Ambiente Jurídico

STF: pauta verde e precedentes internacionais

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2 de abril de 2022, 8h00

O Supremo Tribunal Federal iniciou, no último dia 30, o julgamento da chamada "pauta verde". Referida pauta ecológica engloba a ADPF 760 (Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia — PPCDAm); a ADPF 735 (Operação Verde Brasil 2); a ADPF 651 (Fundo Nacional do Meio Ambiente); a ADO 54 (omissão do governo federal no combate ao desmatamento); a ADO 59 (Fundo Amazônia); a ADI 6.148 (Resolução Conama 491/2018 sobre padrões de qualidade do ar); e, finalmente, a ADI 6.808 (MP 1.040/2021, convertida na Lei 14.195/2021, sobre a concessão automática de licença ambiental). Certamente as cortes constitucionais de outros países possuem precedentes que, pelo seu elevado grau técnico e científico, por certo, podem servir de paradigmas para o egrégio STF, guardião da Constituição Cidadã de 1988, nas futuras decisões sobre os referidos litígios. Aliás, o STF, apesar de criticado, no mais das vezes injustamente, e às vezes de modo deselegante e agressivo, tem prestado relevantes serviços à democracia e ao Estado democrático e socioambiental de Direito brasileiro em momentos importantes e cruciais da vida nacional.

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Pois bem, entre outros, entendemos como casos que não podem ser esquecidos para solução dessa pauta alguns leading cases. Essa lista que elaboramos começa por Massachusets v. Epa, julgado pela Suprema Corte norte-americana em 2007, esta decisão conferiu ao estado de Massachusetts "legitimidade" (standing to sue) [1] para ingressar com processo judicial contra a agência regulatória ambiental Environmental Protection Agency (EPA), em função dos danos que o aquecimento global havia causado e ainda poderia causar ao seu território, incluindo a submersão de propriedades públicas no litoral devido ao aumento do nível dos oceanos. No mérito, a Suprema Corte considerou que a EPA teria obrigação de regular as emissões de dióxido de carbono e outros gases que contribuem para o aquecimento global dos novos veículos automotores, ou justificar a não regulação, pois, segundo a mesma, os danos associados às mudanças climáticas são sérios e amplamente reconhecidos [2]. A decisão significa importante paradigma no Direito Comparado ao admitir, expressamente, a existência e a emergência das mudanças climáticas de acordo com o consenso científico alcançado pelo Intergovernmental Panel on Climate Change (IPCC).

A Suprema Corte da Holanda, no final do ano de 2019, por sua vez, no caso Urgenda, declarou e emitiu decisão de cunho mandamental para que o governo nacional cortasse as emissões de gases de efeito estufa no país em 25% em relação aos níveis de 1990, até o final do ano de 2020. Foi a primeira vez que um Estado foi obrigado por um tribunal a adotar medidas efetivas contra as mudanças climáticas. De acordo com o chief justice da Suprema Corte, Kees Streefkerg, "por causa do aquecimento global, a vida, o bem-estar e as condições de vida de muitas pessoas ao redor do mundo, incluindo na Holanda, estão sendo ameaçadas". Aliás, na decisão, resta evidenciado que consequências catastróficas das emissões antrópicas já estão ocorrendo, o que é condizente com relatório da ONU [3].

A decisão menciona, com ênfase, e reafirma a importância do princípio da precaução [4]. A corte citou ainda decisão anterior da Corte Europeia dos Direitos Humanos calcada no referido princípio. Como constou no referido leading case as alterações climáticas não mitigadas representam uma ameaça grave para muitos países, o que implica uma série de consequências adversas. Inegável é que existem incertezas sobre o que exatamente irá acontecer, mas o que não parece incerto é o fato de que a opinião predominante, tanto política como científica, consolidou-se no sentido de que as alterações climáticas devem ser mantidas muito abaixo dos 2°C de aumento (tendo como paradigma inicial o ano de 1750) e que uma série de catástrofes irá ocorrer se esse limite médio for ultrapassado nos próximo doze anos, como o tribunal reconheceu de modo detalhado ao longo de todo o julgamento [5].

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No Paquistão, o Supremo Tribunal de Lahore julgou procedente o pedido de Ashgar Leghari, um agricultor local, que demandou o governo nacional por falhas e omissões na execução da Política Nacional de Mudanças Climáticas de 2012 e no plano governamental denominado Estrutura para Implementação da Política de Mudanças Climáticas (2014-2030).

