Opinião

Dois anos da Lei da Liberdade Econômica: nova roupa para o Direito Empresarial?

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23 de setembro de 2021, 10h47

No conto infantil "Cinderela", a protagonista vive renegada e maltrapilha, à mercê das maldades de sua madrasta e irmãs. Quando é anunciado o baile do vilarejo onde mora, é agraciada por uma fada madrinha com um magnífico vestido novo. Havia uma única ressalva: toda sua magia e beleza desapareceriam à meia-noite.

De maneira semelhante, o advento da Medida Provisória 881/2019, posteriormente vertida na Lei 13.378, a Lei da Liberdade Econômica (LLE), aparenta ter sido um ponto de virada para a prática comercial no país. No entanto, após dois anos desde sua instituição, uma análise dos desdobramentos dessa norma faz emergir o seguinte questionamento: teria o Direito Empresarial brasileiro se transformado definitivamente ou estaria prestes a ter sua mágica desfeita?

Mudanças positivas
Com o intuito de reduzir o aparato burocrático do Estado, a LLE permitiu que empresas pudessem desenvolver atividades econômicas de baixo risco, sem que precisem de autorização estatal prévia (alvarás, licenças e permissões), diminuindo consideravelmente o tempo que um empreendedor leva para abrir uma empresa no Brasil. Segundo o Mapa de Empresas publicado pelo Ministério da Economia (ME) no primeiro quadrimestre de 2021, tal duração foi reduzida em 16 horas em relação ao mesmo período em 2020 e mesmo durante a pandemia da Covid-19 o país registrou no ano passado a abertura de 3.359.750 empresas: um marco histórico [1].

Não obstante, uma das maiores mudanças percebidas com a Lei 13.874 foi a inserção da sociedade limitada unipessoal no cenário jurídico brasileiro. Constituída até então por meio de dois ou mais sócios, a sociedade limitada possuía como única alternativa para titulares únicos a instituição de uma Empresa Individual de Responsabilidade Limitada (Eireli). Todavia, para a criação de tal modalidade empresarial, exige-se aporte econômico de cem salários mínimos, o que representa um ônus considerável para o empresário.

Haja vista o objetivo de estímulo ao empreendedorismo e ao desenvolvimento econômico adotado como base da ordem econômica nacional pelo constituinte originário, a requisição de tamanho montante pode ser considerada uma barreira expressiva para indivíduos que desejam iniciar uma atividade empresarial, mas não possuem tamanho capital social mínimo. Fica evidente, nesse sentido, uma contradição entre os ideais que deveriam ser impulsionados pelo Estado e a legislação em voga até o surgimento da Lei da Liberdade Econômica.

Ainda, a LLE provocou impactos relevantes na interpretação da desconsideração da personalidade jurídica, apresentando nova redação ao artigo 50 do Código Civil e definindo termos jurídicos como "desvio de finalidade" e "confusão patrimonial" para coibir a utilização desse instituto de maneira demasiadamente expansiva. Tal limitação funciona, portanto, como forma de incentivo aos agentes privados, que possuem menos riscos do alcance de seu patrimônio pessoal por dívidas contraídas durante a atividade empresarial.

Possíveis entraves
No que toca ao desenvolvimento de atividade econômica de baixo risco, vale notar que tal classificação deve ser regulada por ato do Poder Executivo federal apenas na ausência de legislação estadual, distrital ou municipal específica, conforme expressa o parágrafo primeiro do artigo 3º da LLE. Nessa perspectiva, dois possíveis problemas podem ser identificados.

Primeiro, é preciso observar como os municípios e estados estão regulamentando a LLE. Uma vez distribuída tal competência entre os entes da federação, é possível que legislações locais distorçam os valores da lei ou atuem em alguma medida atravancando suas propostas. Nesse sentido, regulações municipais ou estaduais que disponham reduzidos parâmetros para a definição das atividades econômicas de baixo risco podem contrariar a vontade da LLE e gerar eventuais conflitos a serem respondidos pelo Poder Judiciário.

