Opinião

O juiz das garantias e a tunnel vision — Parte 1

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20 de setembro de 2021, 13h02

A Lei nº 13.964/2019, que alterou artigos do Código de Processo Penal (CPP), estabeleceu, entre outros pontos, a figura do juiz das garantias. Por esse novo regramento, dois juízes diferentes passam a atuar no procedimento criminal: um durante a fase investigatória (juiz das garantias) — até o recebimento da denúncia (artigo 3º-C) — e outro na fase processual (juiz do processo). Visando a garantir a imparcialidade do juiz do processo, ocorre o afastamento desse julgador dos elementos produzidos na fase de investigação com o objetivo de evitar sua contaminação pelas diligências havidas durante a fase preliminar da persecução penal, o que poderia interferir de forma crucial em seu julgamento.

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Assim, caberia ao juiz das garantias decidir, durante a fase investigatória, sobre a prisão provisória, a prorrogação da prisão preventiva, a busca e apreensão domiciliar, a intercepção telefônica, o afastamento dos sigilos fiscal, bancário, de dados e telefônico, o acesso a informações sigilosas, além de outras medidas envolvendo a obtenção de provas que restrinjam direitos fundamentais dos investigados (artigo 3º-B). O juiz das garantias também teria a função de receber ou não a denúncia elaborada pelo Ministério Público nas ações penais incondicionadas ou queixas-crimes, no caso de ações penais de natureza privada.

O novel instituto do juiz das garantias, porém, teve seu início de vigência suspenso em 2020 por liminar cautelar deferida pelo ministro Luiz Fux na ADI 6.298/DF, requerida pela Associação dos Magistrados Brasileiros e por outros. Nada obstante, o tema deve retornar ao debate na maior instância do Poder Judiciário em breve.

Há posições divergentes sobre a implantação do juiz das garantias no Brasil. Para aqueles que defendem o juiz das garantias, esse modelo teria o mérito de assegurar a imparcialidade do julgador da ação penal. Já os contrários à incorporação do instituto ao processo penal brasileiro — como as entidades corporativas ligadas à magistratura e ao Ministério Público — se apegam, entre outras razões, a eventuais dificuldades estruturais do Poder Judiciário, pois muitas comarcas do país têm apenas um juiz.

No entanto, um dos principais fundamentos a legitimar a incorporação do juiz das garantias ao sistema penal brasileiro, e que não é debatido na doutrina pátria, é psicológico, mais especificamente, decorrente do fenômeno conhecido como tunnel vision ("visão de túnel"). Segundo Keith Findley, professor da Faculdade de Direito da Universidade de Wisconsin, o tunnel vision "é uma tendência humana natural que é particularmente perniciosa ao sistema de justiça criminal" [1].

Para compreendermos o conceito de tunnel vision, importante transcrever uma das pesquisas realizadas para analisar a influência desse fenômeno cognitivo no procedimento criminal. Barbara O’Brien, professora da Faculdade de Direito da Universidade de Michigan, conduziu um estudo com 108 estudantes universitários que foram recrutados para participar de uma pesquisa sobre a tomada de decisão em investigações criminais [2]. Os participantes receberam cópia de um arquivo de uma investigação criminal sobre uma invasão domiciliar e um tiroteio, contendo um conjunto diversificado de materiais como fotografias de vários suspeitos, declarações de testemunhas, relatórios balísticos e um mandado judicial para revista no apartamento de um suspeito. Os participantes, então, foram orientados a ler a primeira metade desse arquivo, que correspondia ao início das investigações, com poucas evidências concretas sobre a identidade do criminoso.

Ao final dessa primeira etapa, os participantes foram divididos em dois grupos. Apenas um desses grupos foi instado a formar uma hipótese de culpa para um dos suspeitos, recebendo a seguinte orientação: "É início das investigações e há muito mais a fazer, mas com base no que você sabe agora, quem você acha que é a pessoa mais provável que atirou na vítima? Está tudo bem se você não tem certeza, apenas declare sua melhor hipótese sobre quem fez isso". Em seguida, foi solicitado aos integrantes desse grupo para "explicar os motivos pelos quais você acha que essa pessoa pode ser a culpada". Após indicarem o suspeito, todos os participantes foram orientados a ler a segunda metade do arquivo da investigação criminal, que continha outras provas do crime.

