Direito Civil Atual

Penhor de veículos: Por que o artigo 1.463 do Código Civil foi revogado?

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20 de setembro de 2021, 8h00

No dia 30 de junho deste ano a Medida Provisória n.º 1028[1] de 2021 foi convertida na Lei n.º 14.179[2], destinada, sobretudo, à "facilitação de acesso a crédito e para mitigação dos impactos econômicos decorrentes da pandemia da Covid-19" e, também, a revogar o inciso III ao artigo 10 da Lei n.º 8.870/94 e o artigo 1.463 do Código Civil.

ConJur
Naturalmente, qualquer medida que se tome para a redução dos efeitos nefastos da pandemia gerada pelo SARS-CoV-2, há de ser vista com bons olhos, como, por exemplo, todo os esforços empreendidos pela comunidade acadêmica, pelo Poder Judiciário e pelo Senado para a criação do RJET[3], regulado pela Lei 14.010/20[4].

Nesse sentido, seria interessante que se analisasse o texto recém promulgado sob a ótica da vigência da lei no tempo, conquanto, de acordo com o artigo 1º da Lei n.º 14.179/21, até o dia 31 de dezembro de 2021, "as instituições financeiras privadas e públicas, inclusive as suas subsidiárias", ficavam "dispensadas, quando aplicável, de observar, nas contratações e nas renegociações de operações de crédito realizadas diretamente ou por meio de agentes financeiros", uma extensa série de dispositivos legais[5].

Entretanto, o presente trabalho não é sobre isso. O que se discute neste escrito diz respeito ao penhor de veículos, vez que o artigo 4º, II, da Lei 14.179/21 revogou o artigo 1.463 do Código Civil.

Esse dispositivo — que nunca mereceu mais do que duas páginas de comentários da doutrina especializada[6] — era singelo: "Não se fará o penhor de veículos sem que estejam previamente segurados contra furto, avaria, perecimento e danos causados a terceiros".

Mas por que foi revogado?

O artigo 4º, II, da Lei 14.179/21 não foi concebido no texto da Medida Provisória, mas foi acrescido durante o processo legislativo no Congresso Nacional. Em verdade, o problema do seguro prévio do veículo empenhado foi abordado com primazia na Emenda n.º 15[7], apresentada pelo senador Mecias de Jesus (Republicanos/RR).

Essa Emenda Aditiva, todavia, não cogitava da revogação do artigo 1.463 do Código Civil, mas se limitava a acrescentar um dispositivo à MP destinado a permitir que até o dia 31 de dezembro de 2021 se autorizasse a constituição da garantia pignoratícia sobre veículos sem o seguro prévio[8], visando a "desburocratização do acesso ao crédito[9]".

Ocorre, entretanto, que essa emenda foi acolhida nos termos do parecer[10] do relator do Projeto de Lei de Conversão da Medida Provisória (deputado Ricardo Silva (PSB/SP)), que a qualificou como "positiva por ter objetivo de desburocratização no âmbito do penhor de veículos", propondo que fosse "adotada de forma definitiva", escrevendo ao fim: "somos pelo seu ACOLHIMENTO, parcial, nos termos do Projeto de Lei de Conversão".

Então, a supressão do artigo 1.463 do Código Civil veio à luz de maneira um tanto quanto elíptica, conforme a Subemenda Substitutiva ao Projeto de Lei de Conversão da Medida Provisória, que, com pequenas modificações feitas no plenário, redundou no texto de lei aprovado.

Mas qual o papel que a revogação desse artigo do Código Civil pode desempenhar para a desburocratização ou facilitação do crédito garantido por penhor sobre veículos? Inverta-se a pergunta: como uma simples apólice de seguro pode dar causa a burocratização ou dificuldade para a constituição de crédito pignoratício?

No que toca à ideia de desburocratização, convém dizer que esta é tida no imaginário popular como uma espécie de elixir místico, que teria o condão de desfazer quaisquer mazelas existentes na relação entre o particular e o Poder Público e seus agentes, ou ainda, entre a pessoa física e quaisquer organizações de difícil compreensão para o "homem médio".

Em grande parte, isso pode ser explicado à medida que a burocratização[11] seria indicativa da degradação da estrutura e da função dos diferentes aparelhos burocráticos ideais (em sentido weberiano), de tal sorte que isso implicasse ausência de racionalidade, pulverização de autoridade e personalização dos comandos, com a proliferação de órgãos sem compromisso com as exigências de funcionalidade, de celeridade e de efetividade.

