Opinião

A injúria racial como categoria do crime de racismo

Autores

  • Ava Garcia Catta Preta

    é advogada criminalista sócia do escritório De Macedo Buzzi e Souza Advogados Associados especialista em Direito Penal Econômico pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM) e membro da Comissão de Acompanhamento da Reforma Criminal da OAB-DF.

  • Maria Olívia Cardoso Langoni

    é advogada no escritório De Macedo Buzzi e Souza Advogados Associados e pós-graduada em Direito Público Direito Civil e Direito Processual Civil.

18 de setembro de 2021, 6h04

O Supremo Tribunal Federal iniciou em dezembro de 2020 o julgamento do HC 154.248/DF, ação que possui como tema central a seguinte discussão: "O crime de injúria racial é ou não uma forma de discriminação racial que se materializa de forma sistemática e assim configura o racismo e, como consequência, sujeita-se ou não à extinção da punibilidade pela prescrição?" [1].

A controvérsia jurídica que figura como pano de fundo do writ trouxe acentuada repercussão social. No entanto, a injúria racial e o racismo, embora aparentem uniformidade, são crimes distintos e possuem estrutura e elementos volitivos diferentes.

A República Federativa do Brasil, por meio do artigo 4º, inciso VIII, da Constituição Federal, previu em sua estrutura normativa o repúdio ao terrorismo e ao racismo como princípios basilares das relações internacionais.

Diante da naturalização de ações, hábitos, situações, falas e pensamentos que já fazem parte da vida cotidiana do povo brasileiro, e que promovem, direta ou indiretamente, a segregação ou o preconceito racial — o denominado racismo estruturado , o constituinte originário, por se tratar de uma conduta mais gravosa, consagrou que a prática do racismo constitui crime imprescritível (artigo 5º, XLII).

A fim de cumprir esse mandado de criminalização, foi editada a Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989, que define os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. Segundo Cézar Roberto Bittencourt: "O legislador, com esse crime, procura coibir toda a forma de discriminação, preconceito e intolerância, que acompanha a civilização através dos tempos" [2].

Destarte, a conduta do racismo é ampla e atinge uma coletividade indeterminada, pressupondo a segregação ou a intenção de segregar, de forma abrangente, determinados grupos de cidadãos, com base em sua raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.

Dada a sua gravidade, trata-se de crime imprescritível, inafiançável e de ação penal pública incondicionada.

Noutro giro, o Código Penal prevê como crime contra a honra, a injúria racial  modalidade qualificada do delito de injúria (artigo140, §3º) , consistente na ofensa à dignidade ou decoro de alguém, com a utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência.

Ainda, segundo Bittencourt: "O objeto de proteção no crime de injúria é a honra subjetiva, isto é, a pretensão de respeito à dignidade humana, representada pelo sentimento ou concepção que temos a nosso respeito". Para ele, o crime de injúria racial ofende a honra e a dignidade de pessoa determinada, presente na conduta típica o animus injuriandi [3].

Ademais, o crime de injúria racial é afiançável, a promoção da ação penal é pública condicionada à representação e a pretensão punitiva da pena prescreve em oito anos, a partir da data do fato (artigo 109, IV, Código Penal).

Já nessa perspectiva inicial é possível verificar que o racismo e a injúria racial são delitos diferentes, não só pela conduta típica praticada, mas também pelo bem jurídico tutelado e, sobretudo, pelo rigor sancionatório.

Todavia, o Superior Tribunal de Justiça, em julgamento emblemático do AgRg no AREsp 686.965, e com esteio na doutrina de Guilherme Souza Nucci, decidiu que: "Com o advento da Lei n.9.459/97, introduzindo a denominada injúria racial, criou-se mais um delito no cenário do racismo, portanto, imprescritível, inafiançável e sujeito à pena de reclusão" [4].

Posteriormente, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento dos embargos de declaração de decisão tomada em Agravo Regimental no Recurso Extraordinário nº 983.531, do Distrito Federal, ratificou a equiparação dos crimes de injúria racial e racismo e, por conseguinte, a imprescritibilidade e inafiançabilidade daqueles [5]

Atualmente, encontra-se pendente de julgamento na Suprema Corte o polêmico Habeas Corpus 154.248/DF, ação em que se pretende assentar o entendimento acerca da equiparação dos crimes de racismo e injúria racial no que tange à imprescritibilidade e seus consectários legais.

