Meteoro à vista

Governo acordou tarde para dívida dos precatórios, dizem especialistas

Autor

18 de setembro de 2021, 7h43

Desde 2010 os gastos com precatórios — títulos expedidos pelo Judiciário reconhecendo uma dívida de um ente público, após condenação judicial definitiva — mais do que triplicaram na última década. Segundo dados do Tesouro Nacional, o no orçamento de 2010 era de R$ 26,4 bilhões. Em 2021, passou para R$ 56,4 bilhões, e a previsão para 2022 é de que ultrapasse os R$ 89 bilhões.

Fabio Rodrigues Pozzebom / Agência Brasil
Proposta de Paulo Guedes para parcelar precatórios pode gerar perda de credibilidade do país, afirmam especialistas

Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

Do montante esperado para o ano que vem, R$ 53 bilhões correspondem a decisões da Justiça Federal (R$ 44 bilhões de precatórios e R$ 19 bilhões em requisições de pequeno valor), de acordo com DADOS consolidados do Conselho da Justiça Federal (CJF).

Já uma decisão do Supremo Tribunal Federal, de 2017, que condenou a União a ressarcir os estados da Bahia, Amazonas, Ceará e Pernambuco pelo cálculo incorreto do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (Fundef), representa cerca de outros R$ 16 bilhões em precatórios federais.

Em relatório elaborado pela Instituição Fiscal Independente, órgão ligado ao Senado, foram elencadas as situações que podem ter levado ao aumento da dívida da União com precatórios: aumento das demandas judiciais, muitas vezes ligadas a mudanças nas regras da previdência e dos gastos sociais, que ensejam maiores questionamentos na Justiça; o efeito acumulado de ações com impacto fiscal relevante e que se aproximam, agora, do trânsito em julgado (em alguns casos sem terem sido esgotadas as possibilidades de acordo entre as partes, o que poderia reduzir consideravelmente o impacto fiscal da demanda); e à gestão possivelmente inadequada dos riscos fiscais por parte do Ministério da Economia, dado que a Advocacia Geral da União promove, por dever de ofício, o acompanhamento pormenorizado das demandas judiciais, prestando informações aos ministérios e órgãos interessados.

Para Eduardo Gouvêa, sócio do Gouvêa Advocacia e presidente da Comissão Especial de Precatórios da OAB Nacional, também apontou dois possíveis motivos para o crescimento dos precatórios este ano. Em primeiro lugar, a digitalização dos processos e a intimação eletrônica, que possibilitaram andamento mais célere dos processos. O segundo motivo apontado foi o julgamento, em pautas virtuais, de diversos incidentes de resolução de demandas repetitivas pelo STF e STJ que liberaram lotes de processo travados nos tribunais inferiores esperando a definição das teses.

Porém, o advogado diz acreditar que o governo poderia ter evitado esse aumento com uma gestão bem feita. Citou ferramentas que já existem e que poderiam ter sido utilizadas, como a Lei 14.057/2020, que regula o acordo com credores para pagamento com desconto de precatórios federais e o acordo terminativo de litígio contra a Fazenda Pública. O governo poderia ter se valido também da Lei de Transação Tributária (Lei 13.988/2020), que evitaria que créditos se tornassem precatórios.

No mesmo sentido, Marco Antonio Innocenti, sócio do Innocenti Advogados e secretário da Comissão Especial de Precatórios da OAB, destacou que os governos federal, municipais e estaduais têm diversos mecanismos constitucionais para honrar suas dívidas que vão desde a possibilidade de financiamento público ou privado com juros menores, até acordos com descontos de 40% sobre o total da dívida.

Estratégias do governo
Logo após a divulgação do valor da dívida neste ano, o ministro da Economia, Paulo Guedes, afirmou que pagamento integral dos precatórios pode inviabilizar o Orçamento, uma vez que esses são despesas obrigatórias, integrantes do teto de gastos e, com isso, levam a diminuição da margem para despesas discricionárias, como os investimentos públicos.

