Diário de Classe

O que é solipsismo e por que caras como Dallagnol são viciados em si mesmos

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2 de abril de 2022, 8h00

O Diário de Classe inicia hoje com o complemento do título: "…são viciados em si mesmos". Vamos explicar isso. Do latim solus (sozinho) e Ipse (mesmo), o solipsismo pode ser entendido como a concepção filosófica de que o mundo e o conhecimento estão submetidos estritamente à consciência do sujeito. Para os alemães, a palavra utilizada é Selbstsucht, de onde Sebsltsüchtiger, em tradução literal, é o cara "viciado em si mesmo".

Recentemente o ex-procurador da "lava jato" Deltan Dallagnol foi condenado no STJ a indenizar o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva por causa do episódio que ficou conhecido como "PowerPoint do Lula". Na situação, Dallagnol apresentou slides em PowerPoint em que atribuía diversas condutas ao ex-presidente, inclusive denúncias que não constavam no processo. Por 4 votos a 1, os ministros da 4ª Turma do STJ consideraram que ficou caracterizado o dano moral por parte de Dallagnol contra o ex-presidente Lula, e fixaram em R$ 75 mil a indenização (a estimativa é que o valor atualizado seja de algo em torno de R$ 100 mil, sem contar os honorários advocatícios).

Acontece que, diante do acórdão, o ex-coordenador da extinta força-tarefa da "lava jato" de Curitiba classificou o entendimento da 4ª Turma do STJ como "reação do sistema". O ex-procurador ainda disse que "isso é o que acontece quando se luta contra a corrupção e a injustiça no Brasil". O curioso é que o procurador, que nega qualquer atuação política ou por interesses que não os da justiça, escreveu enquanto ainda era procurador a seguinte mensagem para um chat consigo mesmo:

"Tenho apenas 37 anos. A terceira tentação de Jesus no deserto foi um atalho para o reinado. Apesar de em 2022 ter renovação de só uma vaga e de ser Álvaro Dias, se for para ser, será. Posso traçar plano focado em fazer mudanças e que pode acabar tendo como efeito manter essa porta aberta" [1].

O professor Lenio Streck (2017a), nos ensina que o sujeito solipsista assujeita o mundo conforme seu ponto de vista interior. "Epistemologicamente, o Solipsismo representa o coroamento da radicalidade do indivíduo moderno em seu sentido mais profundo. Isso quer dizer que o solipsismo é, de certa forma, o resultado da própria modernidade, ou seja, derivado do paradigma filosófico que encontrou na subjetividade do homem o ponto de fundamentação última para todo o conhecimento do mundo. Trata-se de um fundamentum incocussum absolutum veritatis, um fundamento definitivo e indubitável que sustenta todo o conhecimento possível, encontrando a sua morada a partir das meditationes de Prima Philosophia de Descartes, na subjetividade individual do Sujeito" (STRECK, 2017a, p. 273)

A superação de um realismo filosófico, onde uma illuminatio divina se sobrepõe à razão humana, ou seja, de que o conhecimento humano é apenas o fornecido e autorizado por Deus, se deu através de uma ruptura histórico-filosófica, na qual ocorre uma busca da explicação sobre os fundamentos do homem, e essa ruptura deu-se com o iluminismo e com o antropocentrismo resultante de seus avanços (STRECK, 2017b). No entanto essa ruptura não foi suficiente, pois a transferência da sujeição do homem às estruturas da metafísica religiosa para a sujeição das coisas à razão do indivíduo, apesar de representar um enorme avanço criou uma hipertrofia em relação ao sujeito, especificamente em relação à consciência (STRECK, 2017b). Isso pois a crítica iluminista (desenvolvida por Kant) ligou o transcendental à figura do sujeito, que consequentemente passou a ser o lugar último e único fundamento da verdade.

Diferente das demais filosofias, na hermenêutica, o elemento transcendental (da verdade) é deslocado do sujeito para um contexto de significâncias e significados. Para o direito, isto significa que "a manifestação da vontade no próprio ato judicante não pode se reduzir a um exercício da vontade do intérprete (julgar conforme a sua consciência), como se a realidade fosse reduzida à sua representação subjetiva" (STRECK, 2017b, p.19). É neste contexto que se insere o giro-linguístico. Pois esse giro "liberta" a filosofia do fundamentum incocussum absolutum veritatis (um fundamento definitivo e indubitável que sustenta todo o conhecimento possível e que encontra morada na subjetividade individual do Sujeito). Tal libertação foi possível, pois com a filosofia da linguagem, principalmente nos avanços perpetuados por Wittgenstein (2005) e Heidegger (2000), descobriu-se que para além do elemento lógico-analítico, a compreensão de um fenômeno pressupõe sempre uma dimensão de caráter prático-pragmático. Nesse sentido, para Streck (2017b, p.17), "a linguagem passa a ser entendida não mais como terceira coisa que se coloca entre o sujeito e o objeto e, sim como condição de possibilidade". A linguagem é o que está dado e, portanto, não pode ser produto de um sujeito solipsista, que constrói o seu próprio objeto de conhecimento.

O Estado democrático de Direito, e o próprio Direito, não são coisas que podem ser sobrepostas às vontades e objetivos políticos de alguns poucos agentes do Estado, pois julgadores, bem como os procuradores, detêm uma prerrogativa enorme de poder no âmbito da decisão, e esse poder deve ser usado de forma responsável, de forma a obedecer a critérios. Por isso, compreender algumas ideias de Ronald Dworkin se faz necessário para se aproximar do que o Direito deve significar em uma democracia.

