Opinião

O built to suit na nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos

Autor

  • Vitor Soliano

    é mestre em Direito Público (UFBA) professor da Faculdade Baiana de Direito membro da Comissão de Concessões e Parcerias Público-Privadas da OAB/BA e advogado.

25 de setembro de 2021, 15h10

A Administração Pública está explicitamente autorizada a celebrar contratos de locação sob medida, os contratos built to suit (BTS), desde 2015. Trata-se de ajuste por meio do qual o particular-locador realiza prévia aquisição, construção ou reforma substancial de bem indicado pela administração-locatária. Essa contratação pode ocorrer mediante licitação ou dispensa e o contrato pode prever a reversão do bem em questão para o poder público quando do seu término. Pela regra atual, o valor da locação não poderá exceder, ao mês, 1% do valor do bem locado.

A celebração desse tipo de contrato pelo poder público encontra fundamento explícito no artigo 47-A da Lei Federal nº 12.462/11 [1], a Lei do Regime Diferenciado de Contratações. Ocorre que esse dispositivo será revogado em 1º/4/2023, conforme expressamente consignado no artigo 193, II, da Lei Federal nº 14.133/21, que institui o novo regime geral de licitações e contratos administrativos. Além disso, o texto do artigo 47-A do RDC não foi reproduzido na nova lei.

Diante desse cenário, estará a administração pública proibida de realizar contratos BTS após 1º/4/2023? A resposta é negativa.

Em primeiro lugar, o modelo do BTS segue presente no ordenamento jurídico no artigo 54-A da Lei Federal nº 8.245/91, a Lei do Inquilinato. Por essa razão, e com fundamento no artigo 89 da Lei nº 14.133/21, que determina a aplicação supletiva da teoria geral dos contratos e de disposições do direito privado aos contratos administrativos, o poder público segue autorizado a modelar contratos BTS.

Ademais, é amplamente reconhecido pela doutrina administrativista que os contratos de aluguel celebrados pelo Estado são exemplos de contratos de Direito Privado celebrados pela Administração Pública, ideia que é ratificada pelo regramento minimalista que a nova Lei de Licitações e Contratos criou para as locações.

Em segundo lugar, a possibilidade de celebração dos contratos BTS pelo poder público é extraída do regramento criado pelo artigo 51 da Lei Federal nº 14.133/21. Estabelece o dispositivo que, salvo na hipótese de dispensa (artigo 74, V), "a locação de imóveis deverá ser precedida de licitação e avaliação prévia do bem, do seu estado de conservação, dos custos de adaptações e do prazo de amortização dos investimentos necessários".

A primeira parte do dispositivo não possui novidades relevantes. A segunda, contudo, institucionaliza, no regime geral de licitações e contratos, a possibilidade de os contratos de aluguel em que a administração figura como locatária servirem como mecanismos de realização de investimentos, na medida em que é possível extrair da literalidade do dispositivo os elementos centrais típicos dos contratos BTS.

Inicialmente, prevê o dispositivo que o poder público deverá realizar prévia avaliação dos custos das adaptações eventualmente necessárias. Ou seja, ratifica-se a possibilidade de o contrato de locação demandar do particular a realização de alterações no imóvel. Os custos com essas alterações serão, evidentemente, transferidos para o preço mensal do aluguel.

Mais importante, contudo, é a previsão final do dispositivo. Ao instituir o dever de o poder público avaliar os investimentos necessários, o artigo 51 dá indícios de rompimento com a lógica do artigo 7º, 3º, da Lei Federal nº 8.666/93 [2]. Mais do que isso, permite a interpretação de que ao particular-locador pode ser incumbida a obrigação de realizar investimentos para, por exemplo, realizar aquisição, construção ou reforma substancial de bem indicado. Valendo-se de capital próprio ou de terceiros, o particular-locador deverá modelar o/um imóvel para atender às necessidades do poder público.

Os investimentos antecipados pelo particular-locador serão, por fim, amortizados ao longo do tempo através dos pagamentos que serão realizados pela Administração Pública a título de aluguel. Essa é a conclusão que se extrai do dispositivo ao estabelecer que o poder público deverá avaliar o prazo necessário para a amortização.

