Opinião

Atualidades do setor securitário marítimo

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24 de setembro de 2021, 7h21

A indústria de navegação global é responsável por transportar até 90% do comércio mundial. Estudos recentes realizados pela Susep apontam que o mercado de seguros brasileiro experimenta avanço significativo nos últimos 20 anos [1].

Houve substancial diversificação de produtos securitários que acompanham as mudanças e os aprimoramentos do setor, com redução no volume de sinistros. A empresa Allianz Global Corporate & Specialty, v.g., realiza anualmente uma revisão de tendências e desenvolvimentos. À luz da avaliação de 2020 ("Safety and Shipping Review 2020"), na última década melhorou o volume de sinistros (redução de cerca de 57% entre 2010 e 2019); o volume de perdas com embarcações diminuiu quase 25% de ano a ano.

A redução se deu principalmente pelo aprimoramento de projetos de navios, avanços tecnológicos, intensa regulamentação e gestão de riscos. O número de grandes sinistros diminuiu cerca de 20% em 2019 (41), em comparação com 2018 (53).

Não obstante, a instabilidade na segurança dos navios e a atual pandemia promovem retrocessos significativos, o que gera relevante aumento de riscos às seguradoras. É nesse cenário que serão destacadas algumas atualidades do setor.

Modalidades de seguros
O principal seguro do setor é o de casco e máquinas, que visa a assegurar danos sofridos à embarcação. O artigo 18 da Resolução CNSP nº 407/2021 dispõe que a cobertura de casco compreende a perda ou avaria da embarcação, em viagem ou não, em quaisquer serviços e tráfegos no mar ou em rios, canais ou outra via navegável, em portos ou ancoradouros, ou em diques, estaleiros, carreiras ou rampas, a incluir seu casco, suas máquinas e todos os seus equipamentos e acessórios a bordo. Em síntese, pode cobrir: 1) a perda total da embarcação; 2) a assistência e salvamento; 3) a avaria grossa; 4) a responsabilidade civil por abalroação; e 5) a avaria particular. A Susep definiu, através da Circular n° 001/1985, riscos não cobertos, exceto se estipulados expressamente na apólice.

Outro exemplo de seguro é o DPEM, seguro obrigatório a todos os proprietários ou armadores de embarcações nacionais ou estrangeiras sujeitas à inscrição nas capitanias dos portos. Instituído pela Lei nº 8.374/1991 e regulado pela Resolução CNSP n° 128/2005 (alterada pelas Resoluções CNSP n° 152/2006 e nº 237/2011), tem como finalidade cobrir danos pessoais causados pela embarcação ou por sua carga às pessoas embarcadas, transportadas ou não, independentemente da embarcação estar em operação ou não.

Há também o Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil do Transportador Aquaviário  Carga (RCA-C), instituído pelo artigo 20, "m", do Decreto-Lei 73/66, e regulado pela Resolução CNSP nº 182/2008. Busca-se reparação pecuniária de danos causados pelo segurado a bens ou mercadorias pertencentes a terceiros e que lhe tenham sido entregues para transporte, em viagem aquaviária nacional, se o dano tiver sido causado por: 1) encalhe, varação, naufrágio ou soçobramento, do navio ou embarcação; 2) incêndio ou explosão, no navio ou embarcação; 3) abalroação ou colisão, ou contato, do navio ou embarcação com qualquer corpo fixo ou móvel; e 4) incêndio ou explosão, nos depósitos, armazéns ou pátios usados pelo segurado nas localidades de início, pernoite, baldeação e destino da viagem, ainda que os referidos bens e mercadorias se encontrem fora do navio ou embarcação.

Também pode ser contratado seguro de carga, seja para cobrir uma única viagem (apólice avulsa) ou diversas (apólice de averbação/aberta ou apólice anual). Esse seguro, que teve suas condições padronizadas pela Circular Susep n° 354/2007, pode ter desde cobertura geral (all risks) até cobertura limitada (por escolha do segurado).

