regresso do protagonista de ato ilícito, do titular de atividade de risco, não do devedor de prestação de transporte.

Isso faz toda a diferença, e é por isso que o legislador foi taxativo ao determinar a ineficácia de qualquer ato do segurado capaz de minimamente prejudicar o direito de regresso do segurador. [Artigo 786, CC: §2º É ineficaz qualquer ato do segurado que diminua ou extinga, em prejuízo do segurador, os direitos a que se refere este artigo.] Ainda que a cláusula não fosse abusiva (e costuma ser) em relação ao dono da carga, sua ineficácia perante o segurador sub-rogado se manteria absoluta, de uma incidência inadmissível.

Dirimindo qualquer dúvida a respeito do assunto, recentíssima decisão colegiada do Supremo Tribunal Federal que: 1) reconheceu a força da sub-rogação; 2) tratou de modo diferente o segurador sub-rogado; 3) afastou seu próprio Precedente (Tema de Repercussão Geral): Distinguishing; 4) determinou que o segurador não se submete à Convenção Internacional de Transporte:

"Entretanto, em casos nos quais se debate vício na prestação de serviço de transporte aéreo de mercadoria, e o consequente reconhecimento do direito de regresso da parte recorrida decorrente de contrato de seguro, é inaplicável o referido precedente paradigma, pois não se trata de transporte de passageiros e de bagagem, mas de vício na prestação de serviço de transporte aéreo de mercadoria e o consequente reconhecimento do direito de regresso decorrente do contrato de seguro" [Recurso Extraordinário 1.1368.069-SP, relator: ministro Alexandre de Moraes, litígio de transporte aéreo internacional de carga, Tema 210 de Repercussão Geral]

Veja — e isso é muito importante — que a decisão da Corte Suprema fez uso das mesmas razões de decidir que aqui se defende e não aplicou contra o segurador sub-rogado uma Convenção Internacional nem seu Tema de Repercussão Geral.

Não há dúvida alguma de que a Convenção Internacional e o Precedente se sobrepõem ao clausulado de contrato, especialmente um de adesão, cujos termos, em parte, são considerados abusivos, típicos de dirigismo contratual.

A decisão do STF se ajusta muito à que agora se comenta, e ambas permitem afirmar que a situação singular do segurador sub-rogado exige tratamento jurídico singular, diferenciado.

Tratam as duas decisões de litígios de transporte aéreo internacional de carga, cujos arquétipos são rigorosamente os mesmos do marítimo. Por isso, sinto-me bastante confortável em afirmar que seus fundamentos valem para qualquer caso que tenha como causador de danos um transportador internacional, qualquer que seja o modal. E vou além: serve para qualquer causador de dano que sustente cláusula de “eleição” de foro estrangeiro e de arbitragem em contrato do qual o segurador não for parte.

Especificamente sobre a decisão do Superior Tribunal de Justiça que motivou este escrito, proferida pela 3ª Turma, no REsp. 1.962.113/RJ, e brilhantemente relatada pela ministra Nancy Andrighi — a quem devoto enorme admiração —, são dignos de destaque e aplausos estes fundamentos:

Abro aspas
(…)
5. Nesse sentido, esta Terceira Turma já decidiu que "o instituto da sub-rogação transfere o crédito apenas com suas características de direito material. A cláusula de eleição do foro estabelecida no contrato entre segurado e transportador não opera efeitos com relação ao agente segurador sub-rogado" (REsp 1.038.607/SP, 3ª Turma, DJe 5/8/2008).
6. Destaca-se que a controvérsia apreciada nesse julgado assemelha-se à presente hipótese, porquanto consistia em “saber se o foro de eleição estabelecido no contrato de transporte marítimo firmado entre a transportadora e a segurada tem, ou não, o condão de vincular a sociedade empresária seguradora em ação em que pretende reaver quantia paga à segurada em decorrência de avaria sofrida em mercadoria durante o trajeto” (REsp 1.038.607/SP, 3ª Turma, DJe 5/8/2008), concluindo, assim, pela não vinculação.
7. Portanto, a sub-rogação transmite tão somente a titularidade do direito material, isto é, a qualidade de credor da dívida. Não obstante essa transferência possa produzir consequências de natureza processual — como o ajuizamento de ação pelo novo credor contra o devedor —, essas decorrem exclusivamente da mera efetivação do direito material adquirido, de modo que as questões processuais atinentes ao credor originário não são oponíveis ao novo credor, porquanto não foram objeto da sub-rogação.
8. Ademais, não há violação do artigo 25 do CPC/2015, porquanto a cláusula de eleição de foro não foi acordada entre as partes da presente demanda, mas tão somente entre a recorrente e terceiro (segurado) e, como visto, o instituto da sub-rogação não transmite questões processuais, tal qual a eleição de foro.
(…)
Fecho aspas

