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IOF: mais normas seguem sendo elaboradas à revelia da Constituição

Autor

  • Elidie Palma Bifano

    é mestra e doutora em Direito Tributário pela PUC-SP professora no curso de mestrado profissional da Escola de Direito de São Paulo–FGV e nos cursos de especialização do Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet) do Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT) e da Escola de Direito do CEU–IICS e advogada em São Paulo.

29 de setembro de 2021, 9h35

Os últimos dias foram agitados, em matéria tributária, por conta do aumento, transitório, das alíquotas do IOF [1] com o objetivo de gerar fonte que permita honrar com o compromisso do benefício representado pelo Bolsa Família. Destaque-se que o Bolsa Família é regulado pela Lei nº 10836/04 e objetiva outorgar auxílio financeiro para unidades familiares que se encontrem em situação de pobreza ou de extrema pobreza. O Bolsa Família enquadra-se como verba paga ao cidadão para atender às suas necessidades mínimas de sobrevivência, o seu mínimo existencial, conceito muito caro aos tributaristas. Com isso, parece ser mandatório para o Poder Executivo, anualmente, prover tais recursos no orçamento com o fito de atender a essas pessoas.

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O que se observa é que hoje faltam recursos para tão nobre finalidade e o Poder Executivo lança mão de acrescer a alíquota do IOF incidente em operações de mútuos tomados por pessoas físicas e jurídicas para assim atender a tal obrigação. Não é a primeira vez que as autoridades procedem dessa forma com o IOF, como se fosse tributo que permita, por sua natureza, tal tipo manipulação. No passado, fragorosas derrotas foram impostas ao Poder Executivo e ao Congresso Nacional pelo Supremo Tribunal Federal por conta de uso distorcido e à margem dos ditames constitucionais referentes ao IOF.

É curioso observar que o IOF é tributo discreto na arrecadação respondendo por, aproximadamente, 2,5% da arrecadação federal [2] no período de janeiro a agosto deste ano. Instituído pela Lei nº 5.143/66, antes da entrada em vigor do Código Tributário Nacional, que foi por ele recepcionada, somente foi regulado pelo Decreto-Lei nº 1.783/80. Embora designado pela lei, pela doutrina e pelos tribunais como Imposto sobre Operações Financeiras (IOF), foi assim tratado apenas em sua origem pela Lei 5.143/66, sendo hoje sua designação constitucional, Imposto sobre Operações de Crédito, Câmbio e Seguro, ou relativas a títulos ou valores mobiliários, e não Imposto sobre Operações Financeiras. Talvez pela abrangência de sua aplicação com previsão de quatro diferentes fatos geradores e por onerar fluxos de dinheiro, sem atingir negócios, é que se tenha mantido seu nome original, Imposto sobre Operações Financeiras (IOF).

O IOF nasceu e segue tendo certas peculiaridades que o diferenciam dos demais impostos federais, por conta de sua natureza extrafiscal, como dispõe a Constituição Federal, em seu artigo 153, §1º, que faculta ao Poder Executivo, atendidas as condições e os limites estabelecidos em lei, alterar suas alíquotas. O Código Tributário Nacional, recepcionado pela Constituição Federal, autoriza essa alteração de alíquotas a fim de atender aos objetivos da política monetária (artigo 65). Essa determinação, nesses mesmos termos, foi repetida pela Lei nº 8.894/94, artigo 5º, parágrafo único.

Com isso se tem por assentado que o IOF é tributo com finalidade extrafiscal, visto que com ele, em certas condições, o Estado brasileiro não busca arrecadar, mas, sim, determinar comportamentos, contrapondo eventos e prevenindo situações, no caso oscilações da moeda e do câmbio. Assim, serve como instrumento da política de controle de ambos, pois ao onerar ou desonerar operações com essa natureza estaria incentivando ou desincentivando tais transações e com isso garantindo a estabilidade fiscal.

Essa função extrafiscal do IOF é que permite a ele aplicar-se o princípio constitucional da anterioridade de forma relativizada ou mitigada, no que tange à mudança de alíquota, visto que tais alterações podem ser adotadas no mesmo ano em que forem efetivadas e, mais, por decreto do presidente da República. Essas alterações de alíquota e sua aplicação no mesmo ano não é a característica principal dos tributos, em geral, já que eles têm a função de arrecadar e prover os cofres do governo e não fazer frente a certas situações específicas. Com isso se tem por assentada uma segunda premissa, ou seja, o IOF não se presta, por sua natureza, a socorrer necessidades de caixa do Poder Executivo e o quadro da arrecadação muito bem o demonstra.

