Opinião

As consequências da modulação dos efeitos das decisões em matéria tributária

Autores

  • Olavo Augusto Vianna Alves Ferreira

    é procurador do Estado de São Paulo. Doutor e mestre em Direito do Estado pela PUC-SP. Professor do Programa de Doutorado e Mestrado em Direito da Unaerp. Professor convidado de cursos de pós-graduação. Membro de listas de árbitros de diversas instituições arbitrais. Foi membro da Comissão Especial de Arbitragem do Conselho Federal da OAB. Autor de livros jurídicos. Coordenador acadêmico do sítio Canal Arbitragem.

  • João Henrique Gonçalves Domingos

    é doutorando e mestre em Direito. Especialista em Direito Tributário e Processo Tributário. MBA em Gestão e Negócios Internacionais pela FGV. Professor. Presidente da Comissão de Arbitragem da 12ª Seção da OAB em Ribeirão Preto. Advogado.

  • Carlos Eduardo Montes Netto

    é doutorando e mestre em Direitos Coletivos e da Cidadania pela Unaerp Ribeirão Preto-SP (Brasil) professor de cursos de graduação e pós-graduação e juiz de Direito do Estado de São Paulo.

30 de setembro de 2021, 18h08

Não é necessário muito esforço para constatar que o ordenamento jurídico brasileiro, especialmente o Direito Tributário, além de complexo, gera um profundo ambiente de insegurança jurídica, seja pelas constantes modificações legislativas, seja pela dificuldade de cumprimento das obrigações principais e acessórias, sem levar em conta as decisões emanadas de nossos tribunais, administrativos ou judiciais.

Na esfera legislativa, são comuns mudanças de normas, legais e infralegais, a edição de soluções de consulta, atos normativos, decretos etc., modificando uma gama quase imensurável de questões nas esferas estaduais, municipais e federal.

Estamos, por exemplo, em vias de uma reforma da legislação do imposto sobre a renda, pessoa física e jurídica, aprovada na Câmara dos Deputados a toque de caixa e, ao que tudo indica, baseada no empirismo. Espera-se, ao menos, que no Senado sejam ouvidos todos os setores da sociedade, impedindo-se retrocessos e que atrasem mais ainda a recuperação econômica em cambaleado ambiente pandêmico.   

Se pensarmos em decisões conflitantes e somente em nossos tribunais superiores, podemos citar, como exemplos, a edição da Súmula 276 pelo Superior Tribunal de Justiça, que isentava as sociedades civis de profissão regulamentada do pagamento da Cofins, em razão das disposições constantes da Lei Complementar 70/91. indevidamente "revogada" pela Lei Ordinária nº 9.876/98, entendimento este posteriormente modificado pelo STF, que entendeu que a citada lei complementar é materialmente ordinária.

Outro caso interessante diz respeito ao julgamento do Funrural, no qual o STF declarou a constitucionalidade, depois a inconstitucionalidade e, posteriormente, ao apreciar a Lei nº 10.256/2001, voltou a defender a constitucionalidade da exação. Há ainda a modificação pelo STF de entendimento há muito consolidado pelo STJ no tocante à não incidência de contribuições previdenciárias sobre o terço constitucional de férias.

Poderíamos citar inúmeros outros casos, mas os exemplos acima já são mais do que suficientes para demonstrar a instabilidade jurídica em matéria tributária e que reflete, diretamente, na percepção dos agentes econômicos e investidores, inclusive internacionais, implicando na revisão de investimentos e no cálculo do denominado "risco Brasil".

Porém, nada é mais nefasto ao empresário e investidor do que a celeuma causada quando o Pretório Excelso, em matéria tributária, julga pela inconstitucionalidade de uma norma, mas modula os efeitos da decisão.

A denominada "modulação dos efeitos da decisão" está prevista no artigo 27 da Lei nº 9.868/99, que, ao dispor sobre o julgamento da ação direta de inconstitucionalidade e da ação declaratória de constitucionalidade pelo STF, permite que, pela maioria de dois terços de seus membros, seja fixado um determinado momento para que, então, incidam os efeitos decorrentes da declaração de inconstitucionalidade.

Como se denota do próprio artigo 27 da citada Lei 9.868/99, são elencadas as razões sobre as quais se pode fundamentar a modulação, quais sejam, buscando-se a segurança jurídica e o excepcional interesse social.

Basta uma análise perfunctória para se perceber a amplitude, inclusive dada ao intérprete para se justificar a modulação — segurança jurídica e excepcional interesse social. Com relação à segurança jurídica, podemos conceituá-la como a certeza do regime jurídico aplicável a determinada hipótese, tendo como aspecto objetivo a estabilidade das relações jurídicas, evitando-se surpresas e permitindo o planejamento das atividades, sobretudo econômicas. É fundamental saber como, quanto, quando e quais relações jurídicas sofrem a incidência tributária.

Diante da afirmação acima, podemos identificar exemplos de influência e aplicação de aludido princípio da segurança jurídica, como é o caso das regras prescricionais e decadenciais, do respeito às limitações constitucionais ao poder de tributar (princípio da anterioridade), da aplicação da proporcionalidade, assim como pela dicção do artigo 5º, XXXVI, da CF/88, que determina o respeito ao direito adquirido, à coisa julgada e ao ato jurídico perfeito.

Interesse social, por sua vez, traz uma elasticidade considerável quanto ao seu entendimento, na medida em que a CF/88 prima pela extensa e elogiável proteção a direitos fundamentais do cidadão, como educação, saúde, segurança, lazer, previdência, ambiente, entre inúmeros outros, inclusive para a proteção das minorias, nem sempre representadas em pleitos via sufrágio universal.

