Opinião

Como vencer um conflito kafkiano com a Interpol

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20 de setembro de 2021, 17h04

Entre as muitas consequências da ruidosa operação "lava jato", houve uma inédita internacionalização das investigações, cuja rede de inquéritos e processos conectados se espraiaram por quase 60 países. Mas nem sempre os resultados foram satisfatórios: excessos, atropelos e violação aos direitos dos réus acabaram por anular diversos processos, como reconheceu recentemente a Suprema Corte brasileira.

No início deste ano, deparamo-nos com um desses casos de injustiça transnacional: o cliente, jovem filho de um dos envolvidos na teia internacional da "lava jato", acabou indevidamente implicado num inquérito criminal no Paraguai, sendo decretada sua prisão em 2018. Como o cliente mora no Rio de Janeiro e o Brasil não extradita seus nacionais, o Judiciário paraguaio considerou-o foragido, incluindo-o na lista vermelha da Interpol. Com isso, mais de 190 países mantiveram o alerta de prisão e de extradição do cliente às autoridades paraguaias.

Considerando o Judiciário brasileiro mais efetivo no cumprimento de uma futura sentença criminal, o Ministério Público paraguaio remeteu o inquérito para a justiça federal do Rio de Janeiro, seguindo a Convenção Interamericana de Assistência Mútua em Matéria Penal. Assim, a jurisdição paraguaia foi declinada em favor da brasileira, que passou a ser a única responsável pela apuração dos fatos e a condução do inquérito. E, após ampla investigação, os promotores federais pediram o arquivamento do inquérito iniciado no Paraguai por absoluta ausência de ilicitude praticada pelo cliente, o que foi homologado pelo juiz federal Marcelo Bretas, encerrando-se o caso em definitivo.

Surpreendentemente, o Judiciário paraguaio insurgiu-se contrariamente à remessa do inquérito à Justiça brasileira, mantendo a ordem de prisão e sua inclusão na lista vermelha da Interpol, mesmo sem os autos da investigação, naquele momento já recebida, processada e arquivada pelas autoridades federais brasileiras.

A situação do cliente era evidentemente kafkiana: enquanto a Justiça brasileira declarara em definitivo não ter o cliente praticado qualquer ilicitude, a Justiça paraguaia mantinha decretada sua prisão, a ser executada por quase todos os Estados do planeta.

Após tentarmos várias incursões, requerimentos e recursos nas cortes paraguaias em conjunto com advogados locais, ficou claro que a situação jurídica do cliente estava irreversivelmente contaminada por influências políticas domésticas, inclusive, envolvendo um ex-presidente e as ramificações paraguaias da "lava jato". A solução, nesse desiderato, não viria dos tribunais paraguaios.

O Direito não tolera paradoxos. À moda do gato de Schrödinger, ao mesmo tempo morto e vivo, não é factível que o cliente fosse investigado duas vezes pelo mesmo crime, sendo absolvido em uma jurisdição e mandado às grades por outra. E, nesse caso, o paradoxo é muito mais nefasto pelos efeitos globais da lista vermelha, que impede o jovem cliente de terminar sua faculdade no exterior.

Não havendo um tribunal ou órgão supranacional que regule os conflitos de jurisdição entre Brasil e Paraguai, entendemos por bem levar o paradoxo judiciário a uma instância administrativa superior, que é a Secretaria Geral da Interpol, em Lyon, na França.

A Organização Internacional de Polícia Criminal, mundialmente conhecida pelo acrônimo Interpol (do inglês International Criminal Police Organization), fundada em 1923 e com sede Lyon, é uma agência internacional que coordena a cooperação policial e o controle do crime entre os 190 Estados-membros. Entre os curadores da Fundação Interpol  apoiadora do órgão , encontram-se o príncipe Albert II de Mônaco, o sheik Mansour bin Zayed Al Nahyan de Dubai e o brasileiro Carlos Ghosn.

Nosso trabalho junto à cúpula da Interpol nos mostrou que diversos Estados utilizam a lista vermelha de forma abusiva, através da perseguição política de jornalistas e opositores, o que autoriza a revisão administrativa desses excessos pela secretaria geral.

Com o auxílio de colegas franceses, expusemos a situação sofrida pelo jovem cliente. Entre nossos diversos fundamentos, a lista vermelha acionada pela Justiça paraguaia violava os princípios de imparcialidade da Interpol: em outras palavras, o órgão reconhecia implicitamente que o mandado de prisão paraguaio prevalecia sobre a absolvição decretada pelas cortes brasileiras, ambos incidentes sobre os mesmos fatos. Além de parcial, essa posição violaria uma série de convenções internacionais de direitos humanos, como a própria Carta da ONU.

Reconhecido o conflito de jurisdições, no que foi considerado por seus integrantes o julgamento do ano, a Comissão de Controle de Arquivos da Secretaria Geral da Interpol considerou, em julho, que a inclusão na lista vermelha emitida pelas cortes paraguaias deveria ser cancelada em definitivo, não sendo factível que o cliente fosse considerado, ao mesmo tempo e pelos mesmos fatos, culpado em uma jurisdição e inocente em outra.

Autores

  • é advogado, professor titular de Direito Internacional Privado da Faculdade de Direito da USP, professor de Direito Internacional Público na Universidade Presbiteriana Mackenzie, coordenador do Curso de Direito da Universidade Anhembi-Morumbi e membro da Comissão de Direito Internacional do Conselho Federal da OAB e da Comissão de Relações Internacionais da OAB-SP.

  • é pós-doutorando da Faculdade de Direito de Coimbra, doutor e mestre em Direito Internacional pela USP e sócio do escritório LBCA.

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