Opinião

Considerações sobre a devolução de medidas provisórias no Brasil

Autor

20 de setembro de 2021, 9h12

Após o presidente do Senado ter devolvido a Medida Provisória nº 1.068, no último dia 15, a prática de devolução de MPs volta ao centro dos debates, levantando questionamentos sobre sua possibilidade constitucional e seus efeitos jurídicos.

Efeito processual da devolução de MPs
Em artigo seminal sobre o tema, Paulo Mohn traz um apanhado histórico dos raros casos de devolução de MPs, quase um a cada década, analisando a fundamentação jurídica dos atos, bem como seus efeitos.

No primeiro caso, em 1989, apesar de devolvida pelo presidente do Senado, a MP 33 continuou vigente até que se desse a perda de eficácia por decurso de prazo, tendo a devolução natureza meramente ritual, de interromper a tramitação da matéria no Congresso, mas não seus efeitos jurídicos. No segundo caso, em 2008, o presidente do Senado anunciou a devolução da MP 446, mas seu ato não impediu que a Câmara, por discordar do ato unilateral de devolução, apreciasse e rejeitasse a medida. Quanto à MP 669, em 2015, ela foi formalmente revogada pela própria presidente da República dias após o ato de devolução com a edição da MP 671. O mesmo ocorreu com a MP 979, em 2020, quando o presidente também editou MP revocatória.

Paulo Mohn argumenta que em todos os casos a devolução não operou efeitos jurídicos, sendo necessário ou o término da vigência por decurso de prazo (MP 33), ou a rejeição expressa pelo Congresso (MP 446), ou, ainda, a edição ulterior de atos normativos revocatórios (MPs 669 e 979).

Como o próprio Supremo Tribunal Federal já assentou na ADI 293, a MP possui natureza dúplice, tanto inovando a ordem jurídica como ato normativo quanto provocando a atuação do parlamento como proposição. Sob esse fundamento, a Suprema Corte estabeleceu que o presidente da República não pode retirar uma medida provisória de tramitação da mesma forma que pode fazer com projetos de lei de sua autoria, uma vez que a MP consiste, também, num ato normativo de vigência imediata. Se não pode retirar a MP por essas razões, o presidente da República, no entanto, pode revogá-la, mediante a edição de outra medida provisória, eis que se trata de ato normativo de mesma hierarquia.

O raciocínio invocado para impedir que o presidente da República possa retirar uma MP também pode ser aplicado para impedir que a devolução da MP pelo presidente do Senado opere efeitos jurídicos.

Isso porque o fundamento utilizado pelos presidentes do Senado na devolução das MPs 446, 669 e 979 foi o mesmo, qual seja, o dispositivo regimental que confere ao presidente da Câmara Alta a prerrogativa de impugnar as proposições que lhe pareçam contrárias à Constituição (artigo 48, XI, do regimento interno do Senado Federal).

Ora, como proposição, a medida provisória poderia, sim, ser devolvida por vício de inconstitucionalidade declarado pelo presidente do Senado. Mas tal ato teria efeitos meramente processuais, não podendo um ato declaratório do presidente do Senado invalidar ato normativo primário como a medida provisória.

Essa é a opinião de Paulo Mohn, que afirma que o duplo efeito da medida provisória faz com que o ato de devolução tenha natureza processual, não operando a revogação da medida na seara normativa.

Nesse sentido, pode-se interpretar o ato de devolução como um ato político, indicativo de que o Congresso não se debruçará sobre a matéria enquanto proposição, mas necessitando, ainda assim, de um ato jurídico revocatório para fazer cessar os efeitos da medida provisória, como a rejeição expressa pelo Congresso, a revogação por outra MP ou, ainda, a declaração de inconstitucionalidade feita pelo STF.

Devolução de MPs como rejeição sumária
Com dois casos recentes de devolução de MPs no governo Bolsonaro, a prática de devolução, ao que parece, vem se consolidando como possibilidade política e também vencendo resistências no campo do Direito.

A devolução da MP 1068 inovou ao conferir roupagem jurídica mais robusta ao ato de devolução. Alicerçado no mesmo artigo 48, XI, do regimento interno do Senado, o presidente Rodrigo Pacheco expôs as razões pelas quais considera a matéria inconstitucional, mas, ao invés de meramente devolver a MP ao Executivo e declarar o encerramento de sua tramitação, como nos casos anteriores, considerou o ato de devolução como manifestação de rejeição sumária da medida provisória.

Em assim fazendo, o presidente do Senado supera o questionamento de que a devolução não tem o condão de fazer cessar os efeitos jurídicos da MP, já que, nesse caso, a devolução foi interpretada, para todos os efeitos, como a rejeição de admissibilidade da MP, rejeição essa de natureza sumária e exercida pelo presidente do Senado na qualidade de chefe do Poder Legislativo, servindo, assim, para fulminar a MP no campo normativo.

Em artigos sobre o tema, Roberta Simões Nascimento argumenta que a prática de devolução, apesar de não expressa em qualquer normativo pátrio, vem se consolidando como um costume constitucional, com aval do STF no âmbito da ADI 6991.

Segundo a autora, o juízo prévio de admissibilidade da medida provisória antes da análise do mérito, previsto no §5º do artigo 62 da Constituição, poderia ser exercido monocraticamente pelo presidente do Senado como espécie de medida cautelar legislativa, consubstanciando, assim, um controle de constitucionalidade prévio. A autora concorda com a tese de que a devolução manifesta a rejeição sumária da medida provisória e, portanto, faz cessar sua eficácia.

