Garantias do Consumo

A revisão das obrigações segundo a nova lei de proteção dos superendividados

Autor

  • André Perin Schmidt Neto

    é pós-doutor em Direito pela Università degli Studi di Salerno (Itália) e em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Doutor e mestre pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul especialista em Direito do Consumidor e Direitos Fundamentais pela mesma universidade. Atualmente é professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) professor de pós-graduação lato sensu em diversas universidades e autor de livros e artigos jurídicos.

29 de setembro de 2021, 8h00

O superendividamento traduz-se em situação concreta em que o consumidor não tem condições de pagar suas dívidas. Seus gastos são superiores aos ganhos mensais, seu passivo é maior que o ativo, precisando de auxílio para reconstruir sua vida econômico-financeira. Do contrário, toda sua família passa a ter dificuldades para suprir suas necessidades básicas, como alimentação, moradia, saúde.

Problema grave no Brasil, fruto da sociedade de consumo em razão do amplo acesso ao crédito sem efetiva verificação da capacidade de reembolso, o fenômeno do superendividamento é gerado a partir da contratação de dívidas com juros exorbitantes e impagáveis, situação hoje agravada com a crise econômica e sanitária que emerge da pandemia.

A preocupação com os superendividados não é nova. Já em 2005 tive a oportunidade de participar de um grupo de estudos sobre o tema, sob a coordenação das magistradas e professoras Karen Bertoncello e Clarissa Costa de Lima, no âmbito da Escola Superior da Magistratura do Rio Grande do Sul, à época dirigida pelo atual Ministro do Superior Tribunal de Justiça, Paulo de Tarso Vieira Sanseverino. As sempre engajadas juízas gaúchas, que já então estudavam o fenômeno superendividamento, apresentaram-me ao grupo liderado pela professora Cláudia Lima Marques, precursora no estudo do tema, que trazia da França os ideais para a criação de uma lei brasileira.

Muitos anos se passaram e desde então muitos consumeristas trabalharam no anteprojeto que resultou na aprovação da Lei nº 14.181/2021, sempre seguindo os ideais da professora Claudia que capitaneou o movimento.

A nova lei, chamada pela doutrina, com justiça, de Lei Claudia Lima Marques – apesar da relutância da própria professora a denotar a grandeza daqueles que buscam o crepúsculo dos ídolos –, finalmente permitirá o correto tratamento da questão do superendivdamento e recuperação da saúde financeira de milhões de brasileiros.

Mas não há tempo para comemorações, conhecidas as estratégias que, na prática, inviabilizaram a revisão das obrigações por parte dos consumidores ao longo dos últimos anos.

Nesse sentido, importa deixar claramente assentada a distinção do procedimento especial previsto na nova lei de tratamento dos superendividados, em relação às ações ordinárias até então ajuizadas para revisão dos contratos pela via do controle judicial[1], tema objeto deste artigo.

De efeito, na falta previsão normativa especial acerca do tema, o Novo Código de Processo Civil passou a exigir que o autor, na petição inicial, discrimine as obrigações controvertidas, quantifique o valor incontroverso do débito e continue pagando este no tempo e modo contratados, a teor do art. 330, §§ 2º e 3º do CPC/15.

Quem conhece a realidade dos superendividados sabe a dificuldade que estes têm para precisar o valor incontroverso e, mais ainda, para manter o pagamento do valor enquanto buscam o que é de direito. Tais limitações inviabilizaram o exercício do direito de ação por parte de devedores superendividados[2], sabidas as dificuldades de manter um mínimo existencial, sem a cessação dos efeitos da mora nos casos específicos em que caracterizada tal condição.

A aprovação da lei 14.181/2021 em tempos de pandemia, dota o sistema jurídico brasileiro de um novo procedimento especial próprio para o tratamento dos superendividados. Esse novo procedimento permitirá a recuperação financeira de quem possui passivo superior ao ativo, e que hoje mesmo negativado se vê capturado na contratação de dívidas impagáveis, porque acrescidas de vultosos juros moratórios. É a face mais cruel da open credit society que se mostra ainda mais grave em tempos de pandemia. Aposentados e pensionistas, pessoas que sofrem em meio a tantas crises, hoje veem na nova lei uma luz no fim do túnel. Uma chance de refazerem sua saúde financeira por meio de um procedimento específico e apartado de qualquer outro na lei brasileira.

Além de incluir a prevenção e o tratamento do superendividamento como direito básico, a nova lei traz conceitos claros, define os requisitos, os direitos e regula a publicidade e oferta de crédito, inclusive o tratamento dos contratos conexos, prevendo novas práticas abusivas no primeiro título do CDC atualizado.

Para além das regras de direito material, a nova lei do superendividamento também traz um procedimento de conciliação (inserido no Capítulo V do, Título III, do mesmo código), em que prevista a elaboração de um plano de pagamento que serve para revisar as obrigações de modo conjunto com os credores, resguardando um mínimo existencial e traçando um roteiro para recuperação da saúde financeira do superendividado.

