Opinião

A possível inclusão de débitos prescritos em programas de negociação de dívida

Autor

  • Thomaz Corrêa Farqui

    é mestre em direitos difusos (PUC/SP) e especialista em didática do ensino superior (Unar) professor do curso de pós-graduação do Proordem/Santos defensor Público do Estado de São Paulo entre 2007 e 2009 e juiz de Direito do Estado de São Paulo.

27 de setembro de 2021, 17h06

O Judiciário tem vivenciado uma avalanche de ações declaratórias que buscam a exclusão de débitos prescritos e constantes em programas de renegociação. Entre tais programas, cabe ressaltar, por sua importância, o Serasa Limpa Nome, por meio do qual a Serasa oferta acordos para renegociação de débitos de diversos fornecedores, com até 90% de desconto do montante original, viabilizando meios variados para a concretização da autocomposição extrajudicial.

Rápida pesquisa jurisprudencial aponta para uma clara tendência das cortes estaduais em declarar a inexigibilidade da obrigação, condenando o fornecedor à retirada do débito do programa de renegociação, não obstante afastada, na maioria dos casos, a pretensão indenizatória por danos morais.

No entanto, a problemática posta não parece ser de tão simples solução. Cabe aqui respondermos à seguinte indagação: é ilícito oferecer aos consumidores, por meio de banco de dados de acesso restrito, acordos envolvendo débitos prescritos?

Para respondermos à pergunta realizada, iniciaremos pela análise da prescrição para, então, tentarmos verificar se débitos prescritos podem ser ofertados à renegociação.

De forma açodada pode parecer, sobretudo a um leigo nas ciências jurídicas, que a prescrição é um instituto que consolida injustiças, pois, ao extinguir a pretensão, obsta, consequentemente, o exercício de determinado direito por seu respectivo titular.

De fato, é inegável que a prescrição gera, em certa medida, injustiça, se considerarmos ser justo, segundo uma visão aristotélica, a disposição de dar (e concretizar) o direito a quem tem razão. Assim é que, em um Estado social e democrático de Direito, como ainda felizmente é o nosso, "deve o Estado fazer o possível e o impossível para dar razão a quem efetivamente a tenha" [1]. E certamente o titular de uma pretensão fulminada pela prescrição vivencia uma injustiça, vez que não mais pode fazer valer a razão que reconhecidamente tem.

Entretanto, a par de certa desvantagem, a prescrição implica em certeza e consequente estabilidade das relações sociais. Basta pensarmos que, não fosse a prescrição, seríamos forçados a manter conosco todos os comprovantes de cumprimento das obrigações, inclusive aquelas assumidas por nossos antecessores, pois possível seria que determinada obrigação, vencida há décadas ou, sem exageros, séculos, fosse exigida dos netos ou bisneto de quem originalmente a contraiu. E como o ônus de provar a extinção pelo pagamento é do devedor (CPC, artigo 373, II), a conclusão inafastável é a de que, não fosse a prescrição, todos viveriam constante estado de insegurança, com estresse social suficiente para implicar a quebra da tão desejada tranquilidade.

Não se pode, ainda, ignorar que: a prescrição soterra, pelo decurso do tempo, incertezas e dúvidas que possam recair sobre determinada relação jurídica; facilita o direito de defesa ao aproximar o exercício da ação à violação do direito; confirma a presunção segundo a qual quem não age para fazer valer seu direito deste abre mão; privilegia a boa-fé, aqui considerada a legítima expectativa de que o titular do direito o exerça o quanto antes, em postura leal/ética.

Conclui-se, portanto, que a prescrição tem como fundamento a "paz social e a tranquilidade da ordem jurídica" [2], razão pela qual se trata de matéria de ordem pública de clara constitucionalidade e necessária observância.

Entretanto, se a prescrição é um importante e, indo além, imprescindível instituto, resta compreender, para responder à indagação que justifica a presente abordagem, qual sua definição e, especialmente, quais suas consequentes implicações.

Segundo a doutrina predominante na vigência do Código Civil de 1916, prescrição é "a perda da ação atribuída a um direito" [3], ou seja, por tal viés "pode-se definir prescrição extintiva como a perda do direito de ação em decorrência da inércia do seu titular, durante lapso temporal superior ao estabelecido em lei" [4].

Verdadeiramente, entendida a ação como um direito autônomo e abstrato, consubstanciado na faculdade de exigir do Estado-juiz uma resposta jurisdicional diante de um conflito que lhe é posto, a menção à "ação", nas transcritas lições supra, deve ser entendida em seu sentido material (actio romana).

Justamente para evitar possível equívoco, o Código Civil, em seu artigo 189, empregou o termo "pretensão", ideia que não se confunde com o direito material violado, tampouco com o direito de ação, e pode ser conceituada, em termos simples, porém precisos, como o poder concedido ao credor de exigir do devedor uma prestação (dar, fazer ou não fazer). Essa exigência de subordinação pode ocorrer por qualquer via jurídica, seja jurisdicional ou não, de modo que com a prescrição está o credor também impedido de exigir o pagamento por vias extraprocessuais, como ocorre com a inclusão ou manutenção do nome do devedor nos cadastros de inadimplentes (conforme vedação expressa no artigo 43, §5º, do CDC), na negativa de fornecimento de crédito fundada na insatisfação de crédito prescrito ou, ainda, em insistentes envios de cobranças ao devedor.

