Opinião

Animais podem ser autores de ação judicial

Autores

  • Evelyne Paludo

    é advogada animalista co-diretora da Associação Nacional de Advogados Animalistas (Anaa) pós-graduada em Direito Aplicado pela Emap especialista em Direito Animal pela Esmafe/Uninter fundadora e coordenadora da ONG Sou Amigo e membro da Comissão de Direito Ambiental da OAB/PR Subseção Cascavel.

  • Waleska Cardoso

    é doutoranda em Direito (UFPR) mestra em Filosofia (UFSM) especialista em Direito Socioambiental (PUCPR) graduada em Direito (UFSM) professora e pesquisadora de Direito dos Animais advogada animalista fundadora e diretora Administrativa da Associação Nacional de Advogados Animalistas (Anaa) vice-presidente da Comissão Especial de Direitos Animais OAB RS - Subseção Santa Maria.

18 de setembro de 2021, 13h12

Introdução
Desde janeiro de 2020, ações judiciais foram propostas tendo como autores animais não humanos. Nessas ações, os animais buscam a tutela jurisdicional dos seus direitos subjetivos violados ou ameaçados de lesão.

Dada a novidade da técnica postulatória, os magistrados, em geral, ou determinam a emenda à inicial para "corrigir o polo ativo" ou extinguem o processo sem julgamento de mérito, por entenderem que os animais não possuem capacidade para serem partes em processos.

Na terça-feira (14/9), concluiu-se um julgamento paradigmático para a consolidação dos direitos animais no Direito brasileiro. A 7ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Paraná, por unanimidade, deu provimento integral ao Agravo de Instrumento nº 0059204-56.2020.8.16.0000, a fim de reintegrar os animais ao polo ativo de ação.

Neste artigo, apresentam-se as teses e os principais argumentos que sustentam a possibilidade de os animais integrarem como autores as relações jurídico-processuais, bem como o trâmite e o resultado do julgamento, considerado histórico para o Direito dos Animais no Brasil.

1) Síntese da decisão combatida e dos trâmites processuais
Tramita na 3ª Vara Cível da Comarca de Cascavel (PR) ação civil com pedido de reparação de danos morais e pedido de pensão em favor de dois autores animais não humanos representados em juízo pela ONG que os resgatou e pedido de ressarcimento por danos materiais em favor da referida ONG, terceira autora.

O juízo ad quo proferiu decisão extinguindo processo sem julgamento de mérito em relação aos autores animais, sustentando como razões de decidir, em síntese: que animais são coisas pelo Código Civil, que só pode ser pessoa o ser humano, que personalidade e capacidade são atributos do ser humano, que o reconhecimento de animais como sujeitos de direito extrapolaria a "esfera de competência" do Judiciário, que haveria a necessidade de "respaldo legal" para esse reconhecimento, que o Decreto 24.645/34 está revogado pelo Decreto 11/91 e que, embora este também tenha sido revogado, não teria ocorrido repristinação do decreto de 1934. Por todas essas razões, entendeu que animais não podem ser partes no processo.

Contra essa decisão, foram opostos embargos de declaração e, posteriormente, interposto agravo de instrumento, com pedidos de tutela antecipada recursal e de atribuição de efeito suspensivo à decisão que extinguiu o processo para os animais. Tais pedidos não foram providos em julgamento inicial pela relatora desembargadora Joeci Machado Camargo. Da decisão, foram opostos embargos de declaração, não acolhidos.

Marcado o julgamento do Agravo de Instrumento para a sessão virtual do dia 6 de julho, foi realizada sustentação oral e, em seguida, o relator juiz substituto de segundo grau Marcel Guimarães Rotoli de Macedo pediu vista para análise dos argumentos suscitados.

Em 10 de agosto, foram registrados os votos favoráveis ao recurso do Relator e do desembargador D’Artagnan Serpa Sá. A juíza substituta de segundo grau Fabiana Silveira Karam pediu vista do processo. Na terça-feira, concluiu-se o julgamento com o registro do voto faltante. Por unanimidade, a 7ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Paraná deu provimento ao agravo de instrumento e reconduziu os animais ao polo ativo da ação.

