"Chiste na vida privada"

TJ-SP absolve veterano por trote machista em faculdade de medicina

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22 de setembro de 2021, 12h28

O Estado não deve se envolver em chistes feitos na vida privada dos cidadãos. Com esse entendimento, a 9ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo isentou um ex-aluno da Faculdade de Medicina de Franca de pagar indenização por dano moral coletivo por atos machistas em um trote universitário.

Conforme a ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público, o ex-aluno teria obrigado os calouros de medicina a entoar juramentos de teor machista e sexista, tais como "juro solenemente nunca recusar uma tentativa de coito de veterano" e "prometo usar, manipular e abusar de todas as dentistas que tiver oportunidade".

O MP, então, ajuizou a ação com o argumento de que os juramentos ofenderam a dignidade das mulheres. Porém, a ação foi julgada improcedente em primeira instância. E, por maioria de votos, em julgamento estendido, o TJ-SP manteve a sentença. O relator do caso foi o desembargador Rogério Murillo Pereira Cimino.

"Depreende-se do juramento entoado, em que pese o conteúdo reprovável, mera infração de ordem moral incapaz de causar consequências no âmbito jurídico, posto que as declarações foram realizadas em tom de brincadeira tanto pelo veterano que as entoou como pelas demais participantes que a repetiram, de livre e espontânea vontade, tudo em tom jocoso, a eliminar a gravidade que se pretende imputar aos fatos", afirmou.

Segundo Cimino, o animus jocandi é capaz de excluir até mesmo o dolo da responsabilidade criminal, em delitos contra a honra, "afinal não se pode criminalizar o humor, ainda que julgado seu conteúdo como imoral, discriminatório e machista". Para o magistrado, não cabe ao Poder Judiciário debater o nível do humor praticado nem se o humor é inteligente ou popular.

"Ora, a Carta Magna de 1988 consagra a liberdade, em absoluto impedimento à censura de qualquer forma (artigo 220, §2º), sendo livre a manifestação do pensamento, ressalvados os excessos, que não ocorreram no caso em tela, haja vista, diga-se vez mais, a brincadeira envolvendo a situação (artigo 5º, incisos IV e V). O acolhimento do pleito autoral, portanto, configuraria a temida censura, verdadeira mordaça ao cidadão, o que não pode ser admitido", completou.

Segundo o relator, não se pretende incentivar a disseminação de opiniões e pensamentos machistas, sexistas, misóginos ou discriminatórios, "valores que se chocam aos escolhidos pela nossa sociedade", sendo que agressões contra as mulheres devem ser coibidas e punidas legalmente sempre que ocorrerem.

"O que se pretende é aplicar ao caso concreto a ponderação entre os valores igualmente protegidos constitucionalmente, que ao colidirem não podem ter como solução a exclusão de um em detrimento do outro direito, o que exige a aplicação do princípio da proporcionalidade a fim de aferir o direito preponderante no caso concreto. Desse modo, o que se propõe é o bom senso e o limite do razoável entre o que é chiste e o que é ofensa séria e grave, a macular os direitos fundamentais das mulheres, o que não se verificou in casu", disse Cimino.

Ele também embasou a decisão no fato de que as calouras não repudiaram a fala do veterano e proclamaram o juramento "sem constrangimento algum": "São estudantes universitárias, maiores e plenamente capazes civilmente, as quais, caso houvessem ao menos se incomodado com a situação, poderiam ter se retirado do evento ou silenciado à brincadeira".

Discurso de ódio 
O segundo juiz, desembargador Piva Rodrigues, ficou vencido. Ele votou para acolher o recurso do MP por entender que está superado, em termos de evolução interpretativa dos direitos fundamentais, o manto do animus jocandi ou da "mera brincadeira" como justificativa para aceitar a discriminação e a diminuição de pessoas historicamente marginalizadas e oprimidas.

"Não há que se falar, no caso, de análise pelo Poder Judiciário do 'nível do humor' empregado pelo réu. Não se pode confundir humor com discurso de ódio, com discriminação, seja ele feito de punhos em riste, seja feito aos sorrisos e risadas. O preconceito dirigido a grupos historicamente preteridos em seus direitos e ceifados da plena cidadania, independentemente do tom adotado, não tem mais lugar na sociedade que a Constituição Federal de 1988 busca construir", afirmou.

Para ele, o dano moral coletivo ficou configurado na medida em que a manifestação do réu, publicamente proferida e com ampla difusão, seja pela mídia tradicional, seja pelas redes sociais, causou lesão a valores fundamentais, coletivos e difusos da sociedade: a igualdade entre homens e mulheres e a dignidade das mulheres.

"Apesar de existir, na doutrina, proposta de diferenciação entre dano moral coletivo e dano social, no caso concreto não resta evidenciada a ocorrência de duas espécies distintas de dano. A conduta do réu é socialmente reprovável e gera danos morais coletivos especialmente às mulheres. Representa rebaixamento do nível social justamente pela ofensa à honra, à autoconsideração e à dignidade das mulheres. Não se vislumbra aqui, na prática, espécies distintas de dano", concluiu.

1020336-41.2019.8.26.0196

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