Diário de classe

A tradição e a construção do Brasil

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25 de setembro de 2021, 8h00

"Demiurgos". Era assim que Antônio Cândido referia-se a intelectuais como Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Jr., mas foi Chico de Oliveira quem incorporou à lista Celso Furtado e Florestan Fernandes, num panteão que seguramente também receberia de bom grado Raimundo Faoro. Seria a "grande tradição" dos explicadores do Brasil, celebrada — e bem recordada — pelo mesmo Chico de Oliveira em discurso no Centro de Estudos de Cultura Contemporânea (Cedec) [1] como o lócus para compreender a formação do Brasil na sua especificidade. A ideia encaixa. Demiurgos, afinal, não criam a realidade na tradição platônica, mas organizam uma espécie de caos. Imprimem, assim, não apenas uma descrição que dê conta do que apreendem do mundo, mas põem, de fato, o próprio mundo.

Essa perspectiva é interessante, principalmente, sob dois aspectos. O primeiro acena às teses, atualmente muito contestadas, do patriarcalismo, da mentalidade colonial presente até hoje, do clientelismo, do subdesenvolvimento, da revolução democrática incompleta e, sobretudo, do patrimonialismo, como parte de um enredo bem resumido na grande confusão entre as esferas pública e privada.

No limite, a partir dessa chave explicativa, ficariam severamente obstaculizadas as melhores práticas de institucionalização no país, como uma espécie de herança "possível", mas "difícil" de abandonar. Não por outra razão, o revolvimento do chão linguístico da tradição posta pelos demiurgos carrega um tom pessimista. Veja-se, por exemplo, que a saída para um Estado formado pela sociabilidade de "Casa Grande & Senzala", patriarcal até a medula na sua "descrição", apontaria o dedo para um Estado autoritário ou, como sublinharia o próprio Chico de Oliveira, "numa palavra, positivista" [2].

A segunda perspectiva de interesse reflete sobre uma espécie de efeito da tradição. Autêntico ou não, o mundo posto por esses intelectuais a partir da década de 1930 seguramente avançou para além de limites estritamente acadêmicos, perpassando esferas políticas — como Freyre e o Estado Novo de Vargas, emprestando "unidade" a um Brasil que se queria moderno —, ou como — noutro exemplo — Celso Furtado e as políticas da Comissão Econômica para a América Latina (Cepal) e o Caribe, fundada em 1948.

Disto não escapamos: se o pensamento dominante entre o séculos 19 e 20 no Brasil foi centrado política e intelectualmente por um tom autoritário, emprestando forma àquilo que se dizia ser um bem absorvido "caráter nacional" — e fortemente exemplificado nos governos reacionários que marcaram o Brasil desde a sua gênese republicana —, o que se segue com a nova tradição dos demiurgos também deixou suas digitais no senso comum, como em um perpétuo subdesenvolvimento do Estado brasileiro (Furtado), na "família" como "economia" (Freyre) ou, ainda, na "incompletude da revolução democrática no Brasil" (Florestan).

Nada mais brasileiro — diga-se — do que o pensamento encerrado nesses exemplos, pairando sob nosso imaginário, assim como bem clara — na nossa cotidianidade — a patrimonial e naturalizada ideia de que o íntimo acesso ao poder pela porta dos fundos é "algo muito nosso". "Brasília, afinal, é assim". É o "homem cordial" de Sérgio Buarque de Holanda confortavelmente instalado nos "estamentos" de Faoro, dando forma a uma espécie de retrato-falado da brasilidade ou, como já antes se disse, "pondo mundo".

A especificidade dessa perspectiva — que dialoga de perto com o senso comum teórico dos juristas de Warat e ajuda a explicar certas práticas na cotidianidade de nossos tribunais — foi objeto de estudo em meus seminários de "Direito e Contemporaneidade" junto ao programa de pós-graduação em Direito da Universidade do Vale do Rio dos Sinos [3], com o intuito de, através da tradição — ou do revolvimento do imaginário que lhe empresta forma —, compreender não apenas o chão teórico em que se assenta a construção de direitos sociais no Brasil — no fio da História —, mas, ainda, quais limites obstaculizam, hoje, a efetivação desses mesmos direitos. Desnecessário dizer que essa chave explicativa não dá, claro, conta da sofisticação e complexidade dessa questão isoladamente — no limite, mais bem delimitada em contextos que se dão no fio do tempo e envolvem até mesmo seu financiamento frente às transformações no mundo do trabalho —, mas permite compreender "com lupa" o pano de fundo desses temas que, seguramente, são dos mais importantes em países desiguais como o Brasil.

É isso. Para além da especificidade dos direitos sociais, não é desarrazoado dizer que a tradição dos demiurgos "pôs Brasil". O Brasil seria forjado por relações de sociabilidade opressoras na origem (Freyre e Holanda), naturalizando o modelo patriarcal que não distingue o público do privado (Faoro) e, desde as origens, integrante de um projeto exploratório e determinantemente subdesenvolvido (Caio Prado e Celso Furtado). A saída para uma sociedade mais igualitária, mais justa e menos autoritária? A democracia, evidentemente, ainda que incompleta "na sua revolução" (Florestan Fernandes).

Esse é o ponto. Olhemos ao redor de nossa cotidianidade e do momento da nossa República e suas tensões políticas. Talvez as chaves explicativas de nossa formação tenham muito a dizer não apenas sobre o momento seminal de nossa República, olhando no retrovisor para um grande e histórico déficit democrático, mas, mais que isso, também dar conta do presente e, quem sabe, do nosso futuro institucional. A ver.


[1] Oliveira, Francisco. Como pensar? Lua Nova: Revista de Cultura e Política. 2001, n. 54, pp. 87-132. Disponível em: < https://www.scielo.br/j/ln/a/tWRDxghtCHdRddwpYSc5jtt/?lang=pt#>. Epub 18 Dez 2009. ISSN 1807-0175.

[2] Oliveira, Francisco. Diálogo na grande tradição. In: Novaes, Adauto. A crise do Estado-Nação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

[3] "Seminário-problema" com cinco encontros, como parte dos estudos de pós-doutoramento financiados pela Capes no Programa Nacional de Pós-Doutorado, em que se procura estudar o Estado Social como construção política de "um tempo", realizado "noutro tempo". Em síntese, a proposta é oferecer não o maior e melhor estado da arte na discussão sobre o tema, mas, sim, uma leitura crítica que coloca a concretização dos Direitos Sociais como problema a ser enfrentado na cotidianidade.

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  • Brave

    é doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, em estágio pós-doutoral (Capes PNPD) na mesma instituição e integrante do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

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