Por ocasião da edição do Código Tributário Nacional, o objetivo de proteger a moeda e o câmbio era tão claro e mandatório que esse diploma legal, em seu artigo 67, à luz do disposto na Constituição Federal de 1969, artigo 21, §4°, determina que a receita líquida do IOF se destina à formação de reservas monetárias, na forma da lei. Ocorre que a Constituição Federal de 1988, além de não ter repetido essa determinação veda, em seu artigo 167, IV, que o produto da arrecadação de impostos tenha especial destinação. Com isso, afasta-se o artigo 67 do Código Tributário Nacional como elemento a qualificar a natureza extrafiscal do IOF. O que parece coerente concluir, à luz do sistema constitucional vigente, é que as alíquotas do IOF podem ser alteradas pelo presidente da República desde que a alteração se justifique pela sua função extrafiscal, ou seja, pela ocorrência de ameaças à estabilidade fiscal, moeda e câmbio, pois, caso contrário, cabe ao Congresso Nacional legislar, ainda que se trate do IOF.

O principal fundamento dessa autorização dada ao presidente da República reside no fato de que a ameaça à moeda e ao câmbio deve ser combatida com agilidade e presteza, atendidas as condições e os limites estabelecidos em lei [3]. Não se trata de uma autorização para ser usada a bel prazer do governante e, muito menos, para cobrir falhas na gestão pública, como parece ser a presente situação. A leitura da Constituição deve ser feita, neste caso a contrario sensu, a saber: alterações nas alíquotas do IOF devem ser legisladas pelo Congresso Nacional, exceto se determinadas por conta de oscilações da moeda e do câmbio.

O recente aumento de alíquota do IOF colheu operações de mútuo, envolvendo pessoas jurídicas e pessoas físicas, efetivadas entre setembro e dezembro deste ano. A alíquota máxima prevista em lei para operações de crédito, em suas várias modalidades, inclusive empréstimos, é de 1,5% ao dia sobre o valor da operação contratada. Essa alíquota foi reduzida, ao longo dos anos, sendo que a alíquota vigente, antes da alteração ora promovida, era de 0,0041%, ao dia, no caso de mutuário pessoa jurídica e 0,0082%, no caso de mutuário pessoa física. Com a alteração promovida, as alíquotas passam a ser de 0,00559%, ao dia, em operações de empréstimo cujo mutuário seja pessoa jurídica e de 0,01118% ao dia, no caso de mutuário pessoa física.

O reflexo desse aumento é extremamente danoso, pois atinge apenas uma fatia do mercado e da população, já que responderão pelo compromisso do Bolsa Família, que o poder público não consegue honrar, empresas e cidadãos endividados ou que necessitam de recursos financeiros para desenvolver suas atividades ou para viver.

Sabidamente o preço do dinheiro é muito alto, no Brasil, e esse ônus será adicionado a esse custo. Além disso, o mercado vem tentando se recuperar da crise que a pandemia gerou, por fata de clientes e, consequentemente de vendas, e uma das opções possíveis é buscar recursos no mercado financeiro, que agora resultam mais caros. O alto custo do dinheiro em financiamentos tem sido apontado como um dos aspectos que afastam os investidores estrangeiros do país.

Outro possível reflexo é o aumento do preço dos produtos fabricados e/ou vendidos por aqueles que se endividaram, pois a tendência pode ser repassar todos esses custos na cadeia econômica e com isso afetar, ainda mais, os indicadores que medem a inflação. Para a pessoa física é certo que todos os instrumentos disponibilizados para que ela possa financiar-se nesses momentos de dificuldade (cheque especial, cartão de crédito, empréstimos bancários) também terão seus custos afetados.

Como já se disse, esse movimento do Poder Executivo não é novo, ou seja, aumentar as alíquotas do IOF parece ser o derradeiro recurso de que se dispõe em situações críticas de falta de recursos e ele não está albergado pela Constituição Federal. A alteração das alíquotas de IOF, introduzidas pelo Decreto nº 6.339/08 foi objeto das Ações Diretas de Inconstitucionalidade nºs 4002 e 4004, que discutiram o adicional de 0,38%, que objetivava estabelecer mecanismos de compensação orçamentária, ainda que parcial, em razão da rejeição da proposta de modificação da Constituição que pretendia a prorrogação da Contribuição Provisória sobre a Movimentação Financeira (CPMF), que não logrou ser atendida pelo Congresso Nacional. Os principais argumentos, nas ADIs, foram a finalidade extrafiscal do IOF, a cobrança em dobro, por conta do adicional, bem como o desvirtuamento de finalidade, determinando a necessidade de sua aprovação mediante lei formal. Também foi apontada a inobservância ao princípio da igualdade à vista da oneração de apenas alguns contribuintes.