Em 4 de setembro de 2015, a corte, invocando princípios de Direito Constitucional e do Direito Internacional, declarou que "o atraso e a letargia do Estado na implementação destas normas violam os direitos fundamentais dos cidadãos". O tribunal, em sua decisão, determinou: 1) que os ministérios do governo do Paquistão nomeassem uma pessoa focal especializada no tema, mudanças climáticas, para auxiliar e garantir a implementação de uma lista de pontos de ação até 31 de dezembro de 2015; e 2) a criação de uma Comissão de Mudanças Climáticas composta por representantes dos principais ministérios, organizações não governamentais e experts para monitorar e fiscalizar o progresso das ações governamentais [6].

Em 25 de janeiro de 2018, o tribunal emitiu uma nota sobre o relatório do Comitê de Mudanças Climáticas, observando que, no período de setembro de 2015 a janeiro de 2017, 66% das ações prioritárias da Estrutura de Implementação da Política de Mudanças Climáticas foram implementadas. Esse fato significou, nesta era de aquecimento global e de desastres causados por fatores antrópicos [7], sem dúvida, um grande avanço. Essa, portanto, foi uma das consequências positivas do caso climático ora analisado [8].

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De acordo com a corte, portanto, o fracasso das autoridades governamentais paquistanesas em implementar em tempo o Quadro Nacional de Política Climática "violou os direitos fundamentais dos cidadãos que precisam ser salvaguardados". Na fundamentação da decisão, a corte citou a incidência direta dos seguintes direitos fundamentais e princípios constitucionais para o deslinde do feito:

a) Direito à vida (artigo 9), que inclui o direito a um ambiente saudável e limpo;

b) O direito à dignidade humana (artigo 14);

c) Os princípios constitucionais de democracia, da igualdade, da justiça social, da justiça econômica e da justiça política, que incluem no seu âmbito e compromisso os princípios ambientais internacionais do desenvolvimento sustentável, da precaução, da avaliação do impacto ambiental, da equidade intergeracional e intrageracional e a doutrina da confiança pública (public trust doctrine) [9].

A corte, portanto, aplicou, no caso, de modo mais abrangente e aprofundado, os direitos fundamentais e os princípios constitucionais se comparado o mesmo com célebres e exitosos litígios climáticos, como o caso Urgenda na Holanda [10]. Prevaleceu em Leghari o princípio da justiça ambiental, acompanhado do entendimento quase universalizado da necessidade imediata de combate ao aquecimento global. A referida tradição da justiça ambiental, consubstanciada em ações locais, de acordo com a decisão da corte, precisa alcançar, em caráter urgente, uma dimensão globalizada. O tribunal, portanto, na decisão, concretizou direitos fundamentais com base na Constituição paquistanesa.

Referida abordagem holística, imbuída de ativismo, aliás, é uma característica não apenas da jurisprudência consolidada pelo Poder Judiciário do Paquistão, mas também está enraizada nos precedentes das vizinhas cortes indianas, em especial nesta era de sexta extinção em massa de espécies [11]. O Supremo Tribunal de Lahore, além de declarar, na decisão, a violação de direitos fundamentais, emitiu ordem, portanto, com a finalidade de reparar e de minorar os efeitos das referidas ações e omissões inconstitucionais.

Em consonância com a atual tendência global no sentido do reconhecimento dos direitos constitucionais ambientais e climáticos, o Supremo Tribunal Irlandês, em decisão unânime dos seus sete juízes, reconheceu que o governo não pode estabelecer compromissos climáticos de longo prazo sem demonstrar, previamente, como eles serão alcançados no curto prazo. A corte, portanto, adotou, ao menos nesse item, uma posição holística e uma perspectiva intergeracional. Essa decisão abriu a importante perspectiva da criação de um mecanismo constitucional pelo qual os cidadãos, preocupados com o aquecimento global, podem obrigar um governo relutante a adotar medidas sérias para enfrentar o desempenho desanimador, na esfera política, para o enfrentamento da crise climática. O reconhecimento e a aplicação do referido direito são compatíveis com os precedentes constitucionais em nível mundial e com os compromissos internacionais assumidos pela Irlanda na temática mudança climática.

