Opinião

A política regulatória brasileira em face das recentes recomendações da OCDE

Autores

  • Natasha Schmitt Caccia Salinas

    é professora do programa de pós-graduação (mestrado e doutorado) em Direito da Regulação e do curso de graduação em Direito da FGV Direito Rio. Doutora e mestre em Direito pela USP. Master of Laws (LL.M.) pela Yale Law School.

  • Lucas Thevenard Gomes

    é professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV Direito Rio) pesquisador do Centro de Pesquisa em Direito e Economia da FGV mestrando em Direito da Regulação pela FGV Direito Rio.

2 de abril de 2022, 10h17

A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) acaba de publicar um novo relatório sobre implementação das políticas regulatórias de seus Estados membros. Esse documento merece ser lido com atenção, por algumas razões. A primeira delas, mais evidente, é a de que o Brasil está em processo de ingresso na OCDE, de modo que, caso essa entrada se confirme, a implementação da política regulatória brasileira também fará parte de análises futuras da organização.

O outro motivo pelo qual devemos levar a sério o estudo da OCDE é porque ele identifica problemas comuns na implementação de políticas regulatórias nacionais. Os diagnósticos e recomendações da OCDE são, portanto, úteis e até mesmo necessários, para analisar o caso brasileiro.

O Regulatory Policy Outlook 2021 faz uma série de recomendações para o aprimoramento das políticas regulatórias de seus países membros, que iniciam com sugestões para melhorar o processo propriamente dito de produção de normas e terminam com orientações sobre revisão e controle dos resultados da atividade regulatória. A importância da construção de uma política regulatória reside na crença de que certos instrumentos necessitam ser adotados de forma generalizada para garantir qualidade nos estoques de regulação produzidos nacionalmente.

Dentre os instrumentos destacados pela OCDE para aprimoramento da produção normativa, está o que a organização denomina de mecanismos para "engajamento das partes interessadas" (no original, stakeholder engagement). O órgão ainda enfatiza a importância de outros dois instrumentos: 1) análises de impacto regulatório e 2) avaliações ex post do estoque regulatório. Esses instrumentos ganham proeminente destaque nas recomendações da OCDE sobre política regulatória, que "reconhece a importância de se consultar amplamente, garantido que todos os impactos relevantes sejam analisados, e que as regras sejam periodicamente revistas e abertas à revisão legal" [1].

No Brasil, os instrumentos acima referidos ganharam destaque à medida que foram sendo incorporados à política regulatória em formação no país. Essa política tem sido construída gradualmente, por meio da aprovação de iniciativas legais diversas — entre os atos normativos aprovados recentemente, merecem destaque a Lei Geral das Agências Reguladoras (Lei nº 13.848/19), a Lei da Declaração de Direitos da Liberdade Econômica (Lei nº 18.874/19) e o Decreto regulamentador da AIR (Decreto nº 10.411/2020). Essas leis e regulamentos não iniciaram a política regulatória no país, mas têm sido responsáveis pelo seu fortalecimento e expansão.

No que diz respeito aos mecanismos de participação em processos regulatórios, a Lei Geral das Agências Reguladoras (LGA) instituiu ritos e tornou obrigatória a consulta pública previamente à edição de atos normativos (cf. artigo 9º da Lei nº 13.848/19). Como já observado, o engajamento das partes interessadas é um dos instrumentos de política regulatória mais destacados pela OCDE, já que é considerado pela organização imprescindível para conferir legitimidade aos processos regulatórios e incrementar a qualidade da regulação.

O novo relatório da OCDE apresenta algumas recomendações para garantir maior engajamento da população em processos regulatórios. Uma delas enfatiza a importância da participação das pessoas interessadas em estágios iniciais da tomada de decisão regulatória. Segundo a OCDE, são poucos os países que utilizam mecanismos de participação em estágios menos avançados do processo regulatório [2]. Nessas situações, o órgão regulador apresenta à população o problema que pretende solucionar, conferindo aos interessados a oportunidade de contribuir para questões fundamentais da tomada de decisão regulatória. A participação nesse estágio tende a ser mais efetiva do que quando as partes interessadas são instadas a manifestar-se sobre minutas de normas já elaboradas. Uma vez elaborada a proposta normativa, o órgão regulador torna-se mais resistente a mudar substantivamente suas escolhas regulatórias.

