Opinião

O bitcoin na condição de meio para a consumação de crimes econômicos

Autor

  • Leandro Bastos Nunes

    é procurador da República professor de cursos do MPU (Ministério Público da União) especialista em Direito Penal e Processo Penal e autor do livro "Evasão de Divisas" (Editora Juspodivm).

30 de setembro de 2021, 6h36

Introdução
Os criptoativos podem configurar uma espécie de meio de pagamento online, tendo surgido na década passada e, durante muito tempo, ficaram restritos ao ambiente dos empreendedores virtuais mais sofisticados. Contudo, paulatinamente foi conquistando adeptos e angariado espaço no mercado, o que desencadeou a atual preocupação gerada nos inúmeros representantes de Estado.

Com efeito, trata-se de uma moeda virtual e uma espécie de meio de pagamento, que pode ser empregado para diversos tipos de transações comerciais, Observa-se que já vem sendo utilizado nas transações (compra e venda) de moeda estrangeira em algumas casas de câmbio do Brasil (JAKITAS, 2019).

Embora esse seja o quadro de sua adesão, é uma moeda virtual ainda não reconhecida pelo Banco Central do Brasil, inexistindo o respectivo lastro, ante a ausência de correspondência a uma existência física em papel moeda equivalente, assim como pela impossibilidade de comprovação do seu efetivo valor, a teor do que consta no Comunicado Bacen nº 31.379/2011.

Configuração do crime de evasão de divisas
Em relação ao tipo penal de evasão divisas previsto na Lei 7.492/86, cumpre descrevê-lo em sua íntegra:

"Artigo 22  Efetuar operação de câmbio não autorizada, com o fim de promover evasão de divisas do país:
Pena — Reclusão, de dois a seis anos, e multa.
Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem, a qualquer título, promove, sem autorização legal, a saída de moeda ou divisa para o exterior, ou nele mantiver depósitos não declarados à repartição federal competente".

Defendemos anteriormente que, enquanto o sistema bitcoin não for regulamentado pelo Conselho Monetário Nacional (CMN) e/ou pelo Bacen, ficaria inviável cogitar, em tese, uma tipificação como evasão de divisas propriamente dita (primeira parte do parágrafo único do artigo 22 da LCSF) ou da modalidade evasão imprópria. A prática não poderia ser classificada na condição de depósito, moeda ou divisa, por não estar vinculada a qualquer instituição financeira, e pelo fato de as operações não serem reconhecidas e regulamentadas pelos aludidos entes do sistema financeiro nacional.

Além disso, sustentamos que apenas na hipótese do crime do caput do artigo 22 da Lei 7.492/86 se poderia cogitar, em princípio, a configuração do delito de evasão, ou seja, quando a aquisição da criptomoeda for utilizada para fins de efetivação de contrato de câmbio ilegal, cujo objetivo seja a evasão de divisas (remessa dos valores para outro país, em desconformidade às regras do Banco Central), conforme decidido pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ, CC-161123, relator Sebastião Reis Junior, 3ª Seção, DJE 5/12/2018).

Todavia, quando se analisa o atual contexto tecnológico, social e no âmbito do plano fático, revisitamos o entendimento anterior para defender novas premissas.

Sistemática semelhante às hipóteses do dólar-cabo
Pode-se vislumbrar a hipótese na qual o bitcoin seja utilizado como forma de negociação de moeda estrangeira (câmbio ilegal) em desconformidade com as normas do Bacen (Banco Central), especificamente quando for transferido a um doleiro situado no Brasil, e caso o valor correspondente seja recebido no exterior em moeda estrangeira, em conta a ser indicada, com os valores de compensação ajustados de forma paralela no câmbio irregular.

Em tais casos, configurar-se-á o que passamos a denominar "bitcoin-cabo", uma vez que a criptomoeda estará sendo utilizada como meio para perfectibilização de operação de câmbio irregular, o que resulta na efetivação da saída de divisas do país em situação similar às denominadas operações com o dólar-cabo.

No momento em que se adapta o referido raciocínio em relação ao bitcoin, é possível utilizá-lo como meio para a transformação do seu valor em divisas, e, portanto, configurar a evasão-envio (primeira parte do parágrafo único do artigo 22 da Lei 7492/86) ou evasão-depósito (última parte do parágrafo único do artigo 22 da Lei 7.492/86).

No último caso, se o agente entregar valores em bitcoins a um doleiro, que disponibilizar moeda estrangeira em conta situada no exterior, e esta ultrapassar o correspondente a US$ 1 milhão sem a declaração ao Bacen, por intermédio da DCBE (declaração de capital de brasileiro no exterior), haverá, em tese, o crime de evasão imprópria (última parte do artigo 22 da Lei n.º 7.492/86).

Cumpre aqui observar que o bitcoin-cabo seria configurado como meio para transformação do seu valor em moeda estrangeira à margem do controle oficial do Estado e em desconformidade com as regulamentações do Bacen.