O Supremo Tribunal declarou, outrossim, a obrigação legal do governo irlandês de estabelecer medidas consistentes para alcançar o objetivo de transição nacional como previsto pela Lei de Ação Climática e Desenvolvimento de Baixo Carbono de 2015. A Seção 4 da lei exigia a adoção de um Plano Nacional de Mitigação que especificasse a forma como o governo se propõe alcançar o objetivo da mencionada transição nacional para uma economia de baixo carbono, resistente ao clima e ambientalmente sustentável até 2050 [12].

Numa histórica decisão, por maioria de 6 a 3, que se torna um precedente para o direito climático, a Suprema Corte do Canadá decidiu que o combatido Greenhouse Gas Pollution Pricing Act de 2018 é constitucional em virtude, igualmente, da existência do consenso científico de que as emissões de gases de efeito de estufa contribuem para as mudanças climáticas. Outro ponto enfocado pela corte foi de que todos os países comprometeram-se a reduzir drasticamente as suas emissões de gases de efeito estufa nos termos do Acordo de Paris de 2015 [13].

O STF possui à disposição, portanto, além de seus próprios precedentes, por si só, progressistas e paradigmáticos em matéria de Direito Ambiental, leading cases importantes provenientes de outros sistemas constitucionais que podem, juntamente com a qualificada doutrina, brasileira e estrangeira, contribuir decisivamente para decisões históricas que talvez declarem, de modo revolucionário, a existência de um direito constitucional fundamental ao clima estável em nosso país [14].

 


[1] De acordo com o Black’s Law Dictionary, standing, no direito norte-americano, pode ser conceituado comoo direito da parte de formular uma demanda ou buscar a implementação judicial de um dever ou direito (BRYAN, Garner A. (ed.). Black’s Law Dictionary. 9. ed. St. Paul: West Publishing, 2009. p. 1536).

[2] Sobre o caso, ver recente e festejada obra: LAZARUS, Richard J. The Rule of Five: Making Climate History of Supreme Court. Cambridge: Harvard University Press, 2020; JUSTITIA US Supreme Court. Massachusetts v. EPA, 549 U.S. 497 (2007). Disponível em: https://supreme.justia.com/cases/federal/us/549/497/#tab-opinion-1962180. Acesso em: 5/3/2022; UNITED STATES. Department of Justice. Massachusetts v. EPA. Disponível em: https://www.justice.gov/enrd/massachusetts-v-epa. Acesso em: 5/6/2020; Para uma reflexão sobre ocaso, vide: CANNON, Jonathan Z. Environment in the Balance: the green movement and the Supreme Court. Cambridge: Harvard University Press, 2015. Edição Kindle. Posição 1305-1529.

[3] UNITED NATIONS ENVIRONMENTAL PROGRAMME -(UNEP). Intergovernmental Panel on Climate Change. Global Warming of 1,5ºC. Disponível em: http://www.ipcc.ch/report/sr15/. Acesso em: 22/12/2020.

[4] Sobre o tema, ver: WEDY, Gabriel. O princípio constitucional da precaução: como instrumento de tutela do meio ambiente e da saúde pública (de acordo com o direito das mudanças climáticas e o direito dos desastres). 3ª edição. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2020.

[5] COLUMBIA UNIVERSITY. Sabin Center for Climate Change Law. Urgenda Foundation v. State of the Netherlands. Disponível em: http://climatecasechartigocom/non-us-case/urgenda-foundation-v-kingdom-of-the-netherlands/. Acesso em: 25/3/2022.

[6] COLUMBIA UNIVERSITY.Sabin Center for Climate Change Law. Leghari v. Federation of Pakistan, 2019. Disponível em: http://climatecasechart.com/non-us-case/ashgar-leghari-v-federation-of-pakistan/. Acesso em 30/3/2022.

[7] A respeito do tema, ver: SUNSTEIN, Cass. Averting Catastrophe: Decision Theory for COVID-19, Climate Change, and Potential Disasters of All. New York: NYU Press, 2021; GATES, Bill. How to Avoid a Climate Disaster: The Solutions We Have and the Breakthroughs We Need. New York: Knopf, 2021.