Não obstante a abrangência de seguros, há lacunas. Para tentar supri-las, surgiram os clubes P&I (protection and indemnity), que são associações formadas pelos próprios armadores/operadores com o intuito administrarem fundos para garantir mutuamente os riscos não abrangidos pelas apólices tradicionais.

Sinistralidade
Como dito, o cenário geral da sinistralidade é favorável nos últimos anos. Mas o avanço na segurança está sujeito a ameaças e tem demonstrado oscilações por diversos fatores.

O primeiro fator importante se dá pelos riscos relacionados com embarcações de mais de cem toneladas brutas (TB), os chamados "meganavios". Entre 2019 e 2020, ocorreu um aumento no número de acidentes, o que potencializou o aumento de riscos. O relatório da Allianz aponta um aumento de 5% de acidentes e incidentes de navegação, o que representa mil casos de avaria (ao navio ou à carga) e 1.044 casos de falhas de maquinaria. Essa expressiva perda tem sido alvo de grande preocupação às seguradoras. Os navios de carga, inclusive, foram motivo de mais de um terço dos sinistros em 2019. As principais causas são: 1) naufrágios; 2) mau tempo; e 3) incêndios (em 2019, quase 200 incêndios foram registrados em navios; aumento de 13% das reclamações/sinistros).   

O segundo fator surgiu do contexto de Covid-19, que trouxe riscos às seguradoras de maneiras inesperadas. O problema mais substancial está no aumento da dificuldade na troca da tripulação em virtude das medidas de segurança adotadas. Se por um lado manter a mesma tripulação diminui o risco de contágio, ao mesmo tempo acarreta uma tripulação física e mentalmente cansada, o que aumenta o risco de erro humano, que é um fator contribuinte em 75% a 96% dos acidentes marinhos (relatório da Allianz).

A atual crise sanitária, que impacta na redução de receita das empresas de um modo geral, acarreta também a redução do quadro de funcionários pelas companhias, cujo orçamento de manutenção é um dos primeiros gastos a ser reduzidos. As restrições no comércio também acabam por dificultar que algumas embarcações obtenham peças sobressalentes e consumíveis essenciais. Todos esses pontuais fatores podem comprometer a segurança das embarcações e, por consequência, gerar maior atuação no gerenciamento dos riscos

Outro problema se relaciona aos produtos e contêineres danificados, que já são uma das causas mais frequentes de reclamações de seguros marítimos (20%). A pandemia aumentou o risco de acidente com as cargas, pois as empresas que cuidam e fazem o manuseio desses bens estão encerrando suas atividades ou estão com funcionamento restrito.

E mais, em abril de 2020, cerca de 95% da frota global de cruzeiros e navios estava parada. Gerou risco altíssimo de exposição das embarcações a furacões (na América do Norte) e tufões (na Ásia).

A pandemia também ocasionou aumento significativo da chamada demurrage. A imposição de quarentena nos portos tem sido fator agravante para a ocorrência de demurrages, o que acarreta um aumento considerável dos custos dos produtos e a perda de produtividade e de investimentos. O STJ tem apresentado entendimento de que possui natureza jurídica de indenização e não de cláusula penal, o que afasta a incidência do artigo 412 do CC (STJ, RESP 1.286.209/SP, 3ª T., relator ministro João Otávio de Noronha, DJe 14/03/2016).

A Lei nº 2.180/54, que dispõe sobre o tribunal marítimo, ainda elenca uma série de "acidentes de navegação". O artigo 14, "a", enumera os acidentes que ocorrem por diversos motivos específicos, além de quaisquer avarias ou defeitos no navio ou nas suas instalações que ponham em risco a embarcação, as vidas, as mercadorias e os bens transportados (artigo 14, "b").

Por fim, a ação intencional do comandante, de tripulantes ou até mesmo do armador é fator determinante para a ocorrência de acidentes, tais como arribadas, varação, abandono e alijamento de carga. Esses dados podem ser encontrados no relatório da Allianz.

