Controvérsias Jurídicas

A ciência política e os modelos democráticos

Autor

  • Fernando Capez

    é procurador de Justiça do MP-SP mestre pela USP doutor pela PUC autor de obras jurídicas ex-presidente da Assembleia Legislativa de SP presidente do Procon-SP e secretário de Defesa do Consumidor.

30 de setembro de 2021, 8h00

O conceito sociológico de democracia é traduzido por três tradições históricas, entre as quais: a) teoria clássica aristotélica; b) teoria medieval e; c) teoria moderna ou teoria de Maquiavel. Segundo Norberto Bobbio, a teoria clássica aristotélica entende democracia como o governo do povo, em que os cidadãos gozam de direitos políticos, distinguindo-se dos modelos monárquico (governo de um homem só) e aristocrático (governo de poucos).

Por sua vez, a teoria medieval, notadamente marcada por sua herança romana, está apoiada na soberania popular, onde o poder supremo emanava do povo e se tornava representativo, ou do princeps, que posteriormente o delegava para seus comandados. Por fim, a teoria moderna (ou teoria de Maquiavel), é fruto da formação dos estados modernos, onde as formas de governo se subdividiram entre monarquias e repúblicas.

Em seu "Dicionário de Política" [1], buscando compreender as nuances da utilização do verbete "democracia" por regimes políticos autoritários ao longo do século passado, Bobbio reservou espaço para a reflexão acerca do exercício da democracia nos estados socialistas. Paradoxalmente, para o autor o ideal democrático é elemento integrante e necessário para a formação de um governo socialista, todavia, não constitutivo. É integrante porque uma das notas que se propuseram os teóricos do socialismo foi o reforço da base popular do Estado. É necessária porque sem esse esforço jamais seria alcançada a transformação da sociedade que os teóricos vislumbravam. Contudo, não é elemento constitutivo porque em sua essência o socialismo sempre trouxe consigo a concepção revolucionária de economia, política e emancipação social.

Nesse sentido, fundamental observarmos a contraposição entre a teoria marxista-engelsiana e a teoria liberal, no que tange ao sufrágio universal como elemento constitutivo das democracias. Enquanto para os liberais o sufrágio universal é o ponto de chegada na formação de um Estado democrático, para os marxistas-engelsianos é meramente o ponto de partida. Para tal doutrina, a democracia não se resume a possibilidade de representação por meio do voto, mas na problematização da democracia indireta, notadamente pelo controle do Estado pelas camadas populares.

Inspirado pela teoria marxista-engelsiana de democracia, Vladimir Lênin, em seu "Estado e Revolução", enunciou as diretrizes da "nova democracia" que comporiam os conselhos populares idealizados por teóricos socialistas como Antônio Gramsci, Rosa Luxemburgo, Max Adler e Anton Rannekock. Tais autores entendiam que o modelo capitalista de produção, por abusar do poder econômico e priorizar os interesses dos detentores do capital, deslocou o centro do poder dos órgãos tradicionais de representação popular para os núcleos empresariais, fazendo com que o cidadão comum não encontrasse no Estado meios que impedissem a sobreposição do interesse de pequenos grupos ante o da comunidade.

Dessa forma, Lênin pugnou pela criação dos "conselhos de fábrica", espécie de comunidade de trabalhadores que se oporia ao Estado democrático capitalista, dando maior sentimento de representatividade das classes trabalhadoras por participarem politicamente em todos os âmbitos da sociedade. Já para pensadores como Ludwig Gumplowicz, Gaetano Mosca e Vilfredo Pareto, legítimos representantes da teoria elitista de democracia, independentemente das formas de governo apresentadas pela teoria clássica (monarquia ou aristocracia), na prática o exercício do poder sempre ficaria restrito a um grupo minoritário de pessoas.