Se levarmos em consideração que a arrecadação de tributos é a fonte principal de geração de recursos ao Estado e que todas as políticas públicas, mormente na área social, dependem de investimentos, é lícito concluir que todas as questões tributárias poderiam ser objeto de modulação dos efeitos da decisão, pois sendo a Fazenda Pública vencida, estará obrigada a deixar de cobrar e/ou devolver valores cobrados indevidamente, considerando que a exação foi embasada em norma inconstitucional.

A modulação em matéria tributária, com todo respeito aos entendimentos e justificativas contrárias, contudo, traz efeitos nefastos à economia nacional, contribuindo, e muito, para a manutenção e aumento do ambiente de instabilidade jurídica, não permitindo ao cidadão, empresário, investidor ou até mesmo ao consumidor ter a exata noção dos tributos devidos e dos custos da tributação.

Isso sem partirmos da ideia de que a modulação temporal dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade de uma norma tributária evidencia um verdadeiro "incentivo" à criação de normas sabidamente inconstitucionais, garantindo a arrecadação indevida de tributos por conta dos entes tributantes, na expectativa de que, em caso de modulação temporal, garantam um "ganho" arrecadatório, pois ainda que seja declarada inconstitucional, a norma terá produzido efeitos e impedirá, por exemplo, a restituição de  tributos recolhidos indevidamente.

A propósito, em 15/3/2017, no julgamento do RE 574.706/PR, foi reconhecida a inconstitucionalidade da inclusão do ICMS na base de cálculo do PIS e da Cofins, por não constituírem faturamento, uma vez que apenas transitam no caixa e contabilidade da empresa, sendo posteriormente repassados ao Estado. Essa decisão foi objeto de embargos declaratórios opostos pela União, com a finalidade de se aclarar a decisão, ou seja, definir qual o ICMS a ser excluído da base de cálculo e, ainda, para que houvesse a modulação.

O STF, em julgamento concluído em 13/5/2020, definiu que o ICMS a ser excluído da base de cálculo é o destacado em notas fiscais de venda, afastando a pretensão fazendária de ser reconhecido como o ICMS devido, mas em contrapartida modulou os efeitos da decisão para se aplicar apenas aos fatos geradores ocorridos após a primeira decisão de 15/3/2017, ressalvando-se as discussões existentes até essa data.

Inobstante às dúvidas que ainda possam existir com relação ao mencionado julgamento, como, por exemplo, no caso de ações posteriormente distribuídas e transitadas em julgado, o fato é que a decisão indica a interferência direta de uma decisão judicial no cenário econômico, gerando sérias distorções e consequências à economia nacional, o que implica na necessidade de revisão da "técnica de modulação".

Primeiro porque a modulação dos efeitos da decisão representa um incentivo ao ente tributante para a elaboração de normas inconstitucionais, pois, havendo a possibilidade de modulação, como no caso do ICMS na base de cálculo do PIS e da Cofins, "garante-se" parte de uma arrecadação inconstitucional.

Segundo porque empresas que discutiram a demanda anteriormente a 2017 poderão repetir os últimos cinco anos e as empresas que, partindo da premissa de constitucionalidade das normas, fielmente cumpriram sua obrigação de declaração e recolhimento e somente poderão se valer da decisão para os fatos geradores posteriores a março de 2017.

Empresas de um mesmo setor terão dezenas, centenas, milhares e milhões de reais a restituir, ao passo que outras, nenhum valor. Nas denominadas economias abertas e modernas, nas quais grande parte do sucesso de uma empresa está atrelado à sua capacidade de oferecer bons produtos e serviços ao mercado a preços competitivos essa desigualdade poderá levar empresas à bancarrota por uma simples questão concorrencial, uma distorção econômica causada por uma decisão judicial.

Segurança jurídica e interesse social não podem e não devem ser confundidos e justificados com a possibilidade de "rombo" nos cofres públicos. Não se trata, no caso, de argumento jurídico válido, devendo-se considerar, ainda, a existência de controles de constitucionalidade que deveriam existir, desde a esfera legislativa e, ainda, o fato de que a tributação é uma "exceção" à garantia do direito de propriedade, permitindo que o Fisco retire parte do que é do cidadão para fazer frente ao interesse público, mas desde que respeitados todos os princípios constitucionais.

Neste ano de 2021 há muitos julgamentos tributários de grande importância no STF, como é o caso, por exemplo, da aplicação da multa isolada em casos de compensação não homologada, da não incidência de tributação sobre os juros, do fator acidentário previdenciário, entre inúmeras outras, o que justifica o debate quanto à possibilidade de se modular os efeitos dessas decisões.

Há de se ter ainda, em matéria tributária, uma concepção econômica, não apenas sob a perspectiva arrecadatória, que pode ser ajustada para o futuro com a readequação da carga tributária, mas sobretudo a garantia da segurança jurídica, não devendo o Poder Judiciário atuar como agente desestabilizador da atividade econômica na já combalida economia brasileira, ávida por crescimento e investimentos.

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    é procurador do Estado de São Paulo. Doutor e mestre em Direito do Estado pela PUC-SP. Professor do Programa de Doutorado e Mestrado em Direito da Unaerp. Professor convidado de cursos de pós-graduação. Membro de listas de árbitros de diversas instituições arbitrais. Foi membro da Comissão Especial de Arbitragem do Conselho Federal da OAB. Autor de livros jurídicos. Coordenador acadêmico do sítio Canal Arbitragem.

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