Gestão de riscos
Diante do aumento do volume dos sinistros e da instabilidade na segurança do trânsito marítimo, faz-se necessário que os profissionais da área melhorem a gestão de riscos, a fim de que os possíveis danos sejam evitados ou ao menos minimizados. As seguintes condutas podem ser feitas para melhorar a gestão dos riscos: 1) adensamento do método sistemático; 2) rigorosa observância das legislações técnicas e dos avanços tecnológicos; 3) análise aprofundada das estatísticas de acidentes com embarcações. Inúmeras vidas são poupadas e grande economia de recursos materiais é obtida.

No Brasil, v.g., uma ótima ferramenta a ser utilizada na análise dos acidentes já ocorridos é o "boletim de acidentes julgados pelo tribunal marítimo". Divulga-se, anualmente, os acidentes e fatos da navegação que são julgados, considerados mais graves e que afetam a salvaguarda da navegação.

Outro instrumento poderoso para os que investem no setor é o acompanhamento do Plano Nacional de Logística (atualmente vigente o Plano de 2025), que apresenta propostas e pesquisas para aprimorar e modernizar os diversos tipos de transporte — incluído o marítimo — para contribuir com o desenvolvimento do setor e o aumento da efetividade e eficiência nos investimentos. Há prognóstico completo dos principais custos no transporte aquaviário, entre eles: 1) de cabotagem; 2) hidroviários; e 3) securitários. O estudo também conta com projeções de longo prazo o que viabiliza melhorar planos de prevenção dos riscos inerentes à atividade.

O acidente no Canal de Suez
No dia 23 de março deste ano, o supercargueiro MS Ever Giver encalhou e bloqueou o Canal de Suez por seis dias; afetou o trânsito de outras embarcações e ainda trouxe diversas consequências negativas para o comércio internacional. O ponto principal em relação ao acidente é o fato de que meganavios como o causador do acidente (capacidade de 24 mil TEU's — um TEU equivale a 20 pés) agora navegam na Terra e a tendência é a de que os navios continuem a crescer (o tamanho das embarcações quase dobrou na última década).

O aumento dos navios, ao mesmo tempo em que gera economia para os proprietários, também exacerba a gravidade dos acidentes ocorridos; torna eventuais soluções mais complexas e onerosas para as seguradoras. Incêndios a bordo de navio porta-contêineres (cada vez mais comuns), v.g., podem constituir sinistros de centenas de milhões de dólares.

O profissional da área deve focar na mitigação de riscos e, com isso, avaliar o objeto segurado em si e fatores externos (rota da embarcação, portos de carga e descarga etc.). A impositiva conexão entre nações continuará a crescer e exponencialmente; acidentes como os do Canal de Suez devem ser evitados ou ao menos remediados no tempo mais exíguo possível para evitar impactos negativos a todos e em todas as áreas (vide, v.g., o efeito cascata gerado pelo evento, que até mesmo afetou as principais bolsas de valores mundiais).

Brasil — cabotagem
No Brasil, o transporte marítimo de cargas é uma área em franco crescimento, especialmente na modalidade de cabotagem (entre portos nacionais). Cresceu 10,54% apenas nos dois primeiros meses de 2020, como aponta a Antaq [2].

Já tramita na Câmara dos Deputados, em caráter de urgência, o PL nº 4.199/2020, para fomentar projeto do governo federal que busca incentivar a cabotagem. Pretende-se criar a BR do Mar [3].

Já o Ministério da Infraestrutura tem planos de ampliar em 40% a capacidade da frota marítima dedicada à cabotagem nos próximos três anos, segundo informações fornecidas pelo governo federal. Esse crescimento sinaliza outra grande oportunidade para os profissionais do setor que trabalham com o seguro de casco marítimo, v.g..

Autores

  • é LLM em Direito Norte-Americano (Universidade de Wisconsin/EUA), vice-presidente da OAB-RJ e diretora de mediação e arbitragem do Instituto dos Advogados Brasileiros.

  • é mestre em Direito Processual Civil (PUC/SP), especialista em Direito Processual Civil (PUC/RJ) e bacharel em Direito pela Universidade Federal Fluminense (UFF).

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