Na próxima seção, são sintetizados os principais argumentos apresentados no agravo de instrumento, acolhidos pela decisão do Tribunal de Justiça do Paraná.

2) Razões recursais para a reintegração dos animais ao processo
A norma jurídica é o produto da interpretação do jurista. É certo que a interpretação jurídica deve estar alicerçada em texto normativo (seja ele escrito ou não), mas a norma não equivale ao texto.

Nesse sentido, para compor as fontes a serem interpretadas, foram apresentadas disposições constitucionais e infraconstitucionais e decisões judiciais que suportam a afirmação dos animais como sujeitos de direito no Direito brasileiro, bem como precedentes de Direito Comparado que reconheceram animais como titulares de direitos.

Alguns dos precedentes evocados foram o REsp 1.115.916 (reconheceu que animais não são coisas, mas seres sencientes, razão pela qual a legislação brasileira protege seus interesses); a ADI 4983/CE (reconheceu a dignidade animal ao proibir práticas intrinsecamente cruéis, ainda que mascaradas pelo manto da tradição e manifestação cultural) e o REsp 1.797.175 (reconheceu a dignidade dos animais não humanos e afirmou que a proteção jurídica de seus interesses enseja inclusive a limitações de direitos fundamentais humanos e que os direitos animais estão legitimados constitucionalmente).

Contestou-se uma interpretação mal fundamentada e datada do artigo 82 do Código Civil como base para a categorização dos animais no Direito brasileiro, ao passo que algumas teses animalistas com fundamento constitucional para a consideração da natureza jurídica dos animais e sua capacidade de ser parte em ações foram apresentadas.

A primeira delas é a de que animais são sujeitos de direito por força do artigo 225, §1º, VII, da Constituição Federal. Esse dispositivo contém uma regra que regula a relação jurídica básica entre animais e humanos, atribuindo como efeitos jurídicos o dever constitucional, dos seres humanos, de não tratarem os animais com crueldade e, correlativamente, o direito fundamental dos animais não humanos de não serem tratados com crueldade.

Assim, a ratio normativa é clara: a norma protege interesse subjetivo dos animais sencientes e seu valor inerente, sua dignidade. Sendo sujeitos de direito, estão automaticamente excluídos da categoria jurídica de coisas/bens, porque coisas não podem ser sujeitos de direito.

Como a própria Constituição Federal posicionou os animais como sujeitos, é necessário dar interpretação constitucional ao artigo 82 do Código Civil, pela primazia da Constituição e por serem as normas constitucionais hierarquicamente superiores às normas do legislador ordinário.

Dessa forma, os animais não integram o suporte fático da norma do artigo 82 e a categoria de bem semovente não se aplica aos animais. Bens semoventes se referem a coisas e a bens que se movem sozinhos e, uma vez que animais não são coisas, essa categoria não se aplica aos animais, mas a qualquer outro ente que seja capaz de mover-se por força própria.

Animais não são coisas porque são sujeitos de direitos. Mas qual categoria jurídica? No recurso, ofereceram-se duas teses subsidiárias para a categorização jurídica dos animais. Na tese principal, os animais são pessoas naturais [1]; na tese subsidiária, os animais são entes despersonalizados. Neste artigo, expõe-se apenas a tese principal. De qualquer forma, os animais são sujeitos de direito, e não coisas, e possuem capacidade para ser parte.

Por força do artigo 1º do Código Civil, os animais são pessoas naturais. O artigo não se refere exclusivamente aos seres humanos, de modo que o suporte fático escolhido pela norma para ser a causa da pessoa natural no mundo do Direito é o fato da pessoa, isto é, a existência da pessoa no sentido biológico-psicológico do termo.

Segundo artigo 1º, toda a pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil. Se o termo "toda a pessoa" for tomado no sentido jurídico, ocorrem dois erros lógicos: a tautologia — afirmar que toda a pessoa é pessoa (já que o conceito de pessoa no Direito é justamente ser capaz de direitos e deveres) — e a circularidade — tomar a consequência jurídica (ser pessoa para o Direito) como a causa (ser pessoa para o Direito).