Observe-se, e aqui destacamos com ênfase, que sequer estão sendo utilizados os métodos hermenêuticos de interpretação extensiva e teleológica, porquanto não estão em debate o alcance, sentido e a finalidade do legislador em relação à conceituação de "divisas", e, sim, efetivada a correta subsunção dos fatos, quando o criptoativo for utilizado como meio ou instrumento para transformação de seu respectivo valor em divisas correspondentes.

Poder-se-á indagar, somente para fins de eventuais vozes discordantes, de que forma seria possível compatibilizar o presente entendimento com o princípio da legalidade. Nesse ponto, inexiste qualquer limitação ou incoerência, já que estamos diante de hermenêutica adaptativa, evolutiva ou progressiva da norma, que deve ser lida em consonância com a realidade no campo fático, científico e tecnológico, de forma a proteger efetivamente o bem jurídico tutelado (política cambial, controle das reservas cambiais, política econômica etc.).

De outro lado, não se pode olvidar que a vedação em Direito Penal refere-se apenas à aplicação da analogia, que se constitui em método de integração para utilização de normas a casos não previstos expressamente, em desfavor do acusado (analogia in malam partem), distinguindo-se dos diversos métodos hermenêuticos de interpretação da lei penal, os quais são indistintamente admitidos no âmbito de parcela significativa da doutrina e jurisprudência nacionais.

A crescente utilização de criptoativos para finalidades ilícitas deve ser objeto de atenção por parte do intérprete, sob pena de esvaziamento da proteção do bem jurídico tutelado pela norma penal. Demais disso — como já registrado — sequer está sendo efetivada a extensão do termo "divisas" ou "moeda", porquanto a aquisição de criptoativo é originariamente derivada da utilização de cartões de débito, crédito, transferências bancárias (moedas escriturais), entre outros meios legais de pagamento.

O artigo 5º da Lei de Introdução às Normas do Direito (LIND), que regula as normas de todo o ordenamento jurídico, corrobora a necessidade de efetivação de hermenêutica consentânea com fatos e valores supervenientes, que enseje a aplicação e interpretação da norma com o intuito de atender aos fins sociais e promover o bem comum.

Com o aumento do uso de moeda virtual, a utilização desse instrumento de valor para fins de operacionalização de operação de câmbio ilegal, resultando na aquisição de divisas, poderá configurar o crime de evasão em suas três modalidades (caput do artigo 22 da Lei 7.492/86, evasão-envio previsto no §único, primeira parte, da Lei dos Crimes Contra o Sistema Financeiro (LCSF), ou evasão-depósito (última parte do §único da LCSF)).

Registre-se que o entendimento se coaduna com o princípio da proporcionalidade, em sua vertente da necessidade de proteção da sociedade (FISCHER, 2009), já que a evasão de divisas afronta diretamente o interesse não só do Estado na formulação e controle da política cambial, como também o de toda a sociedade no que se refere à necessidade de proteção da regularidade da economia nacional e da política econômica.

No mesmo sentido, é o que consta do Comunicado Bacen n° 31.379, de 16 de novembro de 2017:

"(…) É importante ressaltar que as operações com moedas virtuais e com outros instrumentos conexos que impliquem transferências internacionais referenciadas em moedas estrangeiras não afastam a obrigatoriedade de se observar as normas cambiais, em especial a realização de transações exclusivamente por meio de instituições autorizadas pelo Banco Central do Brasil a operar no mercado de câmbio".

No que se refere à conceituação das criptomoedas, leciona Cadorin (2018, p. 61) que "essa criptomoeda ainda não foi conceituada pelo ordenamento jurídico brasileiro, não sendo possível a sua equiparação à divisa. Além disso, foi demonstrado que o bitcoin não pode ser considerado uma moeda em razão das suas condições econômicas e também da legislação atual".

Com efeito, as criptomoedas são criptografadas para garantir proteção e segurança e a única diferença é que o aludido valor monetário apenas trafega no universo virtual.

De forma similar a outros tipos de moedas, a criptomoeda pode ser utilizada para aquisição de bens e serviços, mas a sua principal vantagem é o fato de não estar atrelada a um determinado sistema bancário, tendo ainda como característica a possibilidade de transferência via internet de baixo custo, porquanto inexiste a necessidade de pagamento das respectivas taxas inerentes às instituições financeiras tradicionais.

A criptografia de tais moedas é realizada por intermédio de uma série de códigos dotados de "chaves" de difíceis decodificações, tornando-a menos suscetível a invasões por parte de hackers ou criminosos do mundo cibernético.

Contudo, isso não impede a configuração do eventual crime de lavagem de dinheiro (ocultação e/ou dissimulação de bens ou valores proveniente de infração penal antecedente), quando for comprovada a sua utilização para fins de ocultação ou dissimulação de ganhos oriundos de ilícitos penais.

Possibilidade de subsunção ao crime de lavagem de capitais
De forma similar a outros tipos de moedas, a criptomoeda pode ser utilizada para aquisição de bens e serviços, mas a sua principal vantagem é o fato de não estar atrelada a um determinado sistema bancário, tendo ainda como característica a possibilidade de transferência via internet de baixo custo, porquanto inexiste a necessidade de pagamento das respectivas taxas inerentes às instituições financeiras tradicionais.