Segundo, ainda não foi editado um ato do Poder Executivo que trate especificamente do assunto. Embora a Resolução Nº 51/2019 do Comitê para Gestão da Rede Nacional para a Simplificação do Registro e da Legalização de Empresas e Negócios (CGSIM) seja aplicada de forma subsidiária por força do inciso II do parágrafo 2º do artigo 3º da LLE e defina o conceito de baixo risco, a ausência de tal ato traz insegurança jurídica para o conteúdo disciplinado.

A respeito da desconsideração da personalidade jurídica, mesmo que as mudanças introduzidas sejam vantajosas, o tratamento dado a esse assunto ainda se mostra notavelmente vago e abrangente. Ao disciplinar as características da confusão patrimonial, por exemplo, a LLE introduziu os parâmetros de "transferência de ativos ou de passivos sem efetivas contraprestações, exceto os de valor proporcionalmente insignificante" e de "outros atos de descumprimento da autonomia patrimonial", respectivamente dispostos nos incisos II e III do §2º do artigo 50 do Código Civil. Dessa forma, há de se esperar que, perante conceitos indeterminados e uma redação ampla, muitas questões ainda precisam ser assentadas pelos tribunais.

Nessa mesma esteira, a recente sanção com vetos da Medida Provisória 1.040/21 pelo presidente da República parece indicar mais um problema. Embora a justificativa desse projeto consista na "desburocratização para aumento de competitividade e modernização do ambiente de negócios no país" e aparente com isso reforçar o espírito da LLE, algumas de suas alterações podem indicar um retrocesso para a prática empresarial do país [2].

Por vezes chamado de MP do Ambiente de Negócios, tal projeto possui como uma de suas mudanças mais significativas a introdução do sistema de ações por voto plural instrumento até então vedado pelo artigo 110 da Lei das S.A. (Lei 6.404/76). A adoção desse mecanismo, no entanto, passaria a permitir a maior concentração de poder por uma parte seleta de acionistas e iria diretamente contra a regra de "uma ação, um voto", uma máxima da boa governança.

Outro aspecto polêmico a ser destacado é a proibição de acúmulo de cargos nas companhias abertas. Em nota pública emitida pela Comissão Especial de Direito Societário, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) Nacional posicionou-se contra a acumulação dos cargos de CEO e presidente do conselho, argumentando que isso vai "na contramão de flexibilização e aumento da atratividade do mercado brasileiro para abertura de capital de suas companhias" [3]. Sob esse raciocínio, entende-se que a vedação dessa prática pode ser prejudicial à captação de recursos e à prosperidade de empresas, sobretudo àqueles empreendimentos de pequeno porte.

Considerações finais
Enquanto comemoram-se dois anos de vigência da LLE, é possível concluir que tal lei trouxe verdadeiramente muitos avanços para o cenário do Direito Empresarial brasileiro. Mesmo que já seja possível observar os impactos positivos dessas mudanças na economia nacional, é inegável a existência de lacunas em seu texto e de adversidades a serem enfrentadas em um futuro próximo.

No que diz respeito à MP 1.040/21, ainda é preciso esperar um posicionamento do Congresso Nacional frente aos vetos do presidente da República. Não obstante, muitos pontos de seu texto parecem trazer malefícios para o ambiente empresarial e merecem uma análise minuciosa antes de se tornarem definitivos.

Por derradeiro, há de se preocupar também com a adoção recorrente da medida provisória como um subterfúgio à via legislativa em matérias comerciais. Assim como no caso da LLE (então MP 881/2019), a nova lei pretende trazer grandes mudanças para o Direito Empresarial sem que haja uma ampla e prévia discussão com a sociedade civil sobre suas vantagens, desvantagens e justificativas.

Em conclusão, embora o Direito Empresarial esteja longe de perder sua nova roupa em um passe de mágica como na história de Cinderela, é possível afirmar que suas vestimentas ainda não são feitas dos melhores tecidos.

 


[1] BRASIL. Ministério da Economia. Mapa de Empresas – 1º Quadrimestre de 2021. Brasília: Ministério da Economia, 2021. Disponível em: https://www.gov.br/governodigital/pt-br/mapa-de-empresas. Acesso em: 19 set. 2021.

[2] CÂMARA DOS DEPUTADOS DO BRASIL. Ficha de Tramitação da MPV 1040/2021. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2275840. Acesso em: 19 set. 2021.

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