Opinião

O juiz das garantias e a tunnel vision — Parte 2

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20 de setembro de 2021, 14h03

Continuação da Parte 1

Para o professor Keith Findley, o tunnel vision decorre de distorções cognitivas, também conhecidas como vieses cognitivos, que são reforçados por pressões institucionais e políticas [1]. Sobre as distorções que comumente ocorrem nos processos mentais, esclarece o referido professor que o viés de confirmação e o viés retrospectivo explicam como e por que o tunnel vision é tão onipresente, mesmo em atores bem intencionados do procedimento penal.

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O viés de confirmação, segundo explica o professor Keith Findley, é a tendência humana natural de buscar, selecionar, interpretar, relembrar e valorar informações de uma forma que seja consistente e apoie as crenças, expectativas ou hipóteses pré-existentes. Assim, ao testar uma hipótese ou conclusão, as pessoas tendem a buscar informações que confirmem suas crenças e evitar informações que refutem essas crenças, além de se apresentarem resistentes a mudanças, mesmo em face de novas evidências que comprometam totalmente suas hipóteses iniciais [2]. O viés de confirmação, a propósito, dá causa ao fenômeno conhecido como selective stopping [3], segundo o qual os policiais encerram imediatamente as investigações ou simplesmente param de investigar quando, em seu conceito, descobrem provas suficientes para apoiar sua hipótese principal. Assim, o fenômeno pode causar uma investigação abortada prematuramente ou um caso encerrado antes mesmo de considerar a existência de informações que contradigam a hipótese investigativa.

Um caso famoso de selective stopping é o de Marvin Anderson. Convencidos por uma identificação precoce, embora falha, de testemunhas oculares, polícia e promotores buscaram provas que confirmariam a culpa de Marvin e nunca procuraram outra hipótese viável. Mesmo quando se deparavam com provas ambíguas ou fracas contra Marvin, a polícia e os promotores interpretavam-nas como poderosamente incriminatórias. E quando confrontados com provas contrárias ao envolvimento de Marvin no crime, como depoimento de testemunhas e o álibi, eles procuravam desacreditar ou minimizar essas provas. A avaliação precipitada de culpa de Marvin persistiu a tal ponto que levou as autoridades a rejeitar a confissão do verdadeiro criminoso.

Sobre o viés retrospectivo, o professor Keith Findley afirma que é um produto do fato de que a memória é um processo dinâmico de reconstrução. Memórias não são tiradas de nossos cérebros totalmente formadas, ao contrário, elas são montadas a partir de pequenos pedaços de informações quando nos lembramos de um evento. Essas pequenas informações sobre um evento ou situação estão constantemente sendo atualizadas e substituídas em nossos cérebros por novas em formação. A informação atualizada é então usada cada vez que reconstruímos uma memória relevante, fazendo com que a conclusão final pareça predeterminada ou mais provável do que poderíamos imaginar no início. Entendido de outra maneira, o processo é aquele em que um indivíduo reanalisa um evento para que o início do estágio do processo se conecte causalmente ao fim [4].

Durante esse processo, a prova consistente com o resultado relatado é elaborada, e as provas inconsistentes com o resultado são minimizadas ou descontadas. O resultado desse processo de rejeição é que o resultado dado parece inevitável ou, pelo menos, mais plausível do que resultados alternativos. O viés retrospectivo pode reforçar o foco prematuro ou injustificado em um suspeito inocente. Uma vez que um suspeito se torna o foco de uma investigação, isto é, uma vez que a polícia ou os promotores chegam a um resultado em suas próprias buscas para determinar quem eles acreditam ser o culpado, o viés retrospectivo sugeriria que, pensando bem, esse suspeito parece ter sido o inevitável e provável suspeito desde o início, ainda que novas informações digam o contrário. Por erros de cognição, as pessoas tendem a produzir falsas sensações de inevitabilidade e previsibilidade.

