Opinião

Retrocesso democrático, constitucionalismo abusivo e "vontade de constituição"

Autor

  • André Gardesani

    é procurador do Estado de São Paulo doutor e mestre em Literatura Comparada pela Universidade Estadual Paulista (Unesp) pós-graduado em Direito Constitucional pela Universidade do Sul de Santa Catarina (Unisul) e em Ciências Humanas: Sociologia História e Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) e pós-graduando em Direito Internacional e Direitos Humanos pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG).

3 de abril de 2022, 15h23

As democracias evoluem e, após certo tempo, começam a retroceder. Essa foi a constatação do cientista político Leonardo Avritzer, que utilizou a expressão "pêndulo da democracia", para se referir a períodos de entusiasmos democráticos, que logo são substituídos por uma visão antidemocrática, em que os cidadãos passam a não mais considerar a democracia como algo essencial [1]. A perspectiva de Avitzer demonstra a tendência pendular da democracia brasileira, que segue em uma direção, regressando, em seguida, à direção oposta, promovendo, com isso, a alternância entre períodos democráticos e não democráticos. 

A tese de Avritzer, sobretudo em O pêndulo da democracia [2], se fundamenta em uma análise feita pelo autor do período histórico compreendido entre os anos de 1945 e 2018, quando o Brasil oscilou processos de aprimoramento (1946 a 1964 e 1985 a 2013) e depreciação (1964 a 1985 e 2013 a 2018) dos valores e instituições democráticas. Na sequência, o autor se concentrou no período pós-Constituição de 1988 e em fatores que densificaram a crise democrática no cenário atual: o ativismo judicial e o debate político nas redes sociais. Atribuiu a dinâmica pendular da democracia brasileira ao sistema econômico marcado pelo privilégio político, à não modernização e não democratização do Poder Judiciário e à dificuldade de implementação dos direitos civis. 

É bem verdade que, nas últimas décadas, vive-se no Brasil um cenário de distanciamento entre o cidadão e a classe política, ficando cada vez mais latente o sentimento de descrença popular nos agentes políticos. Alguns fatores podem ser elencados como causas e consequências da corrosão democrática, como o jogo de interesses pessoais dos parlamentares, a excessiva influência dos setores econômicos na eleição de representantes políticos, a falta de fidelidade à ideologia eleitoral, fatos que levam, cada vez mais, o cidadão a buscar alternativas em relação à política tradicional.

O fenômeno pendular da democracia a que se refere Avritzer não se limita ao Brasil, pois, nos últimos trinta anos, apesar de as democracias também prosperarem no leste europeu, com o fim da URSS; na África, com a independência de muitos países; e em toda a América Latina, com o término das ditaduras, também ocorreram recessos democráticos e constitucionais, em maior ou menor velocidade, notadamente por meio das violações a direitos fundamentais, como ataques à imprensa e restrições à liberdade de expressão, difusão de discursos de ódio e de notícias falsas (fake news) e ofensas às instituições democráticas [3].

O "constitucionalismo abusivo" constitui uma espécie de retrocesso constitucional. Trata-se de fenômeno descrito pela doutrina constitucional e caracterizado pela utilização indevida, por Estados aparentemente democráticos e constitucionais, de mecanismos do direito constitucional para atacar e destruir as estruturas da democracia constitucional e das bases filosóficas do constitucionalismo, notadamente a ideia de pluralismo.