Pois bem, hoje em dia, contratos de seguro são frequentemente celebrados por meios eletrônicos em poucos minutos, não raro, sem dificuldade alguma para o mesmo "homem médio" acima referido. Quanto a isso, salvo melhor juízo, não é possível vislumbrar qualquer burocratização do crédito pignoratício.

Mas e quanto à facilitação do crédito?

Considerando que um veículo está exposto a diferentes riscos, como, por exemplo, aqueles previstos no artigo do Código Civil que foi revogado, é intuitivo que a garantia pignoratícia se torna mais fraca sem a obrigatoriedade do seguro.

Assim, não é preciso um raciocínio muito sofisticado para que perceba que em virtude de uma segurança menor, o crédito — ainda que garantido por direito real — se torna mais caro e, portanto, mais difícil no contexto da economia arrasada pela pandemia.

Em sentido técnico contratual, sem o seguro do veículo apenhado e com a conservação da posse imediata deste por parte do devedor pignoratício (parágrafo único do artigo 1.431 do Código Civil), há o incremento do moral hazard, que traz ex ante os agency costs e ex post os transaction costs, em consonância com o teorema de Coase[12].

Isso sugere que o agente financiador (em sentido amplíssimo) não vai assumir esses riscos e custos adicionais sem repassá-los aos potenciais tomadores do crédito pignoratício, seja com alíquotas de juros substancialmente maiores, seja com uma seleção de perfis de devedores conforme modelos estatísticos muito mais rigorosos.

 Infelizmente, tudo indica que o acesso ao crédito garantido por penhor de veículos foi dificultado e, rigorosamente, vai na contramão do que se desejava com a Lei n.º 14.179/21. Enfim, só o tempo permitirá saber, em caráter objetivo, se o intento do legislador ao revogar o artigo 1463 do Código Civil teve algum sucesso, por enquanto, quer parecer que há uma fortíssima tendência de que o tiro tenha saído pela culatra.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA SANTOS, Francisco Cláudio de. Direito do Promitente Comprador e Direitos Reais de Garantia (penhor – hipoteca – anticrese). São Paulo: RT, 2006.

BENCINI, Fabrizio. Burocratização. In: BOBBIO, Norberto (org.); METTEUCCI, Nicola (org.); PASQUINO, Gianfranco (org.). Dicionário de Política. Trad. do italiano para o português de Carmem C. Varrialle, Gaetano Lo Mônaco, João Ferreira, Luís Guerreiro Pinto Cacais e Renzo Dini. 5.ed. São Paulo; UNB, 2004, v. 1.

BRASIL. Comissão Mista da Medida Provisória 1028/2021. Emenda Aditiva n.º 15 à Medida Provisória nº 1.028 de 2021. Brasília, 12 fev. 2021. Disponível aquiAcesso em 14.set.2021.

BRASIL. Comissão Mista da Medida Provisória 1028/2021. Parecer de Plenário à MPV Nº 1.028, de 2021, Pela Comissão Mista. Brasília, 12 fev.2021. https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2021890&filename=PPP+1+MPV102821+%3D%3E+MPV+1028/2021. Acesso em 14 set. 2021.

BRASIL. Lei n.º 14.010, de 10 de junho de 2020. Dispõe sobre o Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado (RJET) no período da pandemia do coronavírus (Covid-19). Brasília, 10 jun. 2020. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/lei/L14010.htm. Acesso em 14.set.2021.

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BRASIL. Lei n.º 14.179, de 30 de junho de 2021. Estabelece normas para facilitação de acesso a crédito e para mitigação dos impactos econômicos decorrentes da pandemia da Covid-19; e revoga dispositivos das Leis nos 8.870, de 15 de abril de 1994, e 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil). Brasília, 30 jun. 2021. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2021/Lei/L14179.htm. Acesso em 14.set.2021.

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TOMASEVICIUS FILHO, Eduardo. O princípio da boa-fé no direito civil. São Paulo: Almedina, 2020.

[1] BRASIL. Medida Provisória n.º 1.028, de 09 de fevereiro de 2021. Estabelece normas para facilitação de acesso a crédito e para mitigação dos impactos econômicos decorrentes da pandemia da Covid-19; e revoga dispositivos das Leis nos 8.870, de 15 de abril de 1994, e 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil). Brasília, 09 fev. 2021. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2021/Mpv/mpv1028.htm. Acesso em 14 set. 2021.

[2] BRASIL. Lei n.º 14.179, de 30 de junho de 2021. Estabelece normas para facilitação de acesso a crédito e para mitigação dos impactos econômicos decorrentes da pandemia da Covid-19; e revoga dispositivos das Leis nos 8.870, de 15 de abril de 1994, e 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil). Brasília, 30 jun. 2021. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2021/Lei/L14179.htm. Acesso em 14 set. 2021.