Por fim, o professor Keith Findley adverte que as pressões institucionais inerentes ao sistema adversarial e as explícitas escolhas políticas de muitas maneiras reforçam as tendências naturais em direção ao tunnel vision no sistema de Justiça Criminal. O sistema adversarial, segundo o professor, tem muitas virtudes. Mas um subproduto desse modelo adversarial é a polarização dos participantes que impõe pressões sobre eles para dogmaticamente perseguirem seus próprios interesses ou suas próprias avaliações dos resultados adequados de seus casos, exacerbando os vieses cognitivos naturais [5]. O sistema acusatório brasileiro, sobretudo na sua versão mais atual, também assumiu essa tendência, sobretudo no modelo lavajatista.

No mesmo sentido, Víctor Román afirma que fatores internos e externos se combinam para gerar um ambiente que obriga os agentes do sistema penal a encontrar um culpado e encerrar rapidamente os casos. Dessa forma, não apenas se exacerbam os vieses cognitivos que disparam o tunnel vision, como, em termos práticos, podem ocorrer descuidos na condução das investigações com prisões equivocadas, desproporções no desenvolvimento das diligências, falhas na condução dos processos e erros de estratégias. O pesquisador afirma que esses agentes sofrem pressões externas das vítimas e dos movimentos pró-vítimas, da comunidade em geral, dos meios de comunicação em massa, das instituições aos quais estão vinculados e, inclusive do mundo político [6].

Para Víctor Román, como se não bastasse o tunnel vision, a esse fenômeno se somam questões bastantes pessoais dos agentes encarregados do procedimento penal, como por exemplo, o fenômeno da ambição cega [7] segundo a qual quanto mais difícil parece um caso ou quanto mais evidências de defesa houver, mais ambição para obter a condenação existirá por parte desses agentes, uma vez que esses casos difíceis conferem prestígio, reputação e, ao final, todos querem ser os heróis de suas respectivas unidades. Além disso, existem objetivos individuais que afetam a tomada de decisões, como querer ser promovido, transferido, optar por uma posição de liderança etc. No caso norte-americano, aparecer como um promotor duro ou implacável contra o crime e enviar uma mensagem clara aos cidadãos são extremamente relevantes, especialmente nos casos em que são eleitos pela população.

Víctor Román adverte que é impossível [8] que as pessoas se sobreponham por sua própria vontade aos efeitos do tunnel vision, pois os vieses cognitivos são uma questão inerente à natureza humana. Mesmo quando informados e instruídos a tentar ignorar os efeitos desse fenômeno, é surpreendente como os agentes do sistema penal são tendenciosos em considerar apenas as provas que favorecem um determinado suspeito e nenhuma prova em contrário. Portanto, sendo o sistema de Justiça composto por seres humanos, e não por máquinas, infelizmente não basta a educação desses agentes, sendo imprescindível a imposição de regras de procedimento que possam reduzir os obstáculos que ameaçam a capacidade do sistema de identificar e condenar adequadamente os culpados.

Conquanto reconheça que as soluções para o problema do tunnel vision sejam complexas, o professor Keith Findley afirma que, dado que policiais, promotores e juízes são seres humanos, não se pode esperar que reconheçam e corrijam todos os vieses cognitivos aos quais estão naturalmente sujeitos, devendo o sistema impor princípios legais e regras de procedimento que obriguem esses agentes a olhar para fora do túnel e encontrar o verdadeiro culpado. Nesse sentido, o professor afirma que "uma maior transparência em todas as etapas do processo criminal pode ser a forma mais poderosa de se combater o tunnel vision" [9]. E esclarece que, "em casos criminais, maior transparência significa o fornecimento para os réus do conjunto mais completo possível de informações sobre a investigação" [10]. Pois afirma que, "armada com informações investigativas completas, a defesa pode pelo menos ter uma chance de resistir às hipóteses policiais pré-concebidas sobre a identificação do suspeito" [11]. Além de os atores terem um incentivo para olhar para fora do túnel, a transparência também ajuda a modificar os efeitos de preconceitos sobre os tomadores de decisão, pois as pesquisas mostram que quando as pessoas sabem que suas ações estão sendo observadas e elas serão responsabilizados publicamente, elas tendem a exibir menos preconceito em suas estratégias. Assim, ao menos em teoria, quanto mais investigações policiais forem conduzidas de forma aberta e observável, mais provável será resistir às tendências infundadas dos investigadores [12].