O relator do processo, ministro Edson Fachin, proferiu voto considerando que o crime de injúria racial é uma espécie do gênero racismo e, portanto, imprescritível, o que impossibilita o reconhecimento da extinção da punibilidade. Segundo o relator:

"A diferença, desse modo, é meramente topológica, logo, insuficiente para sustentar a equivocada conclusão de que injúria racial não configura racismo. Conforme sustenta Guilherme de Souza Nucci, o rol daquele diploma não é exaustivo, devendo-se considerar a conduta prevista no artigo 140, §3º, do CP 'mais um delito no cenário do racismo, portanto, imprescritível, inafiançável e sujeito à pena de reclusão'. Observe-se, nesse contexto, que o crime em análise, por ser sujeito à pena de reclusão, não destoa do tratamento dado pela Constituição ao que ali se prevê como crime de racismo" [6].

Já apresentou divergência o ministro Nunes Marques, que, ressalte-se, é relator da ADI 6987, ajuizada pelo partido Cidadania em agosto do corrente ano, na qual se busca justamente essa equiparação entre os crimes de racismo e injúria racial, inclusive no tocante a questão da imprescritibilidade. Pode-se imaginar, portanto, que, se mantiver o posicionamento anteriormente exarado, o relator irá votar pela improcedência da ação constitucional.

O uso da analogia no Direito Penal é sempre problemático diante da possibilidade de se inflar ou recrudescer tipos penais por meio do Poder Judiciário à revelia do que previu o legislador.

Ao se adotar a analogia indiscriminadamente e em prejuízo do réu, nascem novas problemáticas e, com elas, soluções fáceis, porém de legalidade duvidosa. Um exemplo disso seria como ficaria o prazo para oferecimento de representação para o início do processo criminal em relação ao crime de injúria racial.

A solução proposta na exordial da ADI mencionada é que o crime se torne imprescritível a partir do oferecimento da representação. Solução engenhosa, porém, carente de previsão legal que a embase, sendo temerário se criar novas formas de prescrição pela via judiciária.

A questão é aparentemente polêmica porque o racismo — em sentido latu senso — constitui um mal odioso que impregnou a sociedade e deve ser combatido com veemência, no entanto, flexibilizar normas penais fora dos parâmetros legais pode não ser a forma mais efetiva de combater esse bom combate.

A intenção é boa, mas a história nos mostra que o resultado do recrudescimento penal é sempre negativo e se volta justamente contra aqueles que se pretende proteger. Veja a proposta de execução provisória da pena, por exemplo, que visou a tornar o sistema penal mais justo e afastar a impunidade dos abastados que respondem pelos chamados crimes de colarinho branco, mas acabou sendo responsável pelo aumento do encarceramento, em sua maioria, de pessoas pobres e pretas.

Sendo assim, é importante questionar se o intuito do legislador é, de fato, a adoção de políticas penais destinadas à eficaz proteção de bens jurídicos relevantes, ou se é mais uma forma de utilização do Direito Penal emergencial ou simbólico, a fim de sanar os anseios e dar satisfações à opinião pública em favor de outros fins.

Por fim, vale refletir se o recrudescimento de um crime contra a honra terá efetividade no seu combate, notadamente no cenário atual, em que as discussões sobre a descriminalização dos crimes contra a honra vêm crescendo cada vez mais.


[1] STF. 2ª Turma. Relator Min. Edson Fachin. HC 154.248/DF. Voto proferido em 26/11/2020.

[2] BITENCOURT, Cezar Roberto. Coleção Tratado de direito penal volume 1 — 26. ed. — São Paulo: Saraiva Educação, 2020.

[3] BITENCOURT, Cezar Roberto. Coleção Tratado de direito penal volume 1 — 26. ed. — São Paulo: Saraiva Educação, 2020.

[4] STJ. 2ª Turma. Relator Min. Ericson Maranho. AgRg no AREsp 686.965/DF. Julgado em 18/08/2015.

[5] STF. 1º Turma. Relator Min. Roberto Barroso. AgRg no RE no AG 983.531/DF. Julgado em 31/07/2017.

[6] STF. 2ª Turma. Relator Min. Edson Fachin. HC 154.248/DF. Voto proferido em 26/11/2020.

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