Por ser medida drástica, aduz a autora, a devolução não poderia ser utilizada em "qualquer inconstitucionalidade", mas somente nos casos em que não se pode aguardar a regular marcha do processo legislativo destinado a rejeitar a medida provisória e desconstituir seus efeitos por meio da edição de decreto legislativo. A urgência em restaurar a ordem jurídica abalada pela medida provisória inconstitucional, com efeitos imediatos, é o que ensejaria o ato de devolução por parte do presidente do Senado.

O problema continua
Medidas para conter o excesso legiferante do Executivo são bem-vindas e têm contado com a boa vontade do STF.

Foi assim quando, em 2009, o presidente da Câmara, deputado Michel Temer, restringiu a aplicação do trancamento de pauta por MPs e a medida foi chancelada pelo ministro Celso de Mello na cautelar do MS 27.931-1, pois "teria a virtude de devolver, à Câmara dos Deputados, o poder de agenda" e "preservar, íntegro, o poder ordinário de legislar atribuído ao Parlamento".

Parece ser esse o caso também agora. Ao suspender cautelarmente os efeitos da MP 1068 no âmbito da ADI 6991, a ministra Rosa Weber afirma que sua decisão "não impede que o eminente presidente do Congresso Nacional formule, eventualmente, juízo negativo de admissibilidade quanto à Medida Provisória 1.068/2021, extinguindo desde logo o procedimento legislativo resultante de sua edição". Ou seja, a ministra mostrou ser possível a prática de devolução de medidas provisórias, como exercício de juízo negativo de admissibilidade, embora não tenha ficado claro qual o efeito jurídico do ato, se apenas impedir o "procedimento legislativo resultante de sua edição" ou efetivamente desconstituir-lhe os efeitos.

Não obstante, a polêmica permanece.

Se a devolução consiste no exercício antecipado do juízo de admissibilidade, feito pelo presidente do Congresso com fulcro no artigo 62, §5º, da Constituição, então é forçoso que tal juízo se restrinja à verificação dos pressupostos constitucionais de relevância e urgência na edição da medida provisória. Apenas quando for evidente e manifesta a falta de um desses pressupostos é que o presidente do Congresso poderia devolver a medida provisória após antecipar o juízo de admissibilidade. Não caberia, nesse momento, a análise material da constitucionalidade da MP, exame mais detido que precisaria da manifestação do plenário de uma das casas.

Além disso, se se quer combater o abuso da prerrogativa legiferante do presidente da República mediante a atribuição de uma prerrogativa irrecorrível a um ator individual, isto é, ao presidente do Congresso, o que garante que esse ator não abusará de sua prerrogativa mais à frente? Sendo ele um ator político, é no mínimo questionável se o ato de devolução seria a melhor solução para fazer cessar os efeitos normativos de uma MP flagrantemente inconstitucional, ou se a suspensão liminar da eficácia da MP, declarada pelo órgão judicial competente, não continua sendo o caminho mais eficiente, posto que constitucional, regulamentado e exercido por um órgão não político, o que pode trazer menos incerteza ao cenário político e preservar a segurança jurídica.

Assim, a rejeição sumária da MP pelo presidente do Congresso, seja como decorrência do juízo negativo de admissibilidade, seja eventualmente como fruto da constatação de inconstitucionalidade material, pode suscitar questionamentos sobre a violação do devido processo legislativo, eis que a ação individual e inapelável do presidente do Congresso pode ser vista como atentatória ao princípio da colegialidade, princípio esse basilar da estrutura do Poder Legislativo.

Ora, caberia recurso sobre o ato de devolução da medida provisória? Apresentado por quem? Deputados, senadores, o próprio presidente da República? Tal recurso seria votado em qual órgão deliberativo?

E mais, o presidente do Congresso poderia devolver apenas partes da medida provisória? Repare que isso já ocorreu na MP 886, quando o presidente do Senado à época, senador Davi Alcolumbre, considerou "não escrito" trechos da citada MP. Se tal prática for exercida no limite, o presidente do Congresso teria grande poder de veto sobre as MPs, configurando-se como um legislador negativo de medidas provisórias.

Ademais, poderia o presidente da Câmara se valer da mesma prerrogativa de impugnar matérias que lhe pareçam inconstitucionais quando a medida provisória estiver em apreciação naquela casa? Ora, o regimento interno da Câmara lhe outorga essa prerrogativa (artigo 137, §1º, II, "b"). Se o juízo de admissibilidade pode ser exercido antecipadamente pelo presidente do Congresso quando do recebimento da medida provisória no parlamento, teria o presidente da Câmara a mesma faculdade quando a MP fosse recebida naquela casa?

Em se consolidando a prática de devolução de medidas provisórias, o presidente do Congresso se tornará um veto player importante, minando o poder de agenda do presidente e alterando a natureza da relação Executivo-Legislativo no Brasil.

Como se vê, são muitos os questionamentos que ainda remanescem. Se a devolução de MPs vem se consolidando como uma prática jurídico-política, ainda é insuficiente para pacificar o trâmite das medidas provisórias no Brasil e, em nível mais amplo, o próprio presidencialismo de coalizão.

 

Referências bibliográficas
MOHN, Paulo. Devolução de Medida Provisória não afasta por completo os seus efeitos. Revista Consultor Jurídico, 28 de junho de 2020.

NASCIMENTO, Roberta Simões. Sobre a constitucionalidade da ‘devolução’ de medidas provisórias: Natureza de ‘medida cautelar’ legislativa justifica o expediente. Jota, 29 de junho de 2020.

______. O costume constitucional da devolução in limine de medidas provisórias: Devolução da MP nº 1.068/2021 mostra dupla necessidade de regulamentação. Jota, 15 de junho de 2021.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!