Sempre exigindo a presença da boa-fé[3] do superendividado, o procedimento inicia, conforme o artigo 104-A, com um requerimento do consumidor para repactuação das dívidas, no qual o consumidor apresenta proposta de plano de pagamento com prazo máximo de cinco anos.

Inexitosa a conciliação em relação aos credores que não aceitaram o plano, haverá a qualificação destes e o pedido de citação para que, em quinze dias, justifiquem a negativa de composição voluntária. O requerimento deve discriminar as obrigações em discussão, indicando as questões de direito, como defeitos do negócio jurídico, cláusulas abusivas, ou outras causas de anulação. Também deve esclarecer acerca do mínimo existencial e o comprometimento da renda do superendividado, com a descrição dos gastos básicos com sua sobrevivência e de seus dependentes, e os efeitos da exclusão social. Esta fase procedimental prevê ainda uma audiência conjunta, em que será apresentada a sugestão de plano de pagamento trazida pelo consumidor, cabendo ao juiz, caso não obtido acordo judicial, analisar as questões envolvendo a revisão das dívidas, reintegração dos contratos, anulações em caso de vício e demais questões jurídicas visando compor as dívidas de modo a tornar o adimplemento viável.

Ao final, o juiz fixará o plano judicial compulsório para pagamento do remanescente com a primeira parcela a ser paga em cento e oitenta dias da homologação e prazo máximo de cinco anos, corrigido monetariamente.[4]

Portanto, trata-se de procedimento absolutamente original, inspirado na lei francesa e que em nada se confunde com o procedimento trazido pelo Código de Processo Civil, notadamente no que diz com a incidência dos §§ 2º e 3º do art. 330 do referido Código, cuja aplicação, na prática, converterá a nova lei em letra morta.

Nesse sentido, antevendo risco de limitação ao exercício do direito de ação por parte dos superendividados, em agosto deste ano, tive a oportunidade de propor enunciado na I Jornada CDEA sobre Superendividamento e Proteção do Consumidor UFRGS-UFRJ. Referido enunciado, após debates e adaptações, foi aprovado à unanimidade, a indicar orientação firme da doutrina consumerista em tal sentido.

Enunciado 21: “O processo por superendividamento para revisão e integração dos contratos e repactuação das dívidas previsto no art. 104-A e 104-B do CDC, com a redação dada pela Lei 14.181/21, é procedimento especial e não se aplicam as disposições contidas nos §§2º e 3º do art. 330 do CPC/15, que imporiam ao consumidor superindividado o pagamento/depósito do valor incontroverso, barreira de acesso à justiça que prejudicaria a finalidade da lei de combater a exclusão social (art. 4, X do CDC)”.

A realização da jornada e a aprovação de diversos enunciados tratando de temas importantíssimos para a efetividade da nova lei foi crucial para que esta traga os frutos sonhados há tantos anos por seus idealizadores. Nesse sentido, a hermenêutica legal deve impedir que haja qualquer interpretação analógica contra o consumidor superendividado, a partir dos propósitos da Lei 14.181/21, de concretizar mandamentos constitucionais de erradicação da pobreza. Sua correta aplicação permitirá efetiva reorganização da vida financeira de milhares de brasileiros.

A nova lei vem ao encontro da necessidade de um novo direito obrigacional e da regulação das relações de crédito no mercado de consumo. Não podemos retroceder no momento mais importante que é o de tornar a norma efetiva, na prática, convertendo o sonho e os propósitos em realidade.

 


[1] SCHMIDT NETO, André Perin. Revisão dos contratos com base no superendividamento: do Código de Defesa do Consumidor ao Código Civil. Curitiba: Juruá, 2012.

[2] MARQUES, Claudia Lima.; CAVALLAZZI, Rosângela Lunardelli; LIMA, Clarissa Costa de. (Coord.) Direitos do consumidor endividado 2: vulnerabilidade e inclusão. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016. LIMA, Clarissa Costa de. O tratamento do superendividamento e o direito de recomeçar dos consumidores. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. BERTONCELLO, Káren Rick Danilevicz. Superendividamento do consumidor: mínimo existência – casos concretos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015.

[3] Ainda que presumida a boa-fé, este é um requisito exigido por grande parte das legislações que tratam sobre o tema. Isso porque o sistema de recuperação da saúde financeira não visa beneficiar aqueles que propositalmente se colocam nesta situação, raros casos que podem, inclusive vir a configurar estelionato. O § 3 do art. 54-A do CDC atualizado já traz esta exigência, além do § 5º do 54-D que também é neste sentido. Assim que não há que se falar que a lei de combate ao superendividamento possa a ter seu uso deturpado.

[4] O índice de correção monetária de que trata o §4º do art. 104-B do CDC é outro fator importante a ser debatido, pois considerando o longo período de tramitação, a depender do índice aplicado, o montante pode variar muito. Deste modo, tanto o juiz ao homologar o plano, quanto os tribunais ao uniformizarem o índice de correção, devem levar em conta o princípio do favor debilis que orienta o Direito do Consumidor.

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