Opinião

O contrato como instrumento de liberdade econômica e fundamento da democracia

Autor

  • Eutálio Porto

    é desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo mestre em Teoria Geral do Estado professor de Direito Constitucional e Teoria Geral do Estado e autor do livro "O Estado Liberal".

23 de setembro de 2021, 16h04

O contrato é o revolucionário instrumento de coesão social responsável pela pacificação das relações entre os seres humanos desde a Revolução Agrícola, que retirou o homem da selva em que vivia sob a condição de caçador-coletor para uma vida urbana e civilizada. Em outros termos, o contrato proporciona segurança jurídica às relações socioeconômicas, pois, desenvolvido de forma natural ao longo dos séculos, tem como escopo estabelecer vínculos entre os indivíduos, atribuindo responsabilidades e determinando comportamentos.

Por intermédio do contrato particular, as relações sociais têm sido realizadas ao longo dos séculos sem a interferência direta do Estado. É o instrumento privado de maior importância e de liberdade individual, por onde o ser humano circula livremente seus bens, estabelece direitos e assume obrigações sem que o Estado interfira de forma direta, a não ser para utilizá-lo como prova da existência de fato gerador para incidência tributária, oferecendo, em contrapartida, seu aparelho judicial para dirimir controvérsias quando há litígio entre as partes.

De sorte que o contrato particular, que pode ser expresso ou tácito, é o responsável pelo amálgama humano e pelo progresso material e social da civilização. Acredita-se mais em suas cláusulas do que na pureza do amor ou nas amarras morais, à medida em que, quando esses sentimentos sucumbem, somente a higidez das obrigações estabelecidas é capaz de obrigar, pois o contrato faz lei entre as partes.

É por meio dele que ocorre a circulação de mercadorias e serviços, pelo qual passa formalmente a riqueza, assim como os demais compromissos. Antes que as coisas se realizem no plano fático, as partes ajustam o que será realizado no plano jurídico, constituindo o contrato, nessa ordem, o grande instrumento do processo civilizador e da paz social, porque com ele cada parte molda o seu comportamento e atua com a finalidade de cumprir o que fora estabelecido.

Através desse instrumento, a burguesia, na Idade Média, se libertou das amarras feudais e da superioridade da nobreza, formulando o conceito de autonomia da vontade e igualdade entre as partes, por isso, diz-se que ele é sinalagmático.

Como consequência disso, esses princípios contratuais acabaram influenciando a construção do Estado de Direito e da democracia como resultado das revoluções liberais, pois igualdade e liberdade estão no cerne do liberalismo.

Retrocedendo um pouco mais na história, é possível afirmar que a própria democracia teve sua gestação fecundada em um litígio contratual, mediante um confronto envolvendo a aristocracia que dominava Atenas e os pequenos produtores e comerciantes que se submetiam às cláusulas contratuais extremamente rígidas, cuja inadimplência tornava o devedor escravo do credor, além da cobrança de juros extorsivos que impunha a perda da propriedade.

O conflito chegou a tal ponto que foi preciso convocar o arconte [1] Drácon (621 a.C), de origem aristocrática, para reprimi-lo, o que o fez elaborando um código de leis extremamente rígido, causando ainda mais revolta e eternizando, inclusive, a expressão "cláusulas draconianas" quando se quer expressar a existência de condições desfavoráveis a uma das partes [2].

Porém, as ásperas leis de Drácon acirraram ainda mais o conflito e, por isso, foram substituídas por Sólon (638-558 a.C), cuja natureza conciliadora possibilitou a promoção de reformas na estrutura estatal visando a ampliar a participação popular nas decisões da polis. Também editou regras a serem aplicadas na elaboração contratual, dando maior equilíbrio às relações entre as partes, tornando-o mais justo. Com isso, proibiu a perda da propriedade e a escravidão decorrentes da inadimplência contratual, criou a Eclésia (uma assembleia democrática para discutir os assuntos da cidade) e ainda instituiu um tribunal de justiça (helieia) onde os conflitos poderiam ser discutidos com imparcialidade e à luz regras claras. Por essas reformas, Sólon é considerado o pai da democracia.

Séculos depois, Aristóteles (385-323 a.C) retratou esse período numa análise sobre a Constituição de Atenas. Ele destacou que muitos eram escravizados por poucos, o que ocasionou uma "insurreição do povo contra os notáveis", gerando "uma luta de faões violenta" e "hostilidade tua" de tal gravidade que "de comum acordo" resolveram procurar Sólon "para que atuasse como árbitro e arconte".

Diz ele que foi em razão dessa revolta que Drácon foi substituído por Sólon (594 a.C.), um comerciante e poeta considerado um dos sete sábios gregos que buscaram o diálogo, ao invés da repressão, para reformular a economia e regulamentar a relação contratual, tendo ampliado a participação popular e criado instituições jurídicas para dirimir os conflitos.

