Opinião

Sobre a indevida ampliação das hipóteses de arbitramento do valor aduaneiro

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3 de abril de 2022, 11h18

Segundo o Acordo de Valoração Aduaneira (AVA), o valor aduaneiro da mercadoria importada corresponde ao valor da transação, entendido como o preço efetivamente pago ou a pagar pelas mercadorias em uma venda para exportação para o país de importação, ajustado de acordo com as disposições do Artigo 8 do AVA.

A adoção do método do valor da transação depende do cumprimento de uma série de condições, entre as quais a exigência de que a venda ou o preço não estejam sujeitos a alguma condição ou contraprestação para a qual não se possa determinar um valor em relação às mercadorias objeto de valoração e de que não haja vinculação entre o comprador e o vendedor ou, se houver, que a relação entre as partes não tenha influenciado o preço.

Nos casos em que o valor da transação não possa ser aceito, serão aplicados sucessivamente os demais métodos de valoração previstos pelo AVA: valor de transação de mercadorias idênticas, de transação de mercadorias similares, de revenda, computado e, por último, o obtido por critérios razoáveis. Nos termos da Nota Geral Interpretativa do AVA e do artigo 25, inciso I da Instrução Normativa nº 327/2003, é obrigatória a observância a esta ordem, excetuada apenas a inversão entre os métodos quarto e quinto.

Apesar da obrigatoriedade de observância da ordem sequencial do AVA, excepciona-se dessa regra os casos que ensejam o arbitramento do valor aduaneiro. São eles o caso de fraude, sonegação e conluio, em que não seja possível a apuração do preço efetivamente praticado na importação, hipótese conhecida como "subfaturamento" (artigo 88 da Medida Provisória nº 2.158-35/01) e quando o importador descumpre a obrigação de manter, em boa guarda e ordem e pelo prazo decadencial, os documentos obrigatórios de instrução da Declaração de Importação (DI) (artigo 70 da Lei 10.833/03).

Como se observa, a segunda hipótese de arbitramento mencionada não exige a ocorrência de elemento volitivo do agente em manipular o valor aduaneiro. Basta o descumprimento do dever instrumental de conservar os documentos obrigatórios da DI que correspondem à via original do conhecimento de carga, via original da fatura comercial, assinada pelo exportador e comprovante de pagamento dos tributos, se exigível, nos termos do artigo 553 do Regulamento Aduaneiro (Decreto nº 6.759/09). O parágrafo único autoriza que sejam exigidos outros documentos instrutivos da DI, "em decorrência de acordos internacionais ou por força de lei, de regulamento ou de outro ato normativo".

Com base nessa autorização, a Receita Federal recentemente ampliou o rol de documentos que são considerados obrigatórios de instrução da DI nos casos em que o despacho aduaneiro ocorra no chamado "canal cinza", que se aplica aos casos em que são verificados elementos indiciários de fraude na importação.

Explica-se: por meio da Instrução Normativa nº 2.072/22, a Receita Federal equiparou os chamados "documentos comprobatórios" da transação comercial aos "documentos obrigatórios" de instrução da DI, quando a mercadoria importada tenha sido exemplificada para o canal cinza. Isto é, se o importador não apresentar os referidos "documentos comprobatórios", estará autorizado o arbitramento do valor aduaneiro. Entre os documentos comprobatórios, incluem-se a correspondência comercial, as cotações de preços, a comprovação da formalização dos compromissos e das responsabilidades contratuais, a fatura proforma, os comprovantes de pagamentos, os registros contábeis, a formalização das garantias para pagamentos e os contratos de transporte e de seguro relacionados à operação comercial.

A despeito da autorização legal para a exigência de outros documentos de instrução da DI, é necessário analisar com cautela as mudanças trazidas pela Instrução Normativa nº 2.072/22. Isso porque, à medida em que se ampliam os documentos obrigatórios de instrução da DI, ampliam-se igualmente as hipóteses de arbitramento do valor aduaneiro.

Ressalte-se que o legislador já determinava que a falta de apresentação dos "documentos comprobatórios" (que agora foram elevados ao conceito de "obrigatórios") enseja a desconsideração do valor da transação e a aplicação dos métodos substitutivos previstos no AVA, nos termos do artigo 70, inciso I da Lei 10.833/03. O racional do legislador leva em conta justamente a essencialidade do documento não apresentado: se não apresentados os "documentos comprobatórios", cabe a desconsideração do valor da transação e a apuração segundo a ordem sequencial dos métodos do AVA; se não apresentados os "documentos obrigatórios", a consequência é igualmente mais gravosa e impõe o arbitramento do valor aduaneiro.

Talvez se alegue que a equiparação dos documentos "comprobatórios" aos "obrigatórios" seria possível pois limitada aos casos em que a mercadoria tenha sido parametrizada para o canal cinza. Contudo, sendo o canal cinza destinado à apuração de fraude na importação, o arbitramento do valor aduaneiro deveria ocorrer em razão da comprovação do subfaturamento (mediante fraude, simulação ou conluio).

É evidente que a comprovação do subfaturamento depende da análise de diversos elementos que possibilitam a conclusão de que houve fraude, simulação ou conluio, o que pode ou não incluir a falta de apresentação de alguns documentos por parte do importador. O que não se pode admitir, contudo, é o arbitramento do valor aduaneiro quando, apesar de não ter sido verificado o elemento volitivo do importador, não seja apresentado algum dos documentos comprobatórios (e não "obrigatórios") da transação comercial.

Contudo, caso a Receita Federal passe a adotar esse entendimento, há argumentos para questionar o arbitramento do valor aduaneiro, uma vez que os casos de não aplicação do AVA devem se restringir àqueles previstos na lei, não podendo uma instrução normativa ampliar essas hipóteses.

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