O conceito formal de democracia se remete mais ao método ou conjunto de regras de procedimentos para a constituição de um governo ou para a tomada de decisões políticas, do que propriamente uma ideologia política. Nesse sentido, os métodos e procedimentos decisórios ou de constituição de governo inaugurados pela teoria política contemporânea, notadamente nas nações de tradição liberal, caracterizam-se por: 1) eleições para a escolha de representantes do povo; 2) formação de outras instâncias de poder local para função administrativa em conjunto com o órgão legislativo; 3) sufrágio universal para os maiores de idade; 4) representação equânime entre os eleitos; 5) liberdade para os eleitores votarem de acordo com suas convicções, sendo vedado qualquer forma de coação ou direcionamento do voto; 6) garantia de multiplicidade de opções ao eleitor; 7) adoção do princípio da maioria numérica para a escolha do vencedor; 8) vedação de limitação dos direitos da minoria por decisões da maioria e; 9) o órgão de governo deve gozar da confiança do Parlamento e do chefe do Poder Executivo, por sua vez, eleito pelo povo.

Quanto às tipologias dos regimes democráticos, a análise dependerá do critério adotado pelo interprete para verificação de seus elementos constitutivos. Para o critério jurídico-filosófico, caracterizado pela formação dos sistemas de governo presidencialista e parlamentarista, o elemento constitutivo da democracia está na dinâmica do Parlamento. Enquanto no parlamentarismo o viés democrático do Poder Executivo é uma emanação do Parlamento, tendo como finalidade precípua funcionar como caixa de ressonância da sociedade; no presidencialismo o chefe do Poder Executivo é eleito diretamente pelo povo, a ele devendo satisfações e podendo ou não ser reconduzido à chefia do poder por meio de reeleições.

O critério do número de partidos nos mostra a composição de governo bipartidária, na qual se verifica a existência de dois blocos políticos subdivididos entre os apoiadores e opositores do governante; e a multipartidária, caracterizada pela presença de vários matizes ideológicos, que de forma geral podem se autodenominar como "direita" ou "esquerda", conforme os pontos de convergência ideológica de cada partido. Nesse aspecto, vale ressaltar a forma de democracia "consociativa" presente em alguns países da Europa, tais como Áustria, Holanda, Suíça e Bélgica, onde as decisões governamentais emanam do entendimento das cúpulas dos líderes partidários de subculturas rivais, visando a formação de um governo estável (concordant democracy; konkordanz demokratie).

O critério das estruturas da sociedade inferior, idealizado pelo cientista político Gabriel Almond, verifica os elementos constitutivos da democracia quanto ao grau de autonomia dos subsistemas do governo, podendo ser subdividido em modelos de democracia de alta autonomia dos subsistemas (EUA e Inglaterra); autonomia limitada de subsistemas (França da 3ª República, Alemanha da República de Weimar e Itália pós-2ª Guerra Mundial) e baixa autonomia dos subsistemas (México).

Por fim, o critério utilizado por Robert A. Dahl em "Um prefácio à Teoria Democrática" ("A preface to Democratic Theory") nos mostra as composições de democracia madisoniana, populista e poligárquica. Democracia madisoniana consiste na constituição de mecanismos de freios e contrapesos (checks and balances), no qual caberá a cada poder exercer suas atribuições típicas, limitando e fiscalizando os demais pelo exercício de atribuições atípicas (exemplo: Poder Legislativo tem atribuição típica de legislar, limitando os Poderes Executivo e Judiciário através da atribuição atípica de julgá-los em caso de cometimento de crime de responsabilidade). Para o autor, tal modelo é o ideal na para a formação de um Estado constitucional limitado pelo Direito, prevalecendo a ideia de um "governo de leis" ante a um "governo de homens".

A democracia populista, por seu turno, encontra sua validação no princípio fundante da soberania da maioria, impondo unilateralmente sua vontade pela escolha de um governante que se diga legítimo representante do povo ou pelos instrumentos de plebiscito e referendo. Para as democracias poligárquicas as condições democráticas não advêm da ordem constitucional (do império das leis; da subsunção de todos às normas), mas, sim, de pré-requisitos sociais que garantirão a determinados grupos privilégios em relação aos outros.

 


[1] BOBBIO, Norberto; MATEUCCI Nicola e PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política, Volume 1, 11ª edição, Ed. UnB, Brasília, 1998.

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