Assim como a maioria dos países membros da OCDE, o Brasil ainda não instituiu mecanismos obrigatórios de engajamento da população em estágios menos avançados do processo regulatório. A LGA trata apenas da consulta pública de "minutas e propostas de alteração de atos normativos" (artigo 9º da Lei nº 13.848/19). Ou seja, a lei refere-se apenas à consulta pública que ocorre depois que as soluções e estratégias regulatórias já foram escolhidas pelo regulador. Embora os participantes da consulta pública possam contribuir para o aperfeiçoamento da proposta de texto legal, dificilmente eles serão capazes de alterar significativamente o curso de ação já escolhido pela agência reguladora.

A LGA não faz, portanto, referência a consultas da população sobre problemas regulatórios ainda sem soluções e alternativas definidas, em estágios iniciais da tomada de decisão. Mesmo sem previsão legal, as agências possuem autonomia para consultar a população em estágios iniciais do processo regulatório. Isso, no entanto, raramente ocorre. Consultando a base de dados que o projeto Regulação em Números, da FGV Direito Rio, construiu sobre consultas e audiências públicas das agências reguladoras federais, verificamos que apenas 5,8% de todos os mecanismos de participação realizados tratavam de problemas regulatórios amplos, em que a agência reguladora pretendeu discutir de forma aberta e menos dirigida, antes da redação da minuta normativa, determinado tema regulatório com o objetivo de produzir conhecimentos. 

Algumas agências reguladoras, por certo, adotam outros mecanismos de participação em estágios mais incipientes do processo regulatório. Por exemplo, as agências de transporte ANTT e Antaq adotam um outro instrumento, denominado "tomada de subsídio", para cumprir essa função. Mecanismos de participação dessa natureza caracterizam-se por serem mais informais e envolverem apenas as partes diretamente interessadas na proposta de regulação, diferentemente da consulta pública, que segue ritos e procedimentos mais engessados e se destina a público alvo mais amplo. Mecanismos de participação informais e negociados costumam, no entanto, ser menos transparentes, devendo, portanto, ser complementares, e não substituíveis, àqueles dotados de maior formalidade, como a consulta pública.

A segunda recomendação da OCDE que tem por objetivo fomentar maior engajamento da população em processos regulatórios é a comunicação da agenda de produção normativa dos órgãos reguladores. A organização recomenda que os reguladores informem as partes interessadas, com a devida antecedência, sobre processos normativos futuros. Recebendo informações sobre a agenda regulatória com antecedência, as partes interessadas podem preparar-se melhor para oferecer contribuições efetivas às consultas públicas que lhes afetam diretamente. Um achado importante do Regulatory Policy Outlook 2021 é o de que metade dos países membros da OCDE publicam a lista de normas regulatórias que pretendem editar ou modificar, e um terço comunica ao menos parte da relação de consultas públicas que pretendem realizar.

A LGA previu, em seu artigo 21, a agenda regulatória como instrumento de planejamento da atividade normativa. Segundo esse dispositivo, a agenda deve conter "o conjunto de temas prioritários a serem regulamentados pela agência no futuro". Sendo a lei bastante genérica sobre o tema, a definição da estrutura e conteúdo das agendas fica a cargo das agências reguladoras. Um estudo recente desenvolvido por aluno do Programa de Pós-graduação em Direito da Regulação da FGV Direito Rio identificou significativa discrepância entre agendas regulatórias no que diz respeito ao seu conteúdo [3]Agendas excessivamente vagas e genéricas podem eventualmente não gerar o engajamento esperado das partes interessadas.