"Se a gente fizer uma retrospectiva comparando o volume de despesas de precatórios com os gastos discricionários, usados para rodar a máquina pública, em 2010 era 11% das discricionárias. Em 2022, será quase 70%. O problema que a gente tem, das despesas obrigatórias comprimindo as discricionárias, vai ser maior em 2022", afirmou Bruno Funchal, secretário especial do Tesouro e Orçamento do Ministério da Economia, em uma coletiva de imprensa.

Dessa forma, o ministro apresentou a Proposta de Emenda à Constituição 23/2021, que vai a Plenário primeiramente na Câmara dos Deputados, que prevê duas regras de parcelamento. A primeira, de caráter temporário, prevê o pagamento inicial de 15% das dívidas cuja soma total for superior a 2,6% da receita corrente líquida dos 12 meses anteriores e parcelamento do restante em nove anos .

A outra regra, de caráter permanente, prevê o parcelamento de todo precatório que for superior a R$ 66 milhões. Da mesma forma que na regra temporária, 15% do valor seria pago à vista e o restante, em nove prestações. Por fim, as sentenças consideradas de pequeno valor, de até R$ 66 mil, serão pagas na íntegra, sem parcelamento.

Segundo o Ministério da Economia, a mudança proposta pela PEC deve gerar uma economia de R$ 33,5 bilhões em 2022.

A PEC também criou a possibilidade do chamado "encontro de contas", que promoverá um abatimento dos valores devidos por estados e municípios para a União. Mais uma mudança prevista é na taxa de correção, já que todos os precatórios passarão a ser corrigidos pela taxa Selic. 

A proposta estipula a formação de um Fundo de Liquidação de Passivos da União, cujos recursos seriam destinados ao abatimento da dívida pública e ao pagamento dos precatórios. O Fundo seria formado, entre outros itens, pelos recursos obtidos com a venda de imóveis da União, pela alienação da participação societária de estatais e pelos dividendos recebidos das estatais, excluído o valor gasto com as estatais dependentes.

A proposta gerou grande controvérsia e muitos a consideram como uma forma de calote. O IFI destacou que o parcelamento afetaria a percepção de risco, pelo mercado, podendo resvalar em precificação de juros mais altos nos títulos do governo em um contexto de déficits ainda expressivos e dívida pública acima de 84% do PIB.

"O benefício — permitir o cumprimento do teto de gastos e o financiamento de despesas novas — do não pagamento de precatórios (postergação) poderia ser mais do que neutralizado pelo efeito negativo. O aumento do risco, dos juros e do custo médio da dívida rapidamente cobraria o preço", concluiu o IFI em seu relatório.

Fernando Facury Scaff, professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo, advogado e colunista da ConJur, apontou vários problemas na PEC 23/21, entre os quais dois se destacam.

Em primeiro lugar, o próprio devedor estaria estabelecendo um parcelamento compulsório de seus débitos, quando eles já estão consolidados para pagamento integral no próximo ano, o que viola o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada.

Em seguida, Scaff afirmou que criar um fundo patrimonial para quitar dívidas correntes é inconstitucional, violando pelo menos a regra de ouro (artigo 167, III, CF), que possui um comando "corretíssimo": só faça dívida se for para investir. "No caso, estão vendendo patrimônio para pagar dívidas correntes e dar um by pass no teto de gastos, incluindo receitas de royalties de petróleo, um recurso natural não renovável."

Além disso, para o professor, é uma falácia dizer que a questão se resume a falta de dinheiro da União, pois essa nunca arrecadou tanto quanto agora. O verdadeiro problema está com o teto de gastos, pois o governo Bolsonaro pretendia gastar de forma eleitoral, com emendas parlamentares para sua base de apoio, e não olhou para as despesas com precatórios, que acabaram "espremendo os gastos", que devem ficar dentro do teto.

Segundo Eduardo Gouvêa, a PEC apresenta por Guedes poderá ter consequências desastrosas, pois, mudando o artigo 100 da Constituição, abrirá um precedente para que até estados adimplentes parcelem seus débitos em dez anos.

"Fizemos um levantamento que mostrou que a dívida pode chegar a R$ 1,5 trilhão em dez anos, aumentando 30% da dívida pública. Isso gera um impacto muito ruim para o mercado e para as contas pública, ou seja, a PEC cria um problema que não existe. Nunca houve uma emenda constitucional que visasse mudar o sistema e gerar estoque de dívida", disse o especialista.

