Prática Trabalhista

As armadilhas da 'CLT flex' ou 'CLT cotas'

Autores

  • Ricardo Calcini

    é professor advogado parecerista e consultor trabalhista. Atuação estratégica e especializada nos Tribunais (TRTs TST e STF). Coordenador trabalhista da Editora Mizuno. Membro do Comitê Técnico da Revista Síntese Trabalhista e Previdenciária. Membro e Pesquisador do Grupo de Estudos de Direito Contemporâneo do Trabalho e da Seguridade Social da Universidade de São Paulo (Getrab-USP) do Gedtrab-FDRP/USP e da Cielo Laboral.

  • Leandro Bocchi de Moraes

    é pós-graduado lato sensu em Direito do Trabalho e Processual do Trabalho pela Escola Paulista de Direito (EPD) pós-graduado lato sensu em Direito Contratual pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) pós-graduado em Diretos Humanos e Governança Econômica pela Universidade de Castilla-La Mancha pós-graduando em Direitos Humanos pelo Centro de Direitos Humanos (IGC/Ius Gentium Coninbrigae) da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra membro da Comissão Especial da Advocacia Trabalhista da OAB-SP auditor do Tribunal de Justiça Desportiva da Federação Paulista de Judô e pesquisador do núcleo O Trabalho Além do Direito do Trabalho da Universidade de São Paulo (NTADT/USP).

30 de setembro de 2021, 8h00

Nos dias atuais e, principalmente, diante das dificuldades econômicas advindas com a pandemia, ressurge a discussão da utilização pelas empresas de um modelo de contratação diferenciado, conhecido como "CLT flex" ou "CLT por cotas".

Nesse sentido, impende frisar que a nomenclatura "flex" se trata de um acrônimo de flexível, ou seja, uma legislação mais ajustável aos interesses dos envolvidos. Mas será que tal prática garante segurança aos empregados e, sobretudo, às empresas? E, ainda, existe embasamento legal para validar esse formato de contratação ou estaríamos diante de uma violação da legislação trabalhista?

Conforme nos ensina o professor Henrique Correa [1], "flexibilizar é diminuir a rigidez das leis trabalhistas pela negociação coletiva, ou seja, é dar ênfase ao negociado em detrimento do legislado. Na flexibilização permanecem as normas básicas de proteção ao trabalhador, mas permite-se maior amplitude dos acordos e convenções para a adaptação das cláusulas contratuais às realidades econômicas da empresa e às realidades regionais".

A partir do conceito acima, vale destacar que a Constituição Federal, em seu artigo 7º [2], traz algumas hipóteses de flexibilização, como, por exemplo, são os casos de compensação de horários e redução da jornada de trabalho através de instrumentos coletivos, desde que não seja ultrapassado os limites legais diário e semanal.

De seu turno, a CLT também autoriza algumas hipóteses de flexibilização de direitos, tais como: regime de trabalho por tempo parcial [3]; jornada 12 x 36 [4]; prevalência do negociado sobre o legislado [5], entre outros.

Por sua vez, o Tribunal Superior do Trabalho, através da Súmulas nºs 423 [6] e 85 [7], sinaliza em que circunstâncias são reconhecidas as possibilidades de flexibilização.

Entrementes, o modelo de contratação "CLT flex" é aquele em que trabalhador obterá o seu ordenado em duas partes, quais sejam, uma em conformidade com as normas da CLT, e outra em benefícios; lado outro, na "CLT cotas", o recebimento do salário também se divide em uma parte seguindo as disposições da CLT, e outra — e aqui, no caso, reside a diferença — como produção intelectual ou cotas de utilidade.

Destarte, no que diz respeito a incidência de tributos na folha de pagamento pela empresa, os encargos somente recairão sobre o valor do salário ajustado na carteira de trabalho, de modo que o empregador, em tese, teria uma desoneração em sua carga tributária.

Para aqueles que defendem esse tipo de contratação, e, inobstante não exista nenhum dispositivo expresso na legislação disciplinando a questão, se fundamentam na interpretação do artigo 458 da CLT. Isso porque referido preceito legal dispõe que "além do pagamento em dinheiro, compreende-se no salário, para todos os efeitos legais, a alimentação, habitação, vestuário ou outras prestações 'in natura' que a empresa, por força do contrato ou do costume, fornecer habitualmente ao empregado".

Se é verdade que numa primeira análise possa parecer que o empregador estará isento das elevadas cargas tributárias ao aderir a este modelo de contratação, caso seja constatado que o pagamento de tais benefícios tem o intuito de fraudar a lei os prejuízos poderão ser enormes.

A título de exemplo, podemos mencionar a "pejotização", em que a contratação, suspostamente, acontece entre duas empresas, mas, na realidade, se trata em uma típica relação de emprego, com todos os requisitos contidos no artigo 2º e 3º da CLT.

Neste cenário da contratação por meio de pessoa jurídica, uma vez evidenciada a fraude na relação havida, poderá ser reconhecido o vínculo empregatício, com o registro em CTPS do valor mensal pactuado, além de ser devido o pagamento de todos os encargos e direitos consectários, tais como: aviso prévio, 13º salário, férias acrescidas de um terço, FGTS, horas extras, entre outros.

Dito isso, não basta que o salário seja desmembrado para a obtenção de uma maior parcela de verbas de natureza indenizatória e naturalmente isentas de encargos, se, contudo, isso for apenas uma forma simulada visando praticar uma manobra perante a legislação celetária.

Vale lembrar ainda que a CLT, em seu artigo 9º [8], considera nulo todo e qualquer ato realizado com o fim de desfigurar os mandamentos legais. Nesse prumo, foi o recente entendimento do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região [9] ao analisar um caso envolvendo referida temática.