[3] Acerca disso, vide: LIQUIDATO, Alexandre G. N. PL propõe criação do regime emergencial e transitório das relações jurídicas. Consultor Jurídico, 03 abr. 2020.  Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-abr-03/direito-civil-atual-pl-117920-tempos-requerem-medidas-atipicas e LIQUIDATO, Alexandre G. N. PL propõe criação do regime emergencial e transitório das relações jurídicas – Parte 2. Consultor Jurídico, 03 abr. 2020.  Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-abr-02/direito-civil-atual-pl-propoe-criacao-regime-juridico-emergencial-parte.

 

[4] BRASIL. Lei n.º 14.010, de 10 de junho de 2020. Dispõe sobre o Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado (RJET) no período da pandemia do coronavírus (Covid-19). Brasília, 10 jun. 2020. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/lei/L14010.htm. Acesso em 14 set. 2021.

[6] Acerca disso, vide, especialmente: DANTAS JÚNOR, Aldemiro Rezende. Art. 1.463. In: ARRUDA ALVIM, José Manoel de (coord.); THEREZA ALVIM (coord.).  Comentários ao Código Civil brasileiro: Arts. 1.390 a 1.510. Rio de Janeiro: Forense, 2004, v. XIII, p. 435-437; MAMEDE, Gladston. Art. 1.463. In: VILLAÇA AZEVEDO, Álvaro (coord.).  Código Civil Comentado: Direito das Coisas; Penhor; Hipoteca; Anticrese. São Paulo: Atlas, 2003, v. XIV, p. 284-286; ALMEIDA SANTOS, Francisco Cláudio de. Direito do Promitente Comprador e Direitos Reais de Garantia (penhor – hipoteca – anticrese). São Paulo: RT, 2006, p. 157-158 e VIANA, Marco Aurélio S. Art. 1.463. In: FIGUEIREDO TEIXEIRA, Sálvio de (coord.).  Comentários ao Novo Código Civil: Dos Direito Reais; Arts. 1.225 a 1.510. Rio de Janeiro: Forense, 2003, v. XVI, p. 777.

[8] Eis o dispositivo proposto pela Emenda n.º 15: “Art. Até 31 de dezembro de 2021, fica permitido o penhor de veículos sem que estejam previamente segurados contra furto, avaria, perecimento e danos causados a terceiros.”

[9] Segue o texto da justificativa elaborada pelo parlamentar: “A presente emenda tem por finalidade, excepcionalmente, viabilizar que o penhor de veículos possa ser exercido na relação entre credores e devedores sem que estejam previamente segurados contra furto, avaria, perecimento e danos causados a terceiros. Na esteira do que dispõe a medida provisória, os negócios jurídicos realizados entre credores e devedores podem ser exercidos por meio do direto real de garantia, utilizando-se o veículo como objeto de penhor. Nestes casos, a dispensa prévia do seguro irá facilitar o acesso ao crédito dando continuidade as atividades empresariais e consequentemente assegurando o emprego da população e a economia do Brasil. Assim, a emenda dispensa até 31 de dezembro de 2021, a obrigatoriedade do seguro de veículos penhorados em garantia de operações de crédito. Ante o exposto, urge a necessidade diante do cenário calamitoso que vivemos, de garantir a desburocratização do acesso ao crédito que auxiliará nas medidas de combate aos efeitos econômicos e sociais decorrentes do enfrentamento à pandemia”.

[10] BRASIL. Comissão Mista da Medida Provisória 1028/2021. Parecer de Plenário à MPV Nº 1.028, de 2021, Pela Comissão Mista. Brasília, 12 fev. 2021.https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2021890&filename=PPP+1+MPV102821+%3D%3E+MPV+1028/2021. Acesso em 14 set. 2021.

[11] Acerca disso, vide por todos: BENCINI, Fabrizio. Burocratização. In: BOBBIO, Norberto (org.); METTEUCCI, Nicola (org.); PASQUINO, Gianfranco (org.). Dicionário de Política. Trad. do italiano para o português de Carmem C. Varrialle, Gaetano Lo Mônaco, João Ferreira, Luís Guerreiro Pinto Cacais e Renzo Dini. 5.ed. São Paulo; UNB, 2004, v. 1, p. 130-136.

[12] Acerca de todas essas noções vide: LIQUIDATO, Alexandre G. N. O contrato de penhor. São Paulo: USP (tese de doutoramento), 2012, p. 15-19 e TOMASEVICIUS FILHO, Eduardo. O princípio da boa-fé no direito civil. São Paulo: Almedina, 2020, p. 33-57.

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