Com isso, por intermédio de uma melhor regulamentação na formatação dos contratos, assim como melhorando as instituições jurídicas da polis, Sólon trouxe à luz a democracia, cuja premissa básica funda-se na tomada de decisão pelo povo de forma livre.

Aristóteles, ao descrever as resoluções de Sólon, destaca três pontos:

"(…) Primeiro e mais importante, a proibição de empréstimos tendo como garantia a pessoa do devedor; em segundo lugar, o direito de todo indivíduo, que assim quisesse, de reivindicar proteção a favor de pessoas injustiçadas; e, em terceiro lugar — considerado o que mais contribui para o fortalecimento da massa da população — o direito de recorrer às cortes de justiça, pois ao passar a ter o poder soberano do voto, o povo tornasse soberano do governo" [3].

De sorte que, se um conflito contratual fecundou a democracia e moldou as instituições públicas, pode se dizer que ela veio à luz para garantir o justo direito dos contratantes, ou seja, a estruturação das instituições democráticas do Estado veio à tona para garantir a segurança contratual, forjando, nessa esteira, um amálgama em que a liberdade e a igualdade contratual somente sobrevivem onde há democracia. Em outros termos, a democracia, como regime político, é nessa medida imanente a liberdade econômica.   

É possível afirmar que esses princípios advindos do direito privado foram transportados para outras esferas da vida pública, fortalecendo o livre mercado, ocorrendo "uma mudança no poder político" que é transferido "das mãos de uma minoria privilegiada para as mãos do povo", como bem definiu Mises [4].

Também, nas palavras de Thomas Hobbes [5], "fazer pacto é um ato da vontade, quer dizer, um ato, da deliberação" e não um ato de força, considerando que a coação contratual é contrária à sua finalidade e, por isso, a lei considera passível de anulação o contrato assinado sob essas condições. Ou seja, quando uma das partes tenta, por intermédio da força, impor sua vontade unilateralmente, infringe o caráter sinalagmático do contrato e viola a autonomia da vontade.

Não foi por menos que todos os códigos, desde o Corpus Juris Civilis, organizado pelo Imperador Justiniano (533 d.C) [6], visavam a afastar as obrigações quando formalizados com dolo, simulação ou coação, tal qual estabelece até os dias atuais as legislações liberais, consoante dispõe os artigos 145 a 155 do Código Civil Brasileiro.

Essa liberdade contratual, tipicamente privada e transportada para o âmbito político e ampliado para outras esferas do Direito, também impôs limites às monarquias absolutistas, porque, assim como os indivíduos assumem seus compromissos mediante pactos, da mesma forma o governante também deve ser limitado no seu poder político mediante regras gerais fixadas na lei.

Por essa razão, não é possível que o governante avoque o monopólio da soberania, quando a liberdade contratual e aplicada na esfera privada. São situações antinômicas, ou seja, Estado e sociedade devem ter idênticos paradigmas. Seria o mesmo que o regime comunista garantisse a propriedade privada e a liberdade religiosa, pois a ordem econômica está intrinsicamente ligada ao regime político. Por isso, onde há liberdade contratual deve haver livre mercado e democracia.

A Carta Magna de 1214, insculpida pelos ingleses, representa o exemplo clássico da importância da fixação de limites à monarquia, face à intervenção na esfera particular, ao fixar que: "Nenhum homem livre será detido ou aprisionado, ou privado de seus direitos ou bens, ou declarado fora da lei, ou exilado, ou despojado, de algum modo, de sua condição; nem procederemos com força contra ele, ou mandaremos outros fazê-lo, a não ser mediante o legítimo julgamento de seus iguais e de acordo com a lei da terra."

Com isso, é similar à ideia de contrato privado e social, pois, enquanto o primeiro rege as relações individuais, o segundo, a relação entre o povo e o Estado. Em outros termos, o contrato particular faz lei entre as partes o contrato social é a lei que vincula o governante aos governados, como definiu Jean-Jacques Rousseau ao dizer que existem tanto os contratos firmados entre particulares quanto os contratos gerais, firmados para limitar a ação dos governantes.

Disse ele que: "Como nenhum homem possui autoridade sobre seu semelhante e como a força não produz nenhum efeito, restam, então, as convenções como base de toda a autoridade legítima entre os homens" [7].

Nesses termos, a liberdade contratual somente poderá existir quando essa liberdade também se constitua em princípio fundamental no âmbito político. A liberdade conferida aos indivíduos, como esclarece Mises [8], encontra-se, sobretudo, no sistema de mercado, tendo sido transferida para âmbito político. O que implica em dizer que os direitos à liberdade e à igualdade garantidos nas constituições não foram instituídos sob o manto iluminado do legislador, mas sim como uma decorrência da liberdade contratual.