Diferentemente da norma do artigo 2º do Código Civil de 1916, que tomava "todo o homem" como suporte fático da norma que cria a pessoa natural para o Direito, a norma de 2002 toma "toda a pessoa". E, no mundo dos fatos, todos os animais sencientes tal como os seres humanos (que também são animais sencientes) são pessoas, possuem (desenvolvem ao longo de sua vida) personalidade.

A personalidade natural é a resposta do organismo vivo complexo [este que possui vida mental integrada ao suporte orgânico material (corpo biológico)] ao seu meio ambiente. Todo o indivíduo senciente possui consciência, vida mental, estados intencionais, estados cognitivos, afetivos como resposta individualizada a sua interação com o meio.

Cada indivíduo senciente, por mais "idêntico" física e geneticamente que possa ser a outro, é único, justamente pelo desenvolvimento de uma personalidade ao longo de sua vida, como resultado de suas experiências cognitivas, emocionais, físicas e volitivas.

Assim, e como a ciência já declarou por consenso em 2012 pela Declaração de Cambridge [2] que todos os animais vertebrados e alguns invertebrados como polvos são seres que manifestam consciência e estados intencionais, não se pode mais negar a qualidade de pessoas (biológico-psicológicas) a esses animais. E, sendo pessoas no mundo real, constituem junto com os seres humanos, o suporte fático da norma do artigo 1º do Código Civil.

Ademais, adquirem a personalidade jurídica das pessoas naturais (categoria jurídica), desde seu nascimento com vida, por força do artigo 2º do Código Civil de 2002. Assim, no Brasil, desde 2002 existem dois tipos de pessoas naturais: as humanas e as não humanas.

Sobre a capacidade de ser parte, ela não decorre de nenhum dispositivo legal expresso. Em vez disso, ela é presumidamente existente para todos os sujeitos de direito do Direito brasileiro, por força da aplicação do artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal e do artigo 18 do CPC.

A Lei Processual Civil não confere capacidade de ser parte, mas capacidade processual aos entes. O artigo 70 do Código de Processo Civil estabelece que: "Toda pessoa que se encontre no exercício de seus direitos tem capacidade para estar em juízo".

Se uma pessoa não possui capacidade de fato, ela deverá ser representada nos atos da vida civil. Todos aqueles entes que precisam de representação ou assistência para estarem em juízo não possuem capacidade processual e precisam supri-la por representação. É o que regulamenta o artigo 75 do CPC e o artigo 2º, §3º do Decreto 24.645/34. Este confere aos animais a possibilidade de estarem em juízo representados pelo Ministério Público, por seus responsáveis legais ou por Sociedades de Proteção Animal, as associações civis que atuam na defesa dos interesses dos animais.

O CPC não é texto normativo exclusivo sobre regulação processual (lembrar da Lei da ACP e mesmo do CDC), nem sobre regulação de capacidade processual e seu suprimento. O rol do artigo 75 do CPC não é taxativo e muitos outros entes que não estão ali listados podem ser partes em processos.

Finalmente, foram apresentados argumentos sobre a vigência do Decreto 24.645/34. O juízo ad quo afirmou que o referido decreto fora revogado expressamente pelo Decreto 11/91. De fato, o Decreto 11/91 expressamente cita o Decreto 24.645/34 no rol dos diplomas revogados.

Todavia, o Decreto 24.645/34 não possui status — força — de decreto, mas, sim, de lei ordinária e, dessa maneira, não competia ao presidente Fernando Collor revogá-lo por decreto [3]. A revogação somente poderia ocorrer pelo Congresso Nacional, por outra lei ordinária. O Decreto 24.645/34 segue em vigor e é aplicável ao caso para determinar a forma como deve ser suprida a incapacidade processual dos animais nas ações que buscam a defesa de seus interesses.

