Opinião

Responsabilização criminal do particular que contrata direto com Poder Público

Autores

  • Sérgio Rosenthal

    é advogado mestre em direito penal pela Universidade de São Paulo (USP) ex-presidente do Movimento de Defesa da Advocacia (MDA) e ex-presidente da Associação dos Advogados de São Paulo (Aasp).

  • Marcela Gregorim Otero

    é advogada especialista em Direito Penal Econômico pela Universidade de Coimbra em parceria com o IBCCRIM e em Crimes Eleitorais e Processo Penal Eleitoral pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS).

1 de abril de 2022, 14h05

Em 1º de abril de 2021, foi sancionada a nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Lei nº 14.133), por meio da qual todos os crimes previstos na Lei nº 8.666/93 foram revogados e substituídos por tipos penais de conteúdo similar. Passado um ano da referida alteração legislativa, porém, os Tribunais pátrios pouco se pronunciaram sobre o assunto e, quando o fizeram, na maioria das vezes, limitaram-se a genericamente invocar o princípio da continuidade normativo-típica.

Spacca
Advogado Sérgio Rosenthal

Nesse sentido, o Superior Tribunal de Justiça entendeu recentemente que, embora a nova lei tenha revogado o artigo 89, da Lei nº 8.666/93, reproduziu a mesma conduta no artigo 337-E, do Código Penal, que trata da contratação direta ilegal, razão pela qual não ocorreu a denominada "abolitio crimininis". Além disso, concluiu a Corte Superior de Justiça que a Lei nº 14.133/21 teria "reiterado integralmente, ainda que com outra redação, os dizeres do artigo 89, da Lei de Licitações" [1].

Segundo se extrai de simples leitura dos dispositivos legais citados, contudo, tal conclusão não nos parece correta.

Com efeito, dispunha o artigo 89, da Lei nº 8.666/93: "Dispensar ou inexigir licitação fora das hipóteses previstas em lei, ou deixar de observar as formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade. Parágrafo único. Na mesma pena incorre aquele que, tendo comprovadamente concorrido para a consumação da ilegalidade, beneficiou-se da dispensa ou inexigibilidade ilegal, para celebrar contrato com o Poder Público". Por sua vez, a Lei nº 14.133/21 estabeleceu a seguinte redação para o novel artigo 337-E, do Código Penal: "Admitir, possibilitar ou dar causa à contratação direta fora das hipóteses previstas em lei".

Como se vê, se por um lado os verbos nucleares escolhidos pelo legislador (admitir, possibilitar, dar causa) demonstram o desejo de prosseguir com a criminalização da dispensa e inexigibilidade de licitação (e consequente contratação direta) fora das hipóteses legais, por outro, é nítida, ao nosso ver, a intenção de descriminalizar a conduta do funcionário público que simplesmente deixar de "observar as formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade", bem como de excluir do referido tipo penal a conduta do particular que, "tendo comprovadamente concorrido para a consumação da ilegalidade, beneficiou-se da dispensa ou inexigibilidade ilegal, para celebrar contrato com o Poder Público", situações que restaram deliberadamente suprimidas da redação final do artigo 337-E, do Código Penal.

Sobre a primeira conduta mencionada, aliás, já se pronunciou o Tribunal Regional Federal da 3ª Região ao julgar a Apelação Criminal nº 0000886-02.2013.4.03.6118: "Como se vê, o legislador reproduziu apenas parcialmente a redação do artigo 89, caput, da Lei nº 8.666/93, vale dizer, não inseriu a segunda parte do preceito primário do artigo revogado no artigo 337-E, do Código Penal, o que caracteriza, portanto, 'abolitio criminis' da conduta pela qual o apelante foi denunciado".

Como bem pontuado pelo desembargador Federal José Lunardelli, relator daquele feito, a opção legislativa pela descriminalização do descumprimento de formalidades concernentes à contratação direta pode ser extraída, inclusive, do fato de que, conquanto o Projeto de Lei nº 6814/2017 (que deu azo à Lei nº 14.133/21), tenha previsto referida conduta em sua redação primária [2], a mesma restou propositadamente suprimida durante sua tramitação na Câmara dos Deputados, de modo que "a possível 'ratio' para a inegável 'abolitio criminis' operada pela novel legislação é encontrada, muito provavelmente, no entendimento de que discrepâncias formais, relacionadas com formalismos que não comprometem o interesse público, não mais adquirem relevância penal, tratando-se de irregularidade a ser reprimida apenas na seara administrativa".

É certo, ainda, que idêntica ponderação deve ser aplicada à conduta anteriormente tipificada no parágrafo único, do artigo 89, da Lei nº 8.666/93 (relativa à incriminação do particular beneficiado pela dispensa ou inexigibilidade ilegal), também propositalmente suprimida da redação final do artigo 337-E, do Código Penal, pelo órgão legislador [3].