Dworkin (1986) explica a prática judiciária em uma analogia com o processo de escrita de um romance em cadeia, um empreendimento coletivo entre autores que se propõem à escrita conjunta de uma única obra. Um processo que pressupõe, necessariamente, a obrigação daquele que escreve de manter a coerência com os elementos que já fazem parte da obra, (adaptando à civil law), os juízes na hora de julgar, bem como os demais agentes do Poder Judiciário, devem ter em seus atos a lei, a Constituição e os princípios constitucionais como referência. Os juízes e demais agentes do Judiciário, portanto, seriam coautores (na medida que aplicam a lei no caso particular, dando continuidade ao que os políticos decidiram) e críticos (na medida que não devem apenas aplicar a "letra fria da lei" e sim analisar, através de um processo interpretativo o que é mais coerente levando-se em conta a integridade das decisões e do sistema legal para aquele caso em específico. Se a coerência e a integridade são deixadas de lado e por consequência a ordem democrática é rompida, as decisões políticas resultadas são atropeladas, e arbitrariedades acontecem

Dworkin (1986) (além de ser um autor que se o ex-procurador e sempre político Deltan tivesse lido não teria sido condenado a pagar uma indenização para o ex-presidente Lula) é alguém que entende o que o Direito deve ser em uma democracia, pois para ele, as decisões e os atos judiciais precisam ser tomados por princípio, e não por política ou moral; assim, agindo por princípio significa o contrário do agir estratégico, de fins e resultados. Agir por princípio quer dizer: mesmo que eu não goste do réu, tenho de lhe assegurar o seu direito.

A "lava jato" inicialmente surgiu como uma manifestação da lei, mas na perseguição de políticos acabou por ir justamente de encontro à lei e às garantias constitucionais, usando de elementos como prisões ilegais, denúncias crimes em véspera de eleições, vazamentos ilegais de documentos para objetivos políticos (STRECK; CARVALHO, 2020) e tudo isso com imenso apoio da mídia e da população, o que a transformou no mais perigoso elemento de exceção no uso do Direito no Brasil. Esse projeto político assumido por membros do Judiciário parece ter apenas um projeto para o Brasil: o combate à corrupção e a suspensão de direitos e garantias fundamentais, de forma que até o desenvolvimento nacional passou a ser secundário diante da "lava jato".

O solipsismo de aplicadores do Direito representam hoje no Brasil uma das maiores dificuldades de consolidação de padrões democráticos de decisão, mas estes casos, quando isolados não chegam a gerar uma ameaça institucionalizada à democracia e ao império da lei, o grande problema é quando o solipsismo, através do ativismo judicial começa a tomar para si características de populismo, tal como na operação "lava jato", que no ímpeto de fazer avançar operações contra corrupção, acabou enfraquecendo a democracia e o Estado de Direito reproduzindo estratégias adotadas por populistas e líderes iliberais, que buscam ao redor do mundo minar as instituições em benefício próprio. (SA E SILVA, 2020). (Se Deltan não entendeu bem o porquê de ter sido condenado no STJ, talvez este parágrafo ajude.)

Ziel Lopes (2020) bem nos lembra que alguma racionalidade jurídica é necessária para sustentar o projeto de democracia que perseguimos até aqui. Os sentidos das palavras são um dos pilares de nossa democracia, e diante dos objetivos da "lava jato" eles foram rechaçados e desconsiderados em nome do solipsismo de alguns poucos agentes do estado, diante das arbitrariedades cometidas pela operação lava a jato a democracia brasileira ainda persistiu, mas assim como a indústria nacional foi enfraquecida. Ao procurador Deltan Dallagnol e ao seus camaradas, que ainda no exercício de suas atribuições profissionais como procuradores pagavam outdoors promovendo seu projeto político populista e antidemocrático, e que combinavam sentenças com um certo juiz, recomendo o conhecimento proporcionado pela filosofia, que é resultado de longos séculos de amadurecimento intelectual, a que podemos ter acesso através autores e "juristas" como Lenio Streck, Ronald Dworkin, Wittgenstein e Gadamer. Caso isso não seja suficiente, recomendo apenas vergonha na cara.

Referências:
DWORKIN, Ronald. Law's empire. Cambridge: The Kelknap Press, 1986.
DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. Tradução de Nelson Boeira. São Paulo: WMF, 2017.
DWORKIN, Ronald. Justice in Robes. Cambridge: Cambridge Press, 2000.
KANT, Immanuel. Resposta à pergunta: o que é o iluminismo. Lisboa: Edições 70, 1990.
LOPES, Ziel Ferreira. Democracia e Desacordos Jurídicos. Estado da Arte – Estadão, [s.l.], 1/10/2020. Acesso em: 20/10/2020
SA E SILVA, Fabio de. From Car Wash to Bolsonaro: Law and Lawyers in Brazil's Illiberal Turn (2014–2018). Journal of Law and Society, Cardiff, n. 47 p. 90-110, 2020
STRECK, Lenio; CARVALHO, Marco Aurélio de. O livro das Suspeições. Porto Alegre: Prerrogativas, 2020.
STRECK, Lenio. Dicionário de Hermenêutica: quarenta temas fundamentais da teoria do Direito à luz da crítica hermenêutica do Direito. Belo Horizonte (MG): Letramento, 2017a.
STRECK, Lenio. O que é isto: decido conforme minha consciência? Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2017b.
WITTGENSTEIN, Ludwig. Observações filosóficas. Tradução de Adail Sobral e Maria Stela Gonçalves. São Paulo: Edições Loyola, 2005

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