O conceito de constitucionalismo abusivo (abusive constitutionalism[4] foi cunhado por David E. Landau, advogado norte americano e professor da Faculdade de Direito da Universidade Estadual da Flórida, como "o uso de mecanismos de mudança constitucional para tornar um Estado significativamente menos democrático do que era antes" [5]. Em outras palavras, o constitucionalismo abusivo tem por escopo a deturpação da democracia e do direito constitucional, sem a necessidade de golpes de Estado. É o que Scheppele chama de constitutional coups ("golpe constitucional"), pois "não há ruptura na legalidade, em nenhum momento o governo faz algo formalmente ilegal para atingir os objetivos desejados" [6]. Prossegue Scheppele enfatizando que, por meio de uma série de movimentos perfeitamente legais, "os lideres constitucionalmente desonestos de um Estado podem obter um resultado substancialmente anticonstitucional, incluindo, no caso extremo, transformar um Estado à vista de uma democracia constitucional para uma autocracia, parecendo honrar a Constituição o tempo todo" [7]. Ao se referir a "mecanismos de mudança constitucional" como meios para depreciar os valores democráticos, Landau tem em mente os métodos formais de mudança da Constituição ou seja, a emenda constitucional ou a substituição constitucional [8]. Essa modalidade nociva de abuso constitucional recebe o nome de "constitucionalismo abusivo estrutural" [9]. Por meio dela, emendas à constituição e novas constituições são adotadas com o objetivo de manter determinado grupo político no poder. Contudo, ao lado dessa prática, instituições democráticas, o Estado de Direito e técnicas constitucionais também podem ser empregadas em desconformidade com as diretrizes do direito constitucional, quando então, fala-se em "constitucionalismo abusivo episódico" [10]. Entendem Barboza e Robl Filho que, no Brasil contemporâneo, não existe casos de constitucionalismo abusivo de natureza estrutural, mas apenas episódico, mediante a "utilização de alguns mecanismos previstos na Constituição Federal de 1988 contra aspectos do Estado Democrático de Direito" [11]. Citam, como exemplo, a ocorrência de dois processos de impeachment em menos de 30 anos (contra Fernando Collor, no final de 1992 e contra Dilma Rousseff, em 2015-2016), o que evidenciaria a fragilidade da nossa democracia.

Observe-se, portanto, que os abusos constitucionais ocorrem em virtude da desarticulação do sistema de freios e contrapesos (checks and balances), na medida em que as interferências, os controles e a fiscalização recíproca entre os poderes são sistematicamente enfraquecidas e neutralizadas.

Landau apresenta alguns alvitres destinados a limitar o constitucionalismo abusivo, dentre os quais podemos mencionar a unconstitutional-constitutional amendment doctrine ("doutrina da emenda constitucional inconstitucional"), que traduz a ideia de que uma emenda pode ser substantivamente inconstitucional em determinadas condições; as replacement clauses ("cláusulas de substituição"), ou seja, a delimitação constitucional das hipóteses em que a Constituição poderia ser substituída; a atribuição às Cortes Constitucionais de poderes para "validar" ou "chancelar" uma nova Constituição; e até mesmo a institucionalização de mecanismos internacionais destinados ao controle do constitucionalismo abusivo em determinado Estado [12].

Uma outra alternativa que exsurge contra o constitucionalismo abusivo e que não é indicada no estudo de Landau, é a denominada "vontade de Constituição", termo cunhado por Konrad Hesse, em sua obra Força Normativa da Constituição, que significa que o conhecimento da Constituição, por parte do cidadão e dos seus representantes políticos, pode desacelerar o crescimento dos abusos constitucionais. A vontade de que sejam respeitados e cumpridos os preceitos constitucionais deve prevalecer sobre qualquer tentativa de retrocesso constitucional, especialmente de constitucionalismo abusivo. Segundo Hesse, "compete ao Direito Constitucional realçar, despertar e preservar a vontade de Constituição (Wille zur Verfassung), que, indubitavelmente, constitui a maior garantia de sua força normativa" [13]. A "vontade de Constituição", nos dizeres do mestre do Direito Constitucional alemão, tem o grande mérito de assegurar a força normativa da Constituição, garantindo, com isso, a eficácia e a aplicabilidade fática das normas constitucionais, assim como sua correta interpretação.

Destaca Hesse que a "vontade de Constituição" decorre de três fatores. O primeiro baseia-se na "compreensão da necessidade e do valor de uma ordem normativa inquebrantável, que proteja o Estado contra o arbítrio desmedido e uniforme" [14]. Desse modo, a consciência por parte do povo e dos seus representantes políticos, do relevante valor de uma ordem constitucional sólida, tenderia a afastar os arbítrios e os nefastos efeitos do constitucionalismo abusivo. O segundo consiste na compreensão de que "essa ordem constituída é mais do que uma ordem legitimada pelos fatos (e que, por isso, necessita de estar em constante processo de legitimação)" [15]. Finalmente, o terceiro, assenta-se na consciência de que "essa ordem não logra ser eficaz sem o concurso da vontade humana" [16], isto é, a ordem constitucional somente terá sua vigência assegurada por meio de atos volitivos, especialmente dos líderes constitucionais e dos responsáveis pelo processo constitucional. Complementa Hesse, que a não percepção por parte do cidadão e dos líderes políticos de que a vida do Estado, assim como a vida humana, não está abandonada à "ação surda de forças aparentemente inelutáveis", representaria "um perigoso empobrecimento de nosso pensamento" [17].