Ele ainda explicou que a PEC, ao criar um percentual para limitar o cumprimento de decisão judicial no país, fere a cláusula pétrea da separação dos poderes, porque é uma interferência direta em outro poder, e dos direitos e garantias individuais.

Innocenti citou estudo da Fundação Getúlio Vargas que mostra que quem não paga leva um prejuízo em cascata. Os pesquisadores calcularam que um precatório de dez anos tem, em média, 37% do valor em juros. Assim, para o administrador público, a protelação não só não resolve como encarece a dívida.

Outras propostas
Diante da grande resistência à PEC dos precatórios, novas possibilidades passaram a ser estudadas. O presidente do Supremo Tribunal Federal, Luiz Fux, propôs pagar a dívida de acordo com a lei do teto de gastos, separando os precatórios que seriam pagos em 2022 dos que serão pagos em 2023, o que o ministro chamou de "microparcelamento", através de mediação do Conselho Nacional de Justiça.

O valor fixado de pagamento para precatórios seria R$ 30,21 bilhões, o equivalente a sentenças pagas em 2016, quando foi criado o teto dos gastos. Depois disso, seria corrigido apenas a inflação, chegando a um valor próximo de R$ 40 bilhões. A diferença com o valor total da dívida entraria como prioridade na fila para o ano seguinte, e assim sucessivamente.

Em nota, a Consultoria de Orçamento da Câmara dos Deputados emitiu um alerta quanto tal proposta. Segundo ela, se aplicada, a nova regra deverá resultar no acúmulo de R$ 672,4 bilhões a R$ 1,448 trilhão em precatórios a serem pagos até o fim de 2036.

Essa proposta, ressaltou Eduardo Gouvêa, faz com que se perca qualquer previsibilidade de quanto será a dívida em alguns anos, pois acumula os excessos para os anos seguintes. Segundo o advogado, nunca houve essa possibilidade na Constituição, todos os regimes especiais, mesmos os declarados inconstitucionais, tinham um prazo final. Além disso, a medida seria inconstitucional, uma vez que um ato administrativo não poderia modificar regra constitucional.

O deputado federal Marcelo Ramos (PL-AM), apresentou uma PEC que visa alterar o artigo 107 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias para retirar do teto de gastos as despesas com pagamento de condenações judiciais. Segundo o parlamentar, sua proposta abrirá espaço adicional no teto de gastos em torno de R$ 20 bilhões.

Para Skaf essa é a melhor solução apresentada até o momento. "O teto de gastos visa obrigar o governo federal a conter seus gastos. Ocorre que os precatórios não são gastos administráveis pelo poder executivo, uma vez que decorrem de decisões judiciais. Logo, o Executivo não tem como controlar esses gastos e o teto não deve ser aplicado a tais despesas."

O advogado salienta que a proposta do deputado Marcelo Ramos também é a mais adequada porque visa retirar os precatórios desde a origem do teto de gastos, sem dar efeito retroativo.

"A fórmula é de recalcular o teto no primeiro ano sem os precatórios, aplicar o IPCA desde então, e se chegar ao teto atual — mantendo-o íntegro. Não se trata de uma ideia para 'furar o teto', mas para 'recalculá-lo' e aplicar essa nova conta a partir de então", completou.

Por fim, o presidente da Comissão de Precatórios da OAB afirmou que a proposta de retirar os precatórios do teto de gastos é imprescindível e o caminho correto. Segundo Gouvêa, a OAB se posiciona pela inconstitucionalidade dos precatórios se submeterem ao teto, pois esses são determinações de outro poder que não poderiam ter sido incluídos no teto por meio Emenda Constitucional.

Sem essa rubrica do teto, o especialista aponta que o governo terá dinheiro em conta para pagar os precatórios, sem gerar passivo para o futuro. "O melhor caminho é retirar os precatórios do teto de gastos e, a partir daí, fazer uma gestão conforme a legislação existente (utilizando outros meios de pagamento de precatórios) para evitar que a conta cresça mais. Outra coisa fundamental é o governo para de cometer ilegalidades, que é o que gera os precatórios em primeiro lugar", concluiu.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!