Interesse público

A vez da experimentação... EC 109/21, licitação e contratos

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23 de setembro de 2021, 7h00

Na última semana, recebi por WhatsApp um ótimo artigo de autoria de Cristiane Rodrigues Iwakura, intitulado "Breves apontamentos sobre o impacto da Lei 14.195/2021: desburocratização e transformação digital" [1].

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A autora, que além de integrante da carreira da AGU é acadêmica por opção, dedica-se a estudar impactos das novas tecnologias aplicadas ao Direito. No seu texto, apresenta reflexos que a Lei 14.195/21 procura trazer para os ambientes negocial e processual, discorrendo sobre: a) facilitação de abertura de empresas; b) proteção aos acionistas minoritários; c) autorização para instituir, no âmbito do Poder Executivo Federal (PGFN), o Sistema Integrado de Recuperação de Ativos (Sira); d) racionalização processual, com o uso de novas tecnologias de comunicação para a prática de atos processuais.

Não obstante a abrangência temática do artigo, o ponto que mais se despertou atenção foi a sutileza com que a autora apresentou ao público a seguinte passagem:

"Do ponto de vista legislativo, percebe-se que várias das disposições normativas que surgiram em caráter emergencial e temporário estão aos poucos sendo acomodados no ordenamento jurídico como de caráter permanente. Trata-se de um fenômeno bastante interessante, que consiste na consolidação das normas jurídicas decorrentes de uma situação excepcional como normas estruturantes e quem sabe até que se consagrem como normas fundamentais. A justificativa para esta mudança de perspectiva reside no fato de que se teria vislumbrado em uma norma jurídica de caráter temporário, uma utilidade que ultrapassou o mero atendimento de uma necessidade emergencial; os seus efeitos, na prática, demonstraram vantagens igualmente aferíveis em situações de normalidade".

Muito se tem discutido sobre efeitos e soluções apresentados normativa e pragmaticamente em tempos de pandemia para o âmbito da Administração Pública e do Direito Administrativo. Por vezes, situações extremas abrem oportunidades para experimentações e avanços que demorariam bastante tempo até que tivessem desenvolvimento adequado em padrões de normalidade. É como se os momentos difíceis, de penumbra, soltassem os freios das experiências… E, por que não dizer?, atropelassem o excesso de formalismo na busca de resultados práticos…

Foi nesse sentido que, no ápice da crise da pandemia da Covid-19, foi promulgada a Emenda Constitucional nº 109, de 15 de março deste ano, produzindo uma série de modificações na Constituição, muitas das quais desnecessárias, a bem da verdade, notadamente na parte atinente às finanças públicas.

No âmago dessas alterações, convém destacar o artigo 167-C da Constituição, a ver:

"Artigo 167-C  Com o propósito exclusivo de enfrentamento da calamidade pública e de seus efeitos sociais e econômicos, no seu período de duração, o Poder Executivo federal pode adotar processos simplificados de contratação de pessoal, em caráter temporário e emergencial, e de obras, serviços e compras que assegurem, quando possível, competição e igualdade de condições a todos os concorrentes, dispensada a observância do §1º do artigo 169 na contratação de que trata o inciso IX do caput do artigo 37 desta Constituição, limitada a dispensa às situações de que trata o referido inciso, sem prejuízo do controle dos órgãos competentes" (Incluído pela Emenda Constitucional nº 109, de 2021).

O novo dispositivo talvez tenha passado desapercebido dos últimos debates acadêmicos sobre licitações e contratos, especialmente considerada a edição da Lei 14.133/21 (nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos) e sua conexão com as antigas Lei 8.666/93, Lei 10.520/21, Lei 12.462/11.

Com efeito, enquanto durar a pandemia e seus efeitos  e a par da possibilidade de contratação temporária de pessoal  está o Poder Executivo Federal autorizado constitucionalmente a adotar, por decreto, processos simplificados para obras, serviços e compras, que assegurem, quando possível, competição e igualdade de competição, sem prejuízo do controle dos órgãos competentes.

Em outras palavras, o constituinte deu abertura para que o chefe do Poder Executivo federal, mediante decreto autônomo, fundamentado diretamente no texto constitucional (sem a necessidade da intermediação da lei), regule, com observância dos princípios da igualdade e da competividade, procedimentos simplificados e expeditos, de preferência com tecnologia de ponta, voltados a tornar mais céleres e menos litúrgicas as contratações de obras, serviços e compras no nosso país.

A experimentação de tais procedimentos durante a pandemia seria de grande utilidade para a Administração Pública brasileira, que colheria frutos com a antecipação dos modelos, para, quiçá, transformar a regra excepcional em procedimento padrão em tempos pós pandêmicos.

Nesse sentido, a título de sugestão, convém aqui reverenciar o trabalho do saudoso Marcos Juruena Vilela Souto acerca do placar eletrônico [2], como também as práticas das bolsas de preços e dos marketplaces digitais [3], tudo mediante essa nova possibilidade de regulamentação pelo Poder Executivo Federal dos procedimentos próprios às contratações públicas, durante e enquanto durarem os efeitos da pandemia de Covid-19. Não custa ousar…

É certo, como já disse o ex-ministro Pedro Mallan, que no Brasil até o passado é incerto, mas quem sabe as experiências de direito transitório sejam mesmo capazes, como externou Iwakura, de descortinar novos caminhos, de mostrar que nossas demoradas leis de licitações já nascem a cultivar o sentimento da própria reforma. Como diria Eistein: "A teoria sempre acaba, mais cedo ou mais tarde, assinada pela experiência".


[1] https://emporiododireito.com.br/leitura/breves-apontamentos-sobre-os-impactos-da-lei-n-14-195-2021-desburocratizacao-e-transformacao-digital Acesso em 21.09.21.

[2] SOUTO, Marcos Juruena Villela. Licitações e controle de eficiência: repensando o princípio do procedimento formal à luz do ‘placar eletrônico’. In. ARAGÃO, Alexandre Santos de. MARQUES NETO, Floriano Azevedo. Direito Administrativo e seus paradigmas, Belo Horizonte: 2008. p. 553-569.

[3] Sobre o tema, ver CHARLES, Ronny. NOBREGA, Marco. A nova Lei de Licitações, Credenciamento e e-marketplace: o turning point da inovação nas compras públicas. https://ronnycharles.com.br/a-nova-lei-de-licitacoes-credenciamento-e-e-marketplace-o-turning-point-da-inovacao-nas-compras-publicas/.

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