A última frase é bisada com ainda mais satisfação, já que a decisão, conquistada por ilustres colegas (João Darc Costa de Souza Moraes e Denise Dias Janiques), aos quais cumprimento publicamente, é ainda mais robusta no que diz respeito ao núcleo de atenção presente: a não aplicação indistinta do art. 25 do CPC.

Vale muito a pena repetir as palavras da ministra Nancy Andrighi: "Ademais, não há violação do art. 25 do CPC/2015, porquanto a cláusula de eleição de foro não foi acordada entre as partes da presente demanda, mas tão somente entre a recorrente e terceiro (segurado) e, como visto, o instituto da sub-rogação não transmite questões processuais, tal qual a eleição de foro". Repito porque foi exatamente o que pensei quando o Código de Processo Civil entrou em vigor e que me motivou a solicitar aos grandes juristas Ives Gandra da Silva Martins e o (agora saudoso) José Manuel de Arruda Alvim suas opiniões legais, em cujo conteúdo se viu mais uma vez que a cláusula de "eleição" de foro estrangeiro não vincula o segurador sub-rogado.

Esses pareceres instruem as ações que patrocino em defesa do mercado segurador e, agora, serão acompanhadas dessa excelente decisão colegiada da Corte Maior.

É muito importante defender a primazia da jurisdição nacional, porque seu acesso é garantia fundamental, direito inafastável. E é igualmente importante preservar a autonomia do negócio de seguro e a integralidade, em todos os sentidos, da busca do ressarcimento em regresso.

O ressarcimento em regresso é do interesse de toda sociedade, que deseja a saúde do contrato de seguro, importantíssimo que é dentro da complexa arquitetura da pacificação social. O ressarcimento em regresso preserva os interesses coletivos do mútuo, da universalidade dos segurados, não permitindo que o causador do dano, o autor do ato ilícito — seja qual for a fonte da sua conduta lesiva — se veja desonerado de sua falha por conta da previdência alheia. Tudo o que preserve de algum modo o ressarcimento é bem-vindo, um gesto contra a impunidade e a irresponsabilidade civil.

Termino com a mesma mensagem que usei em outro ensaio: que todos os que se dedicam ao ressarcimento festejem a conquista e façam bom uso da decisão, que é excelente e que defino como importante vitória para o ressarcimento integral.

Autores

  • é sócio de Machado, Cremoneze, Lima e Gotas Advogados Associados, pós-graduado lato sensu em Direito e mestre em Direito Internacional pela Universidade Católica de Santos, especialista em Direito dos Seguros e em Contratos e Danos pela Universidade de Salamanca (Espanha), acadêmico da Academia Nacional de Seguros e Previdência, professor (palestrante) de Direito dos Seguros da Escola Superior de Advocacia e da Escola Nacional de Seguros, associado da Sociedade Visconde de São Leopoldo (mantenedora da Universidade Católica de Santos), autor de livros de Direito dos Seguros, Direito dos Transportes e Direito Marítimo, membro da Ius Civile Salmanticense, da Aida-Brasil, do Iasp, vice-presidente da Ujucasp e presidente do IDTBrasil, laureado pela OAB-Santos pelo exercício ético e exemplar da advocacia.

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