[8] Sobre litígios climáticos, especificamente, ver: WEDY, Gabriel. Climate Litigation in Brazil, págs. 271-287. In: KAHL, Wolfgang; WELLER, Marc-Phillippe. Climate Change Litigation: a handbook. Munich: C.H.Beck, 2021; WEDY, Gabriel. Climate Legislation and Litigation in Brazil. New York: Columbia Law School, 2017. Disponível em: http://columbiaclimatelaw.com/files/2017/10/Wedy-2017-10-Climate-Legislation-and-Litigation-in-Brazil.pdf. Acesso em: 20/8/2020; WEDY, Gabriel. Litígios climáticos: de acordo com o direito brasileiro, norte-americano e alemão. Salvador: Editora Juspodivm, 2019.

[9]COLUMBIA UNIVERSITY. Sabin Center for Climate Change Law. Leghari v. Federation of Pakistan, 2019. Disponível em: http://climatecasechart.com/non-us-case/ashgar-leghari-v-federation-of-pakistan/. Acesso em 30/3/2022.

[10] STEIN, Eleanor; CASTERMANS, Alex Geert. Case Comment—Urgenda v. The State of the Netherlands: The “Reflex Effect”— Climate Change, Human Rights, and the Expanding Definitions of the Duty of Care. In: Mac Gill Journal of Sustainable Development v. 13-2 (2017). Montreal. p. 301-324. Disponível em: https://www.mcgill.ca/mjsdl/jsdlponline/volume-132-2017. Acesso em: 30/3/2022.

[11] RAJAMANI, Lavanya; GHOSH, Shibani. India. In: LORD, Richard; GOLDBERG, Silke; RAJAMANI, Lavanya; BRUNNÉE, Jutta. Climate Change Liability: Transnational Law and Practice. Cambridge: Cambridge University Press, 2012, pp. 139–177.Sobre direito climático, ver: WEDY, Gabriel. Climate Change and Sustainable Development in Brazilian Law. New York: Columbia Law School, 2016. Disponível em: https://web.law.columbia.edu/sites/default/files/microsites/climate-change/files/Publications/Collaborations-Visiting-Scholars/wedy_-_cc_sustainable_development_in_brazilian_law.pdf. Acesso em: 30/3/2022; WEDY, Gabriel; PIMENTEL, Cacia, Climate Change and Innovation in Brazil: Threats and Opportunities, Sabin Center for Climate Change Law, Columbia Law School, January 2021 (2021). Disponível em: https://scholarship.law.columbia.edu/sabin_climate_change/. Acesso em: 30/3/2022.

[12] BAIII. Supreme Court of Ireland Decisions. Friends of the Irish Environment CLG V. The Governnment of Ireland and the Attorney General.Disponível em: https://www.bailii.org/ie/cases/IESC/2020/2020IESC49.html. Acesso em: 26/3/2022.

[13] SUPREME COURT OF CANADA. Reference re Greenhouse Gas Pollution Pricing Act. Disponível em: https://www.scc-csc.ca/case-dossier/cb/2021/38663-38781-39116-eng.aspx. Acesso em: 26/3/2022.

[14] Sobre referida possibilidade, ver: SARLET, Ingo W.; FENSTERSEIFER, Tiago. Curso de direito ambiental. 3ª ed. Rio de Janeiro: GEN/Forense, 2022, p. 318-320; SARLET, Ingo W.; FENSTERSEIFER, Tiago. Direito constitucional ecológico. 7ª ed. São Paulo: Thomson Reuters, 2021, p. 74-76; SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, REsp 1.782.692/PB, 2ª T., rel. min. Herman Benjamin, j. 13.08.2019; WEDY, Gabriel. Desenvolvimento sustentável na era das mudanças climáticas: um direito fundamental. São Paulo: Editora Saraiva, 2018.

Autores

  • é juiz federal, membro do Grupo de Trabalho Observatório do Meio Ambiente e das Mudanças Climáticas do Poder Judiciário instituído pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), professor no programa de pós-graduação e na Escola de Direito da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), professor de Direito Ambiental na Escola Superior da Magistratura Federal (Esmafers), pós-doutor, doutor e mestre em Direito pela PUC-RS, visiting scholar na Columbia Law School (Sabin Center for Climate Change Law) e na Universität Heidelberg (Institut für deutsches und europäisches Verwaltungsrecht) e diretor de assuntos internacionais do Instituto O Direito por um Planeta Verde (IDPV).

  • é desembargador aposentado, advogado e professor.

  • é defensor público e professor.

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