Não restam dúvidas de que os citados modelos de contratação, face à ausência expressa de amparo legal, e, mais, com base no entendimento jurisprudencial predominante, podem trazer uma visão equivocada para as empresas de que haverá uma economia com a redução encargos trabalhistas e previdenciários.

É preciso, em realidade, que aqueles que se utilizam de tais formas de contrato, com o intuito de solucionar os problemas de custos do trabalho, sejam cautelosos, vez que a redução de direitos dos trabalhadores não resolverá os problemas tributários e fiscais.

Em arremate, é importante ressaltar que o entendimento dos tribunais trabalhistas é pacífico no sentido de que, sendo verificada a ilicitude do procedimento, as empresas, além de poderem ser fiscalizadas e autuadas perante os órgãos competentes, dificilmente terão êxito em suas teses defensivas caso sejam acionadas perante o Poder Judiciário laboral.

 


[1] Curso de Direito do Trabalho. 6ª revista atualizada ampliada. 2021. Editora Juspodivm. página 145.

[2] "Artigo 7º – São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: (…). XIII – duração do trabalho normal não superior a oito horas diárias e quarenta e quatro semanais, facultada a compensação de horários e a redução da jornada, mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho".

[3] "Artigo 58-A – Considera-se trabalho em regime de tempo parcial aquele cuja duração não exceda a trinta horas semanais, sem a possibilidade de horas suplementares semanais, ou, ainda, aquele cuja duração não exceda a vinte e seis horas semanais, com a possibilidade de acréscimo de até seis horas suplementares semanais. (…). §2º. Para os atuais empregados, a adoção do regime de tempo parcial será feita mediante opção manifestada perante a empresa, na forma prevista em instrumento decorrente de negociação coletiva".

[4] "Artigo 59-A – Em exceção ao disposto no art. 59 desta Consolidação é facultado às partes, mediante acordo individual escrito, convenção coletiva ou acordo coletivo de trabalho, estabelecer horário de trabalho de doze horas seguidas por trinta e seis horas ininterruptas de descanso, observados ou indenizados os intervalos para repouso e alimentação".

[5] "Artigo 611-A – A convenção coletiva e o acordo coletivo de trabalho têm prevalência sobre a lei quando, entre outros, dispuserem sobre: I – pacto quanto à jornada de trabalho, observados os limites constitucionais; II – banco de horas anual; III – intervalo intrajornada, respeitado o limite mínimo de trinta minutos para jornadas superiores a seis horas; IV – adesão ao Programa Seguro-Emprego (PSE), de que trata a Lei no 13.189, de 19 de novembro de 2015; V – plano de cargos, salários e funções compatíveis com a condição pessoal do empregado, bem como identificação dos cargos que se enquadram como funções de confiança; VI – regulamento empresarial; VII – representante dos trabalhadores no local de trabalho; VIII – teletrabalho, regime de sobreaviso, e trabalho intermitente; IX – remuneração por produtividade, incluídas as gorjetas percebidas pelo empregado, e remuneração por desempenho individual; X – modalidade de registro de jornada de trabalho; XI – troca do dia de feriado; XII – enquadramento do grau de insalubridade; XIII – prorrogação de jornada em ambientes insalubres, sem licença prévia das autoridades competentes do Ministério do Trabalho; XIV – prêmios de incentivo em bens ou serviços, eventualmente concedidos em programas de incentivo; XV – participação nos lucros ou resultados da empresa".

[6] "Súmula nº 423 do TST. TURNO ININTERRUPTO DE REVEZAMENTO. FIXAÇÃO DE JORNADA DE TRABALHO MEDIANTE NEGOCIAÇÃO COLETIVA. VALIDADE. Estabelecida jornada superior a seis horas e limitada a oito horas por meio de regular negociação coletiva, os empregados submetidos a turnos ininterruptos de revezamento não têm direito ao pagamento da 7ª e 8ª horas como extras".

[7] "Súmula nº 85 do TST. COMPENSAÇÃO DE JORNADA (…). II. O acordo individual para compensação de horas é válido, salvo se houver norma coletiva em sentido contrário. (ex-OJ nº 182 da SBDI-1 – inserida em 08.11.2000)".

[8] "Artigo 9º – Serão nulos de pleno direito os atos praticados com o objetivo de desvirtuar, impedir ou fraudar a aplicação dos preceitos contidos na presente Consolidação".

[9] Processo 1001941-21.21.2017.5.02.0024, Relatora Patrícia Cokeli Seller, 8ª Turma, Publicado em 29.06.2020.

Autores

  • Brave

    é mestre em Direito pela PUC-SP, professor de Direito do Trabalho da FMU, coordenador trabalhista da Editora Mizuno, membro do Comitê Técnico da Revista Síntese Trabalhista e Previdenciária, coordenador Acadêmico do projeto “Prática Trabalhista” (Revista Consultor Jurídico - ConJur), palestrante e instrutor de eventos corporativos pela empresa Ricardo Calcini | Cursos e Treinamentos, especializada na área jurídica trabalhista com foco nas empresas, escritórios de advocacia e entidades de classe, e membro e pesquisador do Grupo de Estudos de Direito Contemporâneo do Trabalho e da Seguridade Social da Universidade de São Paulo (Getrab-USP).

  • Brave

    é pós-graduado lato sensu em Direito do Trabalho e Processual do Trabalho pela Escola Paulista de Direito (EPD), pós-graduado lato sensu em Direito Contratual pela PUC-SP, auditor do Tribunal de Justiça Desportiva da Federação Paulista de Judô, membro da Comissão Especial de Direito do Trabalho da OAB-SP e pesquisador do Núcleo "Trabalho Além do Direito do Trabalho" da Universidade de São Paulo – NTADT/USP.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!