Diário de Classe

Direito e xadrez: O enxadrista hermeneuta

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18 de setembro de 2021, 10h06

Muitos textos estabelecem pontos de interseção entre Direito e xadrez. Na maioria das vezes, presta-se deferência apenas ao respeito dispensado às regras de xadrez, porquanto se acredita que sua observância é senão condição de possibilidade ao justo desenvolvimento do jogo, postura similar à desejada no cenário jurídico.

Com razão, afirma-se que somente a partir do compartilhamento e assimilação do referido conjunto de regras é possível o diálogo entre jogadores de as mais variadas nacionalidades, idiomas, culturas, extratos sociais etc., tornando-o, portanto, um "jogo universalmente possível".

Entretanto, a partir de uma breve reflexão acerca do movimento "1.c5", resposta das peças escuras ao movimento "1.e4" (King’s Pawn Open) realizado pelas peças claras, denominada "Defesa Siciliana", bem como suas linhas variáveis, acredito que, para além de um sistema fechado, estruturado a partir de razões matemáticas, o Xadrez é sobretudo um "jogo de sentidos", cuja habilidade de grandes mestres enxadristas decorre de critérios similares aos desenvolvidos a partir da experiência hermenêutica.

Narrarei um episódio metafórico que reforça o argumento. Pois bem.  

Durante uma partida de xadrez, um jovem advogado, após jogar "1.e4" (peão do rei), questionou ao velho enxadrista hermeneuta qual seria a melhor habilidade de um grande mestre enxadrista. "Os grandes mestres enxadristas são capazes de tomar decisões adequadas a partir da compreensão dos movimentos que as antecedem", disse o velho hermeneuta. Confuso, o jovem advogado, ainda amarrado à ingênua objetividade do positivismo primitivo, questionou onde residira, então, a importância das regras de xadrez.

Após alguns segundos em silêncio, o velho hermeneuta respondeu ao movimento do jovem advogado por meio do lance "1.c5", questionando-o: "– o que isto quer dizer?" Confiante, o jovem advogado respondeu que se tratava de movimento permitido pela regra: "— as regras de xadrez permitem que, no primeiro movimento, os peões prossigam duas casas à frente". Sendo assim, ainda de acordo com o jovem advogado, as regras de xadrez seriam semelhante a algumas regras do Direito, cuja clareza e objetividade permitem o movimento [1.c5] do peão das peças escuras. "É sua vez do jogar", disse o velho enxadrista hermeneuta. Convicto, o jovem advogado movimentou o peão da coluna "h" em direção ao quadrante da linha 4 (2.g4), observadas, objetivamente, as "regras do jogo", oportunidade em que os experientes enxadristas que observavam aquela partida expressaram incompreensão acerca do movimento-resposta do causídico.

O velho hermeneuta, percebendo que o jovem advogado não compreendera o motivo do riso entre os que assistiam a partida, concluiu: as regras correspondem o primeiro passo da interpretação, mas você parece não ter compreendido o sentido contido no movimento do peão, portanto, tomou a decisão errada.  

Retomando. Conforme ensinou o hermeneuta, os grandes mestres enxadristas o são porque tomam decisões adequadas a partir da compreensão do sentido de cada movimento que as antecedem, estabelecendo, assim, coerência entre a movimentação de cada peça.  

Evidentemente, o prévio conhecimento e as respectiva assimilação das regras de xadrez são, sim, importantes ao desenvolvimento do jogo. Não se desconsidera a importância das regras. Tampouco se propõe qualquer tipo de relativização. No entanto, é preciso acrescentar que a assimilação da "gramática enxadrista", que, por sua vez, determina como e quando as peças serão movimentadas no tabuleiro, a exemplo das linhas verticais/horizontais das torres ou mesmo o percurso horizontal dos bispos, muitas vezes não é suficiente para a compreensão dos movimentos e a respectiva tomada de decisões.

Enxadristas experientes, ao se depararem, por exemplo, com o movimento "1.c5", a fim de compreenderem o lance, mesmo ciente da "legalidade" daquele movimento, deverão superar as concepções objetivistas acerca da interpretação da regra, projetando sentido àquilo que se compreende como Defesa Siciliana, cujos primeiros registros remontam ao Século 16.

Compreendido o sentido do movimento "1.c5", construído e sedimentado ao longo da história, o movimento das peças claras não pode ser decidido aleatoriamente, conforme fez o jovem advogado. Os grandes mestres enxadristas reconhecem a historicidade dos movimentos de abertura, meio-jogo e finais, porquanto se revelam por meio de padrões que se repetem e foram experimentados ao longo do tempo. O sentido do movimento de cada peça não é atribuído pelo enxadrista. Há, no xadrez, a constituição de uma linguagem intersubjetiva, viabilizando, portanto, a compreensão dos sentidos de cada movimento, cujo conjunto de regras é apenas o ponto de partida.

Por se tratar de um sistema fechado, ou seja, com possibilidade finitas, poder-se-ia relacionar a habilidade dos grandes mestres enxadristas apenas a cálculos de probabilidade matemática. Porém, considerando que os quatro primeiros movimentos do jogo comportam 315 bilhões de combinações, alcançando aproximadamente 70 trilhões de possibilidades a partir do décimo movimento, afere-se a impossibilidade de tomada de decisões [adequadas] apenas por meio de cálculos ao tempo de cada movimento de peça.   

Compreendo o jovem advogado. É perceptível que o fascínio pela objetividade da "gramática enxadrística" decorre de o desejo de combate ao decisionismo judicial. Mas é preciso muita cautela. O objetivismo textualista, por exemplo, não é solução. Pensemos nos cães-guias: jamais ultrapassariam as placas que descrevem a proibição de animais.

Percebam: assim como o movimento das peças de xadrez, o texto sempre quer dizer alguma coisa. Ao hermeneuta, e isso aprendi com Streck, cabe ouvir dele [o texto] os princípios que sustentam a regra. A propósito, os "princípios enxadrísticos" não são valores e refletem um sentido reconhecido entre os enxadristas, fechando, inclusive, a interpretação de cada movimento, v.g., a ocupação do centro do tabuleiro.  

Por fim, fica a imaginar a hipótese de um juiz voluntarista, que, ao invocar, por exemplo, o princípio da afetividade, decida que o cavalo, em vez de se movimentar em "L", deveria se movimentar em "W". Sorte nossa que, diferentemente dos enxadristas, cujas decisões que precedem o movimento das peças visam o alcance do xeque-mate, o direito ostenta uma peculiaridade: o juiz deve apresentar à sociedade as razões de suas decisões.

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