Nessa mesma linha, escreveu Frédéric Bastiat (1801-1850): "O direito coletivo tem, pois, seu princípio, sua razão de ser, sua legitimidade, no direito individual. E a força comum, racionalmente, não pode ter outra finalidade, outra missão que não a de proteger as forças isoladas que ela substitui" [9].

Nas relações contratuais, assim como na relação entre o povo e o Estado, não interessa a posição social, econômica ou o título atribuído a quaisquer das partes, porque, todos são iguais. Não há nobre nem plebeu, todos gozam do mesmo status de cidadania e são tratados com respeito e dignidade. Se há diferenças físicas, culturais, patrimoniais entre as pessoas, na relação contratual todos são iguais.

Liberdade e igualdade são os dois princípios fundamentais do liberalismo que formam a base de todo o ordenamento jurídico democrático, tanto no plano contratual quanto no plano político, como declararam os revolucionários franceses ao estabelecerem como premissa: Liberté, Egalité, Fraternité.

Por isso, o legislador brasileiro insculpiu no artigo 5º, da Constituição de 1988, a igualdade, a liberdade, a propriedade, como garantias fundamentais do indivíduo, e as considerou cláusulas pétreas.

Em conclusão, a liberdade e a igualdade exercidas no âmbito contratual são essenciais também no âmbito político e formam um contraponto para evitar o próprio abuso do poder do Estado, pois, quando a propriedade está dividida nas mãos de muitos torna difícil o controle por parte do Estado, uma vez que a independência econômica faz com que o indivíduo seja livre dos favores governamentais, contrariamente, o monopólio torna o indivíduo dependente.

Como esclarece Milton Friedman, "na cooperação voluntária e no empreendimento privado, tanto na atividade econômica quanto em iniciativas diversas, podemos garantir que o setor privado atue como contrapeso dos poderes do setor público e como proteção eficaz da liberdade de expressão, de religião e de pensamento."  

Prossegue Friedman: "As organizações econômicas desempenham duplo papel na promoção da sociedade livre. Primeiro, como componente da liberdade em sentido amplo, a liberdade econômica é fim em si mesma. Segundo a liberdade econômica também é meio indispensável para a consecução da liberdade política" [10].

Sob o mesmo raciocínio, Hayek já havia concluindo em "O Caminhos da Servidão" que o poder econômico, se por um lado é considerado "um instrumento de coerção", por outro, "nunca se torna, nas mãos de particulares, um poder exclusivo ou completo; jamais se converte em poder sobre todos os aspectos da vida de outrem. No entanto, centralizado como instrumento do poder político, cria um grau de dependência que mal se distingue da escravidão" [11].

Em arremate, pode se concluir que a liberdade contratual, assim como a igualdade entre as partes, atrai como regime de governo a democracia, pois uma coisa está ligada a outra. Igualdade, liberdade contratual, livre concorrência e livre iniciativa são imanentes ao regime democrático e encontram-se na mesma gênese, por isso moldam a organização estatal.

 


[1] Título conferido aos nobres que atuavam nas assembleias de Atenas.

[2] Decisão do TJRJ objeto de Recurso Especial nº 1.537.898 – RJ (2013/0138782-7), que faz referência a cláusula contratual draconiana: "Ação indenizatória. contrato de distribuição de bebidas. comportamento do fornecedor que após décadas de relacionamento comercial desborda dos princípios constitucionais e legais atinentes à atividade econômica para forçar o afastamento da distribuidora. imposição progressiva de cláusulas draconianas tendentes a dificultar a ação da distribuidora. alienação diretamente a clientes em condições mais favoráveis que as estabelecidas para a distribuidora. exercício abusivo do poderio econômico do vendedor que não apenas acarretaram a ruína da distribuidora, como empresa, mas também atingiram diretamente as pessoas e os patrimônios dos sócios. legitimidade destes para pleitear indenização pelos danos…" (grifos do autor).

[3] ARISTÓTELES. Constituição de Atenas. São Paulo: Edipro, 2012, p. 46-51

[4] Ludwig von Mises. Liberdade e Propriedade, p. 84, LVM Editora, São Paulo, 2017.

[5] Thomas Hobbes. Leviatã. P.120, editora Martins Fontes

[6] Compilação de várias regras do Império Romano organizado em 533 d.C. por ordem do imperador bizantino Justiniano I.

[7] Jean-Jacques Rousseau. Contrato Social, p. 21. Editora Hemus.

[8] Ludwig von Mises. Liberdade e Propriedade, p. 157. LVM editora.

[9] Frédéric Bastiat. A lei, José Olympio editora em convênio com o Instituto Liberal, p 11.

[10] FRIEDMAN, Milton. Capitalismo e Liberdade, p. 3/11, editora LTC, Rio de Janeiro. 2014.

[11] HAYEK, F.A. O Caminho da Servidão. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2010, p. 180.

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    é desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo, mestre em Teoria Geral do Estado, professor de Direito Constitucional e Teoria Geral do Estado e autor do livro "O Estado Liberal".

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