Opinião

Sistematização jurídica-tecnológica: avanço digital e conveniência de leis

Autores

  • Beatriz Morete da Paixão Marangoni

    é estagiária em Direito do escritório HSVL Advogados estudante do curso de Direito na Universidade Presbiteriana Mackenzie com Iniciação Científica em andamento e participante da Comissão dos Acadêmicos de Direito da OAB-SP.

  • Plínio Higasi

    é mestre em Inteligência Artificial e Direito Digital especialista em direito aplicado à tecnologia criador do DigitalRights Association Portal DigitalRights.cc e sócio da HSVL Advogados Associados.

20 de setembro de 2021, 15h05

Perceptível é o fato de que, por meio das inovações tecnológicas provenientes de avanços expressivos nos últimos anos, os países vêm enfrentando certa dificuldade para criar e aplicar, de forma efetiva, dentro de seus sistemas jurídicos, leis que regulem determinadas situações do cotidiano. Com a crise gerada pela Covid-19, o grande impacto pela adoção em tempo recorde de novas tecnologias ficou mais evidente, assim, constataram-se também as necessárias alterações ao sistema jurídico diante dessa adaptação a novos sistemas e tecnologias. Contudo, necessário se faz o questionamento: estamos no momento ideal para a criação de normas que regulem essas situações?

No dia 6 de julho deste ano, por meio do Projeto de Lei n° 21/2020, chamado Marco Legal do Desenvolvimento e do Uso da Inteligência Artificial, criado pelo deputado Eduardo Bismarck (PDT-CE), foi instaurado, na Câmara dos Deputados, regime de urgência para analisar a PL anteriormente citada. O principal objetivo dessa lei é estabelecer "princípios, direitos e deveres para o uso de inteligência artificial no Brasil, e outras providências". A partir dela, seriam criados meios legais e específicos para a aplicação direta da inteligência artificial dentro da rotina brasileira, e, ainda, dentro das relações jurídicas e possíveis conflitos e fatos jurídicos que surgiriam por meio dela.

Em um primeiro momento, necessária se faz a definição sobre o significado da expressão "inteligência artificial". Esse termo foi usado pela primeira vez no ano de 1955, pelo professor estadunidense John McCarthy, que via desde a década de 50 a utilização de máquinas avançadas que seriam capazes de decifrar, por meio de códigos exatos e algoritmos, e reprisar comportamentos humanos, assim como desempenhar atividades do dia a dia. A partir dela, temos os chamados machine learning, isto é, um conjunto de ações que serão decifradas pela inteligência e resultará em uma decisão independente. Assim, essa terá a capacidade livre de atuar e produzir resultados, sem a necessidade de uma interferência humana em cada circunstância para direcionamento, e tomada de decisões.

Em consonância ao tema tratado, é necessária a correlação entre a chamada teoria tridimensional do Direito [1], elaborada pelo renomado jurista Miguel Reale. Contudo, para compreendermos com totalidade esse pensamento, mister se faz a análise de três ramos de ideal jurídico: formalismo normativista, sociologismo jurídico e o moralismo.

O primeiro deles compreende o Direito como uma forma que deriva da norma puramente expressa em lei, ignorando os ramos que a permeiam, enxergando o ordenamento jurídico como a aplicação pura e simples de uma cláusula. Esse meio de pensamento deriva do chamado "positivismo jurídico tradicional", sendo a interpretação do Direito em consonância à norma retratada.

A segunda via enxerga o Direito por uma ótica não focada na norma em si, mas, sim, em sua efetividade, por meio dos fatos. Ela estuda o ramo jurídico como uma questão de costumes sociais, envolvendo as características e reações do homem, e não como uma simples diretriz refletida em estipulada lei.

A terceira, por fim, relaciona o Direito em conformidade à moral que rege determinada sociedade, ou seja, à interposição clássica e distinta entre o correto e o errado, considerando os valores e culturas estabelecidos por aquela.

Miguel Reale, por sua vez, ao analisar as três correntes, elaborou uma resposta clara para o formalismo normativista, o que é adotado, até os dias atuais, como um dizer claro sobre o significado e impacto das normas jurídicas. Reale não vislumbrava o Direito como um átomo separado de sua massa, mas, sim, algo único, que é composto por três vertentes: fato, norma e valor. Para o autor, Direito não é apenas a descrição de uma norma em lei, assim como não é a moral que se extrai dela ou seu fato. Direito, nesse conceito, deve ser levada em conta, também, a sua etapa histórico-cultural, isto é, a maneira como aquela norma será encaixada no ordenamento jurídico, estando em consonância com a moral, com a efetividade da norma e com os impactos que serão gerados por meio dela. O momento ideal para sua elaboração, dando a ela sentido de forma íntegra e, soluções para os inúmeros conflitos gerados no dia a dia, sendo o fruto de uma determinada sociedade, de suas concepções e experiências.