3) O sentido da decisão
A decisão acolheu os argumentos desenvolvidos no agravo de instrumento e, pelo teor do relatório lido pelo relator em sessão de julgamento de 10 de agosto, ficou estabelecido que:

"Ementa: Recurso de Agravo de Instrumento. Ação de reparação de danos. Decisão que julgou extinta a ação sem resolução do mérito em relação aos cães Rambo e Spike ao fundamento de que esses não têm capacidade para figurar no polo ativo da demanda. Pleito de manutenção dos litisconsortes no polo ativo da ação. Acolhido. Animais que pela natureza de seres sencientes ostentam capacidade de ser parte. Personalidade jurídica. Inteligência do artigo 15 (sic.) da Constituição da República. Artigo 2º do Decreto-Lei 24.645 de 34 (sic). Precedentes do Direito Comparado Argentina e Colômbia. Decisões do sistema jurídico brasileiro reconhecendo a possibilidade de os animais constarem no polo ativo de demandas desde que devidamente representados. Vigência do Decreto-Lei nº 24.645 de 1934 (sic). Aplicabilidade recente das disposições previstas no referido Decreto pelos Tribunais Superiores e Superior Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal Federal. Decisão reformada. Recurso conhecido e provido" [4].

Aguarda-se a publicação [5] do acórdão, o qual é já um marco do Direito dos Animais no Brasil e será objeto de estudo por juristas brasileiros especializados não apenas em Direito dos Animais, mas em Direito Processual e Material Civil e Direito Constitucional.

Conclusão
Animais são sujeitos de direito tutelados pelo ordenamento jurídico brasileiro. Possuem personalidade jurídica, uma vez que a Constituição atribui a eles o direito subjetivo de não serem tratado com crueldade. Possuem capacidade para defender seus direitos subjetivos em juízo, desde que representados pelos entes indicados no artigo 2º, §3º, do Decreto 24.645/34. Esse decreto está em vigor e é aplicável ao caso.

Dessa maneira, os animais podem, dada a melhor técnica jurídica, ingressar em juízo na defesa de seus direitos, representados pelo Ministério Público, pelas entidades protetoras dos animais (associações civis cuja finalidade institucional é a defesa dos animais e de seus direitos) e seus responsáveis legais, isto é, seus tutores.

Esses foram os argumentos acolhidos pelo Tribunal de Justiça do Paraná, 7ª Câmara Cível, em julgamento paradigma que consolida, na prática, o desenvolvimento teórico e normativo dos direitos dos animais brasileiros.

 


[1] Tese defendida por Waleska Mendes Cardoso em CARDOSO, Waleska Mendes. Animais são pessoas no Direito brasileiro. In: MARTINS, Juliane Caravieri; MONTAL, Zélia Maria Cardoso; LOURENÇO, Daniel Braga; NUNES, Cicília Araújo (Orgs.) Direito Animal: tutela ético-jurídica dos seres sencientes. Londrina: Editora Thoth, 2021.

[2] LOW, Philip et. al. The Cambridge Declaration on Consciousness. Proclaimed on July 7, 2012, in Cambridge, UK. Disponível em: http://fcmconference.org/. Acesso em 14 set. 2021.

[3] ATAÍDE JUNIOR, Vicente de Paula; MENDES, Thiago Brizola Paula. Decreto 24.645/1934: breve história de "Lei Áurea" dos animais. Revista Brasileira de Direito Animal, e-issn: 2317-4552, Salvador, volume 15, n. 02, p.47-73, Mai – Ago 2020.

[4] Transcrição da ementa proferida pelo Relator Dr. Marcel Guimarães Rotoli de Macedo no julgamento do Agravo de Instrumento nº 0059204-56.2020.8.16.0000, em 10 de agosto de 2021, em sessão virtual de julgamento da 7ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Paraná.

[5] Até 15/09/2021, o acórdão não havia sido publicado.

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    é advogada animalista, co-diretora da Associação Nacional de Advogados Animalistas (Anaa), pós-graduada em Direito Aplicado pela Emap, especialista em Direito Animal pela Esmafe/Uninter, fundadora e coordenadora da ONG Sou Amigo e membro da Comissão de Direito Ambiental da OAB/PR Subseção Cascavel.

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    é doutoranda em Direito (UFPR), mestra em Filosofia (UFSM), especialista em Direito Socioambiental (PUCPR), graduada em Direito (UFSM), professora e pesquisadora de Direito dos Animais, advogada animalista, fundadora e diretora Administrativa da Associação Nacional de Advogados Animalistas (Anaa), vice-presidente da Comissão Especial de Direitos Animais OAB RS - Subseção Santa Maria.

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