Destarte, o novo dispositivo permite a responsabilização, como autor do delito de contratação direta ilegal, apenas e tão somente do funcionário público responsável pela mesma, uma vez que todas as ações típicas escolhidas pelo legislador se encontram inseridas no âmbito restrito de sua competência, na medida em que "contratações administrativas pressupõem o exercício por um agente público de competência administrativa, instituída e delimitada por norma jurídica específica" [4], "pois somente quem está investido no cargo específico tem o poder legal de decisão" [5].

Por conseguinte, ao particular que firmar contrato com o poder público, sem licitação, fora das hipóteses legais, não poderá ser imputada a autoria do crime descrito no artigo 337-E, do Código Penal, posto que o mesmo não tem competência para admitir, possibilitar ou dar causa à contratação direta em hipótese alguma.

Evidentemente, a inculpação do particular poderá de dar, eventualmente, mediante a aplicação do artigo 29, do Código Penal. Essa responsabilização por participação, entretanto, não poderá ocorrer de forma automática, demandando a conjugação de algumas condições.

Em primeiro lugar, a conduta praticada pelo particular deverá extrapolar a mera assinatura do contrato. Vale dizer, deverá restar comprovada a prática de uma conduta dolosa apta a influir na decisão do funcionário público competente para contratar diretamente fora das hipóteses legais.

A responsabilização criminal do extraneus demandará, também, prova inequívoca de sua ciência quanto à inocorrência das hipóteses legais de dispensa ou inexigibilidade de licitação, a qual não poderá ser presumida, uma vez que o particular não possui a obrigação legal de as conhecer, nem os predicados necessários para compreendê-las.

Por outro lado, remanesce a exigência de demonstração da específica intenção de causar dano ao erário (elemento subjetivo especial), conforme pacífica jurisprudência relativa ao crime anteriormente previsto no artigo 89, da Lei 8.666/93 [6].

Será imprescindível, finalmente, a demonstração do efetivo prejuízo à administração pública, cuja aferição, por seu turno, deverá preceder de concreta, criteriosa e técnica avaliação, não podendo o contrato, por si só, ser considerado um benefício indevido.

Resta claro, portanto, não ser correta a genérica afirmação de que o artigo 337-E, do Código Penal, constitui mera reprodução daquele anteriormente previsto no artigo 89, da Lei nº 8.666/93. Tampouco será possível a inculpação do particular como autor do novo tipo penal, sendo certo que para sua corresponsabilização como partícipe (artigo 29, do Código Penal) do referido delito será imprescindível a comprovação 1) de que efetivamente concorreu para o resultado injusto — contratação direta ilegal — por meio de uma ação ou omissão diversa e anterior à assinatura do contrato; 2) praticada em conluio com o funcionário público que detém a competência legal para realizar os verbos nucleares do tipo; 3) com plena ciência de que o caso em concreto não estava abarcado nas hipóteses legais de dispensa e inexigibilidade; 4) com a finalidade de causar dano ao erário; 5) o qual deverá restar efetivamente demonstrado.


[1] APn 993/DF, relator ministro Francisco Falcão, Corte Especial, DJe 03/11/2021.

[2] Redação originária da PL nº 6814/2017: "Artigo 337-E. Contratar diretamente fora das hipóteses previstas em lei ou deixar de observar as formalidades pertinentes à contratação direta".

[3] Redação originária da PL nº 6814/2017: "Parágrafo único. Incorre na mesma pena aquele que, tendo comprovadamente concorrido para a consumação da ilegalidade, beneficiou-se da contratação direta ilegal para celebrar contrato com o poder público".

[4] FILHO, Marçal Justen. A repressão penal a infrações em licitações e contratação administrativas  considerações introdutórias, In Crimes de licitação e contratações públicas: comentários aos tipos penais, de acordo com a nova Lei de Licitações e Contratações Públicas (Lei 14.133/2021). São Paulo: Revista dos Tribunais, Thomson Reuters Brasil, 2021. E-book: página RB-1.13.

[5] MARTINELLI, João Paulo. Crimes de licitação. In. SOUZA, Luciano Anderson, ARAÚJO, Marina Pinhão (Coord.). Direito Penal Econômico  Vol. 2. São Paulo: Revista dos Tribunais, Thomson Reuters Brasil, 2021. E-book: página RB-4.11.

[6] Neste sentido, a 134ª Edição da Jurisprudência em Teses do Superior Tribunal de Justiça: "Para a configuração do delito tipificado no artigo 89 da Lei n. 8.666/1993, é indispensável a comprovação do dolo específico do agente em causar dano ao erário, bem como do prejuízo à administração pública".

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