As próprias agendas regulatórias também podem ser objeto de consultas públicas ou outros mecanismos de participação, em que a população pode se manifestar sobre o conjunto de temas que a agência reguladora pretende regular em determinado período. O relatório da OCDE não traz nenhuma recomendação a esse respeito, já que se restringe a enfatizar a importância da comunicação das agendas. Embora a LGA também não discipline essa questão, as agências reguladoras brasileiras, com exceção da ANP, costumam ouvir a população na construção de suas agendas. Os mecanismos de participação utilizados para discutir minutas de agendas regulatórias são variados: além da consulta pública, que segue as regras procedimentais previstas no artigo 9º da LGA, outros mecanismos de participação atípicos, como tomada de subsídios e chamamento público, são utilizados para envolver a população na discussão das agendas regulatórias [4]. À medida que a prática de consulta das agências se consolide, uma agenda de pesquisa que busque avaliar a transparência e efetividade dos mecanismos de participação adotados tendem a se intensificar.

Já a terceira recomendação da OCDE sobre engajamento dos participantes trata da forma como os órgãos reguladores se manifestam acerca das contribuições que recebem das partes interessadas. Para a organização, os órgãos reguladores devem não apenas conferir publicidade às contribuições que recebem, mas sobretudo oferecer-lhes respostas claras e fundamentadas. No entanto, apenas um terço dos países membros da OCDE exige que os reguladores publiquem suas respostas e apenas uma minoria deles estão obrigados a considerar as contribuições recebidas na etapa de finalização do texto normativo [5].

No Brasil, a LGA passou a exigir a publicação do "posicionamento da agência reguladora sobre as críticas ou as contribuições apresentadas no processo de consulta pública" em "até 30 dias úteis após a reunião do conselho diretor ou da diretoria colegiada para deliberação final sobre a matéria". Antes mesmo da LGA, as agências já vinham publicando relatórios de análise das contribuições recebidas nas consultas públicas, porém não necessariamente de forma sistemática. Recorrendo novamente à base de dados do projeto Regulação em Números, da FGV Direito Rio, identificamos que, até o advento da LGA, as agências publicaram respostas completas em apenas 44,7% das consultas públicas realizadas. Ao menos do ponto de vista formal, a LGA representou um avanço para o incremento da transparência dos mecanismos de participação das agências reguladoras federais. O projeto Regulação em Números está, no momento, desenvolvendo estudo empírico para avaliar o impacto efetivo da nova lei nessa seara.

Em resumo, a OCDE, no Regulatory Policy Outlook 2021, ressalta a importância de se adotar mecanismos de participação integrados, que valorizem e conectem todas as fases do processo de produção normativa. Pelos motivos expostos, o Brasil ainda precisa desenvolver estratégias para incentivar a participação em estágios iniciais do processo regulatório. A OCDE também recomenda que os órgãos reguladores desenvolvam estratégias de comunicação efetiva para que as partes interessadas não sejam surpreendidas com avisos apressados de abertura de consultas públicas. No Brasil, um bom uso da agenda regulatória prevista na LGA talvez seja o melhor caminho para cumprir essa recomendação. Por fim, a OCDE enfatiza que reguladores devem oferecer respostas claras e motivadas a todos os participantes dos processos de produção normativa. Espera-se que a LGA, ao exigir respostas das agências, fomente a cultura de responsividade e transparência que tanto defendemos.


[3] Trata-se do trabalho "Planejamento da Produção Normativa das Agências Reguladoras: uma análise empírica sobre a utilização das agendas regulatórias", de Luiz Figueiredo Cintra de Oliveira, recém defendido perante o PPGD da FGV Direito Rio.

[4] Esses dados também foram levantados por Luiz Figueiredo Cintra de Oliveira na dissertação mencionada na nota anterior.

Autores

  • é professora do programa de pós-graduação em Direito da Regulação e do curso de graduação em Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV Direito Rio), doutora e mestre em Direito pela Universidade de São Paulo (USP) e master of laws (LL.M.) pela Yale Law School.

  • é professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV Direito Rio), pesquisador do Centro de Pesquisa em Direito e Economia da FGV, mestrando em Direito da Regulação pela FGV Direito Rio.

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