Assim, a partir do momento em que o direito material, já exigível, não é satisfeito, nasce ao seu titular a faculdade de reagir à respectiva violação, sendo que, em caso de inação prolongada, extingue-se tal faculdade (não o direito material que fora violado) nos prazos prescricionais dispostos em lei.

Desse modo, a prescrição não equivale à perda do direito material e não implica a automática e inafastável privação total de referido direito, gerando, em verdade, uma possibilidade eventual de resistência do devedor. Tanto o direito, uma vez incorporado ao patrimônio jurídico de seu titular, não é fulminado pelo decurso do prazo prescricional que se mostra irrepetível o pagamento do débito prescrito (CC, artigo 882), sendo, ainda, viável a renúncia, expressa ou tácita, da prescrição já consolidada (CC, artigo 191).

A prescrição, portanto, consiste "na abertura de uma faculdade que a lei faz ao devedor para poder este, amparado no transcurso do tempo, negar-se a cumprir a prestação devida… Assim, embora não desapareça o direito pelo transcurso do tempo e pela inatividade do credor, a ordem jurídica o deixa sob a boa vontade do sujeito passivo, retirando do titular o poder de impô-lo ao inadimplemento" [5].

O credor, consolidada a prescrição, não pode mais exercer o poder de exigir forçadamente a prestação e, se o fizer, o devedor, caso queira, pode a tanto se opor. Porém, ao devedor ainda remanesce a possibilidade de optar por não exercer a exceção ou mesmo exercê-la, mas, posteriormente, renunciar à prescrição consolidada em seu favor, satisfazendo voluntariamente a obrigação prescrita. Ou seja, fica ao alvedrio do devedor a incidência efetiva dos efeitos da prescrição, a qual, exatamente por isso, não representa uma definitiva e inafastável liberação.

Nesse sentido, o vínculo jurídico decorrente da obrigação não passa, com a prescrição, a inexistir, embora o devedor, com a fluência do prazo prescricional, deixe de se sujeitar (sujeição forçada) ao credor. Assim, as obrigações, mesmo prescritas, ainda existem, mas, por serem obrigações naturais, nelas "existem sujeito, objeto e vínculo, porém é desprovido de coercibilidade, não ensejando a execução forçada pelo Judiciário, na hipótese de não ocorrer o cumprimento voluntário. Havendo atendimento voluntário, ocorre pagamento, pois, de qualquer maneira, existe o vínculo (que, tão somente, não possui força coercitiva)" [6].

Portanto, se determinado fornecedor é credor, não deixará de ser titular do crédito pelo mero transcurso do prazo prescricional. E, sendo assim, em respeito à faculdade que a prescrição faz nascer em favor do obrigado, e não obstante os caminhos tomados até o momento pela jurisprudência, entendemos ser possível a disponibilização ao devedor de propostas de acordo para a quitação dos débitos já prescritos, desde que assegurada a voluntariedade (já que a prescrição obsta a imposição da vontade do credor), o que, consequentemente, torna ilícitas as condutas de expor publicamente a proposta (circunstância que geraria constrangimento ao consumidor) e de diminuir o score do obrigado em razão do débito prescrito.

Friso, finalmente, que a possibilidade de débitos prescritos constarem em bancos de dados de acesso restrito ao consumidor (com a finalidade exclusiva de viabilizar acordos), não implica a necessária licitude da disponibilização. Isso porque há de ser, em paralelo, respeitado o direito dos consumidores à informação (CDC, artigo 6º, III), bem como observado, pelos operadores e controladores de dados, o princípio da qualidade (LGPD, artigo 6º, V), de modo que "os dados cadastrados de consumidores devem ser objetivos, claros e verdadeiros" [7], o que leva à necessidade de constar, nos acordos propostos, a informação (clara, compreensível e destacada) acerca da prescrição e da consequente voluntariedade quanto à adesão e pagamento.

 


[1] RODRIGUES, Marcelo Abelha. Processo civil ambiental. 3. ed. São Paulo: RT, 2011, p. 155.

[2] VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: Parte Geral. 5 ed. São Paulo: Atlas, 2005, vol 1, p. 593.

[3] BEVILÁQUA, Clóvis. Teoria Geral do Direito Civil. 2 ed. Rio de Janeiro: Rio, 1980, p. 286.

[4] NADER, Paulo. Curso de Direito Civil: Parte geral. 9 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013, vol 1, p. 496.

[5] THEODORO JÚNIOR, Humberto. Comentários ao Novo Código Civil. 4 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008, Vol III, Tomo II, p. 168.

[6] FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil: obrigações. 8 ed. Salvador: JusPODIVM, 2014, vol 2, p. 73.

[7] STJ, REsp 1630659/DF, Terceira Turma, Rel Ministra Nancy Andrighi, DJe 21/09/2018.

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  • Brave

    é mestre em direitos difusos (PUC/SP) e especialista em didática do ensino superior (Unar), professor do curso de pós-graduação do Proordem/Santos, defensor Público do Estado de São Paulo entre 2007 e 2009 e juiz de Direito do Estado de São Paulo.

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