O autor destaca que as teorias nominadas anteriormente não estão, de forma alguma, equivocadas, até porque ele mesmo utiliza o cerne de cada uma delas para a elaboração de sua interpretação. Reale, no que lhe concerne, avista o erro por meio da unificação do Direito como fato isolado, reputando o meio jurídico como algo simples e único, que se soluciona por meio de situações ímpares, e não concomitantes.

Por fim, para alcançarmos a resposta feita em um primeiro momento, precisamos entender o impacto do chamado "fato jurídico" ao elaborarmos uma nova lei ou norma. Esse termo significa tudo aquilo que ocorre, em conteúdo social, que produz impacto nos campos jurídicos, como brilhantemente dito por Caio Mário: "A chuva que cai é um fato, que ocorre e continua a ocorrer, dentro da normal indiferença da vida jurídica, o que não quer dizer que, algumas vezes, este mesmo fato não repercuta no campo do direito, para estabelecer ou alterar situações jurídicas. Outros acontecimentos se passam no domínio das ações humanas, também indiferentes ao direito: o indivíduo veste-se, alimenta-se, sai de casa, e a vida jurídica se mostra alheia a estas ações, a não ser quando a locomoção, a alimentação, o vestuário provoquem a atenção do ordenamento legal" [2]. Assim, fato jurídico, em seu sentido amplo, é tudo aquilo que ocorre em âmbito social e que gera efeitos dentro da esfera jurídica.

Por isso, retornamos ao nosso questionamento inicial: o ordenamento jurídico brasileiro possui a premente necessidade de criar normas que disciplinem sobre a temática da inteligência artificial? A resposta ideal neste momento, seria não.

Estamos em constante mudança quanto aos impactos gerados pelo avanço tecnológico, da mesma forma como não obtemos circunstâncias suficientes para regulamentar algo que mudará a cada minuto, isto é, não existem fatos jurídicos suficientes que justifiquem a criação de uma norma reguladora. Assim, por meio da aprovação do mencionado Projeto de Lei n° 21/2020, estaríamos regularizando questões que sequer existem no mundo fático, e que desconhecidos são os seus impactos.

Seria o mesmo dizer que estamos ignorando e isolando o momento histórico-cultural da humanidade, transformando o Direito como algo puro e simples, que deriva de norma expressa em lei. Com a criação dessas leis, criaríamos lacunas futuras, ainda impossíveis de prever quanto ao avanço tecnológico que haverá nos próximos anos, e que poderão gerar dificuldades posteriores, bem como conflitos jurídicos, já que a mesma estaria, por um conseguinte momento, desatualizada, devido ao avanço rápido da tecnologia relacionada à inteligência artificial, que ocorre praticamente a todo momento.

Dessa forma, conclui-se que, por meio da interpretação feita quanto ao significado de fato jurídico e a chamada teoria tridimensional do Direito produzida por Miguel Reale, ao submetermos o Direito à nova criação de decretos e deliberações, estaríamos prejudicando e alimentando o ordenamento com normas que efetivamente não teriam impactos necessários e imprescindíveis para as soluções de conflitos que serão gerados no futuro, sendo estes, frutos da causalidade da inteligência artificial, que se aprimora a cada instante, e, consequentemente, gera fatos jurídicos às vezes inimagináveis.


[1] Reale, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito. 5ª edição. São Paulo: Saraiva Jur, 1994.

[2] Caio Mário da Silva Pereira, Instituições de Direito Civil, v. 1, p. 291.

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    é estagiária em Direito do escritório HSVL Advogados, estudante do curso de Direito na Universidade Presbiteriana Mackenzie e participante da Comissão dos Acadêmicos de Direito da OAB-SP.

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    é sócio responsável pela área de Direito, Tencnologia e Inteligência Artificial do escritório HSVL Advogados, mestre em Direito aplicado à Inteligência Artificial na Faculdade de Tecnologia da Inteligência e Design Digital - PUC-SP (campus de Exatas), LLM em Direito e Tecnologia pela Escola Politécnica da USP, especializações pela FGV e PUC/SP em arbitragem e mediação, estudante da Cambridge Academy em Business Negotiation, fundador e atual conselheiro do portal DigitalRights.cc e dos "Encontros de Direito Digital" e membro efetivo da Comissão de Direito Digital da OAB-SP.

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