Os resultados desse estudo mostraram que os participantes que indicaram um suspeito do crime logo no início das investigações: a) mostraram melhor memória para fatos consistentes (em oposição a inconsistentes) com a teoria de que o suspeito previamente indicado por ele era culpado; b) interpretaram informações ambíguas consistentes com a culpa do suspeito indicado por eles; c) lembraram como verdadeiras mais provas que condenavam seu suspeito e como falsas as provas que tendiam a inocentá-lo; d) escolheram mais linhas de investigação que focavam em seu suspeito e menos etapas investigativas direcionadas a um suspeito alternativo; e e) mudaram suas atitudes sobre a utilidade e confiabilidade de certos tipos de provas (por exemplo, o depoimento de testemunha ocular), dependendo se tal prova apoiava ou minava suas hipóteses prévias de culpa. Os resultados mostraram que o simples ato de nomear um suspeito e gerar motivos para essa suspeita — algo que policiais, membros do Ministério Público e juízes que concedem medidas restritivas de direitos individuais na fase investigatória costumam fazer — influencia o julgamento do caso. A pesquisa, portanto, sugere que o tunnel vision é atuante no procedimento criminal, podendo prejudicar a precisão da investigação e do próprio julgamento penal.

Assim, conforme ensina o professor Keith Findley, o fenômeno do tunnel vision tem sido entendido como aquela tendência humana natural, produzida devido a certos vieses cognitivos, que conduzem os atores do sistema de Justiça Criminal a focar em um suspeito e, em seguida, selecionar, filtrar ou superestimar as provas disponíveis contra ele, ao mesmo tempo em que ignoram ou suprimem provas contrárias ou outras linhas de pesquisa. Trata-se, portanto, de um fenômeno que faz com que os agentes se concentrem em uma determinada conclusão ou premissa particular e, então, ao olhar para as provas do caso, agarram-se a essa premissa, fazendo com que as demais provas pareçam concordantes com ela [3].

No mesmo sentido, Mark Godsey, professor da Faculdade de Direito da Universidade de Cincinnati, afirma que o tunnel vision ocorre toda vez que os diferentes atores do sistema desenvolvem uma crença ou suspeita inicial, agarram-se a ela e, então, interpretam toda a informação posterior de maneira tal que seja consistente ou confirme a crença inicial. Esclarece que esse fenômeno é uma tendência humana natural, pois os vieses cognitivos são parte da maneira como funciona o cérebro humano, sendo capaz de afetar a qualidade das investigações criminais, das evidências obtidas e, como consequência necessária, a qualidade das decisões que os juízes tomam com base nessas informações [4].

Devido ao tunnel vision, os atores do sistema penal — policiais, membros do Ministério Público e juízes — se concentram em uma ideia ou premissa pré-existente específica e, por meio dela, as provas do caso são analisadas e integradas, obtendo-se sempre conclusões consistentes com a hipótese inicial. Assim, as provas consistentes com a ideia inicial são superestimadas em seu valor e relevância, e, pelo contrário, aquelas que são inconsistentes ou que vão contra a hipótese inicial são rapidamente rejeitadas ou consideradas pouco confiáveis. Dessa forma, o fenômeno acaba impactando profundamente as decisões dos diversos atores do sistema criminal.

Continua na Parte 2

Referências bibliográficas
FINDLEY, Keith A. Tunnel vision. In CUTLER, Brian Cutler. Conviction of the innocent: Lessons from psychological research. Washington, D. C.: American Psychological Association, 2012.

GODSEY, Mark. Blind injustice. Oakland: University of California Press, 2017.

O’BRIEN, Barbara. Prime suspect: An examination of factors that aggravate and counteract confirmation bias in criminal investigations. Psychology, Public Policy, and Law, n. 15, 2009, p. 315–334.

ROMÁN, Víctor B. Visión de túnel: notas sobre el impacto de sesgos cognitivos y otros factores en la toma de decisiones en la justicia criminal. Revista de Estudios de La Justicia, n. 34, jun. 2021, p. 17-58.

 


[1] FINDLEY, Keith A. Tunnel vision. In CUTLER, Brian Cutler. Conviction of the innocent: Lessons from psychological research. Washington, D. C.: American Psychological Association, 2012. p. 303.

[2] O’BRIEN, Barbara. Prime suspect: An examination of factors that aggravate and counteract confirmation bias in criminal investigations. Psychology, Public Policy, and Law, n. 15, 2009, p. 315–334.

[3] FINDLEY, Keith A. Op. cit. p. 304.

[4] GODSEY, Mark. Blind injustice. Oakland: University of California Press, 2017. p. 172.

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