O tunnel vision, portanto, não é apenas um produto de tendências psicológicas, mas também de múltiplas forças externas que incluem pressões institucionais e políticas sobre a polícia, o Ministério Público e os juízes, particularmente com relação a crimes de ampla divulgação na mídia. Não raras vezes, os magistrados são pressionados a conceder medidas restritivas de direitos fundamentais em investigações prematuras como forma de supostamente "contribuir" com o trabalho dos investigadores para a busca da verdade. Tais julgadores, como sugerem as pesquisas apresentadas, não devem em hipótese alguma atuar na fase processual, sob pena de se comprometer decisivamente sua imparcialidade no julgamento do caso.

Assim, em conclusão, o tunnel vision é o fundamento psicológico inafastável que impõe a adoção do juiz das garantias no sistema penal brasileiro — para além de todos os aspectos estritamente jurídicos que têm sido amplamente debatidos. Isso porque, conforme bem elucida Víctor Román, o tunnel vision não está presente apenas no momento de interpretar uma determinada prova em particular. Pelo contrário, uma vez que certa prova é interpretada de forma tendenciosa — o que poderia ocorrer na atuação do magistrado na fase pré-processual —, ela necessariamente afetará a análise ou interpretação de evidências subsequentes, bem como o processo de integração de todas as provas do caso — ocorrendo, assim, uma espécie de contaminação cruzada e crescente [13], que ilustra a forma como as decisões iniciais que levam ao erro, por sua vez, levam a outros erros, que parecem reforçar a validade da primeira decisão e vice-versa.

Ou seja, o juiz das garantias deve ser entendido como uma regra procedimental indispensável para combater os indesejáveis efeitos do tunnel vision no sistema criminal, sendo, em razão disso, urgente a revogação da liminar deferida na ADI 6.298/DF e a consequente implementação do instituto, tal como previsto na Lei nº 13.964/2019.

 

Referências bibliográficas
FINDLEY, Keith A. Tunnel vision. In CUTLER, Brian Cutler. Conviction of the innocent: Lessons from psychological research. Washington, D. C.: American Psychological Association, 2012.

GODSEY, Mark. Blind injustice. Oakland: University of California Press, 2017.

O’BRIEN, Barbara. Prime suspect: An examination of factors that aggravate and counteract confirmation bias in criminal investigations. Psychology, Public Policy, and Law, n. 15, 2009, p. 315–334.

ROMÁN, Víctor B. Visión de túnel: notas sobre el impacto de sesgos cognitivos y otros factores en la toma de decisiones en la justicia criminal. Revista de Estudios de La Justicia, n. 34, jun. 2021, p. 17-58.

 


[1] FINDLEY, Keith A. Op. cit. p. 306.

[2] Ibidem, p. 307 e 309.

[3] Para mais informações sobre o selective stopping consultar o livro “In doubt: The psychology of the criminal justice process” de Dan Simon.

[4] FINDLEY, Keith A. Op. cit. p. 310-312.

[5] Ibidem, p. 313.

[6] ROMÁN, Víctor B. Visión de túnel: notas sobre el impacto de sesgos cognitivos y otros factores en la toma de decisiones en la justicia criminal. Revista de Estudios de La Justicia, n. 34, jun. 2021, p. 33.

[7] Ibidem, mesma página.

[8] Ibidem, p. 49.

[9] FINDLEY, Keith A. Op. cit. p. 318.

[10] Ibidem, mesma página.

[11] Ibidem, mesma página.

[12] Ibidem, p. 319.

[13] ROMÁN, Víctor B. Op. cit. p. 21-22.

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