Os mais relevantes temas que envolvem o IOF, sua natureza extrafiscal e os limites do Poder Executivo para alterar suas alíquotas, como se observa, foram objeto das ADIs nºs 4002 e 4004. Contudo, em 12/12/2008 foi publicado o Decreto nº6.691/08, o qual, de sua vez, alterando o Decreto nº 6.339/08, restabeleceu a alíquota incidente nas operações de empréstimos quando o mutuário é pessoa física, o que levou à perda de parte do objeto da ADI nº 4002. Tais ações foram analisadas somente em 2018, contudo, desse exame não se consegue extrair elementos que sirvam de indicador sobre a posição do Supremo Tribunal Federal em relação aos temas discutidos, de vez que não se tratou do mérito dos casos. Em resumo, entendeu o Supremo Tribunal Federal que, a despeito da revogação da norma ser parcial, ao se verificar que as modificações procedidas promoveram significativa alteração no ato atacado e não tendo sido aditado o pedido inicial, configurou-se perda do objeto.

Novamente incorre o Poder Executivo na mesma falha cometida ao editar o Decreto nº 10.797/21. De fato, ainda que o decreto tenha sido editado pelo presidente da República ao suposto amparo de autorização constitucional, a finalidade declarada, publicamente, do Decreto nº 10.797/21, é suprir recursos para o Bolsa Família, o que não poderia se consubstanciar, sequer, mediante o encaminhamento de um projeto de lei ao Congresso Nacional uma vez que é vedado que o fruto da arrecadação dos impostos seja aplicada em finalidade específica. Em outras palavras a autorização do presidente da República para editar decreto alterando a alíquota de IOF somente existe se houver ameaça à moeda e ao câmbio. Ora, não estando o tema ainda decidido pelo Supremo Tribunal Federal, nada impede que o Decreto nº 10.797/21 seja levado à apreciação judicial, ao que parece, pelas mesmas razões que ensejaram as ADIs nºs 4002 e 4004.

É importante destacar que embora o governo pretenda estar dando cumprimento à Lei Complementar nº 101/00 (Lei de Responsabilidade Fiscal) ao indicar uma fonte para a concessão do benefício voltado ao Bolsa Família, é necessário que ela seja destinada a cobrir recursos cuja destinação seja legítima, mas não para justificar o uso de decreto aumentando o IOF se o fundamento desse aumento não for a oscilação da moeda e do câmbio. Portanto, ainda que cumprida a regra da Lei de Responsabilidade Fiscal, não se saneia o equívoco de aumentar o IOF por decreto, se os fundamentos do aumento não são os previstos em lei.

Ao longo do tempo o Poder Executivo editou diversas normas buscando, inclusive, manipular as base de arrecadação do IOF, a pretexto de aumentar a arrecadação, entre elas a Lei nº8.033/90, que estendeu a incidência do IOF para o ouro em estoque, descumprindo o princípio constitucional (artigo 153, §5º), de que o ouro, quando definido em lei como ativo financeiro ou instrumento cambial, sujeita-se exclusivamente à incidência do IOF na operação de origem (RE. nºs 213799-5 e 190364). Além disso, essa mesma norma tentou gravar depósitos judiciais e saques em cadernetas de poupança, como se fossem operações financeiras ou com ativos financeiros. Essa tentativa infrutífera de arrecadar foi impedida pelo Supremo Tribunal Federal, como se observa da Súmula 664: "Saques em caderneta de poupança e saque do depósito judicial em garantia, introduzidos pela Lei 8.033/90, não estão submetidos à incidência do IOF. Norma inconstitucional".

Pode-se dizer que o Decreto 10.797/21 adentra na galeria de normas inconstitucionais que pretendem tirar proveito, indevido, do IOF para resolver problemas de gestão pública. De acordo com o artigo 37, da Constituição Federal, a Administração deve obedecer no seu agir, entre outros, ao princípio da legalidade, inclusive na edição de atos normativos, como é o caso do decreto voltado a regular alíquotas de IOF, ato administrativo vinculado, cuja realização deve observar os termos constitucionais para tanto previstos. Logo, aumentar as alíquotas do IOF à margem da Constituição Federal pode gerar desde um processo judicial movido pelos contribuintes, como uma ação para declarar a inconstitucionalidade da norma, ou, até mesmo, uma manifestação do Poder Legislativo no sentido de sua revogação sustentada no artigo 49, V, da Constituição Federal que permite ao Congresso Nacional sustar os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa.

Ora, não bastasse o erro cometido em relação ao IOF, esta semana foi aprovado texto que altera a Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2021, que autoriza o uso de propostas legislativas em tramitação, no caso a do imposto sobre a renda, como fonte de compensação para criação ou aumento de despesa obrigatória para programas de transferência de renda, em ofensa ao artigo 167, IV, da Constituição Federal .

Destaque-se que a prática dessa inconstitucionalidade foi calculada pela Secretaria-Geral da Presidência da República [4] em, pasmem, R$ 2,14 bilhões, os quais o Supremo Tribunal Federal mandará, certamente, devolver aos contribuintes com todos os seus acréscimos.

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    é advogada em São Paulo, mestra e doutora em Direito Tributário pela PUC/SP, professora no Curso de Mestrado Profissional da Escola de Direito de São Paulo–FGV e nos Cursos de Especialização do Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet), do Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT) e da Escola de Direito do CEU – IICS.

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