A "vontade de Constituição" implicaria na retomada de uma democracia do tipo participativa, que permitiria o acesso do cidadão às instâncias decisórias da política e a realização de um amplo debate público caracterizado pela pluralidade de ideias, bem como a tomada de consciência, tanto por parte dos cidadãos, como também dos governantes, das três vertentes apontadas por Hesse, para que a vontade de cumprimento dos preceitos constitucionais se materialize. Demais disso, a efetiva participação popular, além de promover a cidadania, representaria uma forma benéfica de implementar mecanismos destinados a impor barreiras e conter os avanços dos retrocessos democráticos e do constitucionalismo abusivo, evitando desmandos de governos descompromissados com a Constituição e garantindo o respeito ao Estado democrático de Direito.


[1] Nas palavras de Avritzer, o "pêndulo da democracia" consiste na "oscilação política pela qual passa a política brasileira entre certos períodos históricos nos quais elites e massas partilham um forte entusiasmo democrático e outros momentos em que a classe média adota uma visão antidemocrática, alinhada com as elites, e muitos setores populares aderem à rejeição da política ou à antipolítica" (O pêndulo da democracia. São Paulo: Todavia, 2019. p. 16).

[2] O autor também se debruçou sobre o tema da crise democrática no Brasil em "O pêndulo da democracia: uma análise da crise 2013-2018". In: Novos estudos CEBRAP. São Paulo, v. 37, n. 2, mai./ago., 2018. p. 273-289; e Impasses da democracia no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016.

[3] O movimento do pêndulo da democracia de uma ponta a outra, encontra-se associado à mudança de geração. Em geral, uma geração se distancia da predecessora por um período de 20 a 30 anos, aproximadamente. Cada geração é constituída por peculiaridades que a tornam única. Dessa forma, transformar a sociedade, as políticas e as ideias, sempre representa uma tendência muito forte da nova geração sobre a anterior.

[4] Outros autores adotam expressões diversas para se referir ao mesmo fenômeno: Tushnet fala em authoritarian constitucionalism  "constitucionalismo autoritário" (Authoritarian Constitutionalism. In: Cornell Law Review. New York: Cornell Law School, v. 393, 2015. p. 451-452) e Varol em stealth authoritarianism  "autoritarismo furtivo" (Stealth Authoritarianism. In: Iowa Law Review. Iowa: Lewis & Clark Law School Legal Studies Research Paper. v. 100, 2015. p. 1673-1742).

[5] I define "abusive constitutionalism" as the use of mechanisms of constitutional change in order to make a state significantly less democratic than it was before (LANDAU, David. Abusive Constitutionalism. In: Davis Law Review. University of California, v. 47, 2013. p. 195).

[6] A constitutional coup is constitutional because there is no break in legality, never a moment when a government does something formally illegal to attain its desired goals (SCHEPPELE, Kim Lane. Constitutional Coups and Judicial Review: How Transnational Institutions Can Strengthen Peak Courts at Times of Crisis (with Special Reference to Hungary). In: Journal of Transnational Law and Contemporary Problems, University of Iowa College of Law. 2014, p. 51).

[7] Through a series of perfectly legal moves the constitutionally devious leaders of a state can achieve a substantively anticonstitutional result, including, in the extreme case, transforming a state in plain sight from a constitutional democracy to an autocracy, all the while appearing to honor the constitution (SCHEPPELE, Kim Lane. Ibidem).

[8] LANDAU, David. Op. cit., p. 195.

[9] Cf. BARBOZA, Estefânia Maria Queiroz; ROBL FILHO, Ilton Norberto. "Constitucionalismo Abusivo: Fundamentos Teóricos e Análise da sua Utilização no Brasil Contemporâneo". In: Direitos Fundamentais e Justiça, Belo Horizonte, n. 39, jul./dez. 2018. p. 84.

[10] Ibid., p. 86.

[11] Ibid., p. 94.

[12] LANDAU, David. Op. cit., p. 231 e seguintes.

[13] HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Trad. Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Fabris Editor, 1991. p. 27.

[14] Ibid., p. 19.

[15] Ibid., p. 19.

[16] Ibid., p. 19-20.

[17] Ibid., p. 20.

Autores

  • Brave

    é procurador do Estado de São Paulo, doutor e mestre em Literatura Comparada pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), pós-graduado em Direito Constitucional pela Universidade do Sul de Santa Catarina (Unisul) e em Ciências Humanas: Sociologia, História e Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) e pós-graduando em Direito Internacional e Direitos Humanos pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG).

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!