A criptografia de tais moedas é realizada, por intermédio de uma série de códigos dotados de "chaves" de difíceis decodificações, tornando-a menos suscetíveis a invasões, por parte de hackers ou criminosos do mundo cibernético.

Contudo, isso não impede a configuração do eventual crime de lavagem de dinheiro (ocultação e/ou dissimulação de bens ou valores proveniente de infração penal antecedente), quando for comprovada a sua utilização para fins de ocultação ou dissimulação de ganhos oriundos de ilícitos penais.

Nesse ponto, leciona Ledra Ribeiro:

"(…) Inobstante a isso, o bitcoin ser considerado como bem imaterial não escusaria os seus operadores de desrespeitar regras referentes ao combate às fraudes e corrupção nos termos da Lei 9.613/98. A depender das transações realizadas em bitcoin, por exemplo, as partes podem recair no crime de ocultação de bens, direitos e valores, ao "ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal", nos termos do caput do artigo 1º da mesma lei (…)".

Conclusão
Em relação aos delitos de evasão de divisas (na modalidade prevista no caput do artigo 22 da Lei 7.492/86) e lavagem de dinheiro, existirá a possibilidade de configuração, em tese, de ilicitude no uso do bitcoin, caso haja comprovação dos requisitos da respectiva atividade criminosa, devendo ser criteriosamente analisado no caso concreto (artigo 3ª do comunicado Bacen nº 31.379, de 16 de novembro de 2017).

De outra parte, ainda que não regulamentada pelo Bacen e/ou CVM, a utilização não autorizada do bitcoin como meio para realização de operação de câmbio (conversão de real em moeda estrangeira) — com o fim de promover a evasão de divisas do país — poderá configurar, em tese, os delitos de evasão de divisas previsto no caput do artigo 22 da Lei nº 7.492/86 ou as modalidades de evasão-envio (intermédio da utilização da técnica do bitcoin-cabo) e evasão-depósito (manutenção de divisas em contas no exterior não declaradas ao Bacen, quando oriundas da utilização da negociação de bitcoin como meio para aquisição de moeda estrangeira).

 

Referências bibliográficas
Bacen. Comunicado n° 31.379 de 16/11/2017. Disponível em: https://www.bcb.gov.br/estabilidadefinanceira/exibenormativo?tipo=Comunicado&numero=31379.  Acesso em: 21 jan. 2021.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Processual Penal. Conflito de Competência. Conflito Negativo de Competência. Rel. Sebastião Reis Junior. CC nº 161123, do Juízo Federal da 10ª Vara Criminal Especializada em Crimes contra o Sistema Financeiro e Crimes de Lavagem de Valores da Seção Judiciária do Estado de São Paulo, 5 de dezembro de 2018.

CADORIN, Mariana Marcon. Divisas e Bitcoins. Porto Alegre: Editora Fi, 2018.

COMUNICADO Bacen n.º 31.379 de 16/11/2017. Alerta sobre os riscos decorrentes de operação de guarda e negociação das denominadas moedas virtuais. Disponível em  https://www.bcb.gov.br/estabilidadefinanceira/exibenormativo?tipo=Comunicado&numero=31379. Acesso: 12 de agosto de 2019.

FISCHER, Douglas. Garantismo Penal integral (e não o garantismo hiperbólico monocular) e o princípio da proporcionalidade: breves anotações de compreensão e aproximação dos seus ideais, 2009. Disponível em: https://revistadoutrina.trf4.jus.br/artigos/edicao028/douglas_fischer.html. Acesso em 17 de julho de 2020.

JAKITAS, Renato. Casa de câmbio passa a aceitar bitcoin para compra de dólar. O Estado de São Paulo. São Paulo, 6 de maio de 2019. Disponível em: https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,casa-de-cambio-passa-a-aceitar-bitcoin-para-compra-de-dolar,70002817208 Acesso em: 16 de agosto de 2021.

NORONHA, E. Magalhães. Direito Penal. São Paulo: Saraiva. vol. 1, 30ª edição, 1993.

NUNES, Leandro Bastos. A manutenção de depósito em fundos de investimentos no exterior e o crime de evasão de divisas, 2017. Disponível em https://jus.com.br/artigos/55068/a-manutencao-de-deposito-em-fundos-de-investimentos-no-exterior-e-o-crime-de-evasao-de-divisas . Acesso em 08 de agosto de 2019.

NUNES, Leandro Bastos. Evasão de Divisas, atualizado com a lava jato. Salvador: Editora Juspodivm, 2ª edição, 2017.

RIBEIRO, Rodrigo Marcial Ledra. Bitcoin no sistema financeiro nacional, Curitiba, v. 14, n. 33, p. 190-205, jul./set. 2018. Disponível em  file:///C:/Users/PRBA/AppData/Local/Temp/7432-30082-1-PB.pdf. Acesso em :27 de julho de 2019.

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