Há, contudo, um elemento que se encontra expressamente fixado no artigo 47-A da lei do RDC e que não pode ser extraído do regime criado pela nova lei: o limite do valor mensal dos aluguéis.

Entretanto, essa ausência não deve ser vista como um elemento limitador da possibilidade de celebração de contratos BTS pelo poder público. Não há nada nesse modelo contratual que exija, por essência, a limitação dos aluguéis a 1% do valor do imóvel. Essa foi uma opção contingente do legislador da Lei Federal nº 13.190/15, diploma que inseriu o artigo 47-A na lei do RDC.

Além disso, a ausência de uma limitação geral e abstrata concede à Administração Pública um maior espaço para modelagem específica e concreta dos seus contratos BTS. Logo, o valor do aluguel a ser pago deverá ser calculado e modelado com base nos elementos indicados no artigo 51 da Lei Federal nº 14.133/21: avaliação do bem, seu estado de conservação, custos para adaptações, investimentos previstos/necessários e o prazo para sua amortização.

A maior discricionariedade, contudo, deverá ser acompanhada com uma maior e mais densa motivação, assim como uma atenção ao espaço fiscal do órgão ou entidade contratante. Assim, por exemplo, um prazo mais alargado pode diminuir o preço mensal do aluguel, mas aumentar os custos financeiros atrelados ao investimento e vice-versa. O custo-benefício deste trade-off deverá ser devidamente avaliado e demonstrado pela administração.

Essa visão parece estar em consonância com o entendimento mais recente do Tribunal de Contas da União. Ao analisar a legalidade de um contrato BTS celebrado pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), o TCU entendeu que o percentual máximo previsto no artigo 47-A da lei do RDC só se aplica quando não houver previsão de reversão do bem para o poder público ao término do contrato.

Em complemento, entendeu o tribunal que nos contratos BTS a Administração Pública deve "definir um valor de locação, leia-se de amortização acrescida do custo do capital de terceiros investido, compatível com o espaço fiscal eventualmente existente e projetado segundo as estimativas de receitas e despesas do ente contratante, no horizonte de médio e longo prazo. Tais valores seriam definidos a partir do valor do investimento necessário à aquisição ou construção do bem e do custo médio ponderado de capital do projeto" (Acórdão 1.928/2021).

Apesar de analisado com base na lei do RDC, não há razões para que esse entendimento não seja mantido quando da revogação do seu artigo 47-A.

Por tudo isso, o BTS seguirá sendo uma opção legítima e possivelmente vantajosa para a Administração Pública. Mais do que isso, trata-se de modelo contratual que deve ser utilizado de forma criativa [3] e pode ser agregado com outros mecanismos recentemente inseridos no ordenamento jurídico, como o contrato de entrega de obra com prestação de serviço associado, previsto no artigo 46, VII, c/c artigo 113 da Lei nº 14.133/21, e o contrato de gestão para ocupação de imóveis públicos, o contrato de facility, previsto no artigo 7º da Lei nº 14.011/21. 

 


[1] Dispositivo inserido na Lei do RDC através da Lei nº 13.190/15.

[2] "Artigo 7º – […].§ 3o É vedado incluir no objeto da licitação a obtenção de recursos financeiros para sua execução, qualquer que seja a sua origem, exceto nos casos de empreendimentos executados e explorados sob o regime de concessão, nos termos da legislação específica".

[3] O Estado de Rondônia recentemente realizou licitação cujo objeto foi a "elaboração do projeto, aprovação e construção do prédio do Hospital de Urgências e Emergências de Porto Velho, segundo as necessidades da Administração, bem sua locação e realização de sua manutenção pelo prazo contratual". Ou seja, utilizou-se o BTS como mecanismo de implantação e posterior manutenção física de hospital público.

Autores

  • é mestre em Direito Público (UFBA), MBA em Parcerias Público-Privadas e Concessões (FESPSP), membro da Comissão de Concessões e Parcerias Público-Privadas da OAB/BA, professor da Faculdade Baiana de Direito e advogado.

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