Opinião

Caminho de pedras: um estudo dos direitos humanos no Brasil de Noronha

Autor

  • Henrique Guelber

    é doutorando em Sociologia e Direito pela UFF mestre em Direito Processual pela UERJ e defensor público no estado do Rio de Janeiro.

17 de setembro de 2021, 19h11

Tive a oportunidade nababesca de percorrer, há poucos dias, mais de quatro quilômetros sobre pedras provenientes de formação geológica vulcânica — muitas pedras de todos os tamanhos — da costa do arquipélago de Fernando de Noronha, na trilha Capim Açu, a mais longa e difícil da ilha principal. Uma paisagem deslumbrante, única e, para ausência de gáudio meu, para poucos. Não me refiro aqui às condições físicas necessárias para percorrer a trilha.  

Durante o trajeto, me deparei com algumas reflexões que as tenho como decisivas em minha formação de ser humano. As trilhas, como um todo, são como a vida. O doce sabor de se chegar à areia não é captado plenamente se a experiência sensorial não é duramente testada em situações inóspitas precedentes

Eu tinha um sonho de conhecer Noronha e o realizei. Aquele lugar é fantástico, mas aquele lugar também representa aguda dramaticidade. O ICMBio, os nativos da ilha, pessoas amorosas e zelosas com as belezas naturais tão bem preservadas do local, contagiam até os turistas mais insensíveis com a importância da preservação da natureza. Não há guimbas de cigarros no chão. Não há lixo no chão. As praias possuem suas areias intactas e constroem-se também a partir da decomposição de várias espécies da vida marinha. Ao mergulhar no Atalaia, um fiscal com apito na boca olha atentamente para o número limitado de pessoas na piscina natural, vigilante para que ninguém toque seu fundo de corais.

A disciplina muito bem exigida dos turistas e nativos de Noronha é um exemplo que recategoriza o brasileiro. Você, por algum momento, chega a pensar: "Este país tem jeito".

Obnubilado por aquela sensação de primeiro mundo e de educação ambiental, meu tino, como uma onda que me encaixota, me empurra para outro cenário. Acima referi-me à percepção sensorial, e os olhos não mentiam quando não viam uma só pessoa negra turista na ilha. O lugar, os programas naturais, os melhores locais para se conhecer, se comer e se beber são totalmente inacessíveis para 90% da população nacional, pelo menos.

Ali se gasta em libras. Uma cerveja de 600ml chega a custar R$ 35, sem contar os 10%. Viajei mentalmente para Guarani (MG) instantaneamente, quando em meus 20 e poucos anos comprava a "caixa" por uns R$ 30.  Outro comentário ouvido diretamente de uma "colega" de pousada demonstra o desvirtuamento tipicamente brasileiro: é o alto preço do local que "seleciona" os visitantes daquele paraíso e o preserva. Em termos outros, evitando-se que o pobre tenha acesso a Noronha, preserva-se Noronha. A hipótese levantada se acorrenta a uma versão tipicamente coronelista da nossa história.

Esse "processo seletivo" não é exclusivo de Noronha. Ele está nos hospitais, nas escolas, no projeto de cidade da costa e do interior do país. Mesmo naquela ilha pernambucana, em que é exaltada a figura de Miguel Arraes, o neoliberalismo tende a transformá-la em um protótipo de Angra dos Reis, cidade que é dominada por construções de palácios que violentam de maneira mortal a paisagem natural. Foi com grande tristeza que vi um projeto faraônico de pousada poluir a visão verde sensacional que se tem bem no topo de um morro visto da Praia da Conceição. Nossa Senhora da Conceição/Iemanjá, cuja imagem se encontra virada para o mar, certamente já prevê o que virá deste aceno.

No século 19, é interessante notar que Fernando de Noronha foi utilizada para "desova" de revolucionários farroupilhas e praieiros, assim como já chegou a ser o destino forçado dos "capoeiristas desordeiros". Na história recente do Brasil, ao menos em dois períodos a ilha foi utilizada como prisão de pessoas contrárias ao governo constituído: na era Vargas e na ditadura militar. A ilha já chegou a ser "emprestada" em duas oportunidades para os americanos, uma primeira vez em 1942, no curso da Segunda Guerra Mundial e, depois, por Juscelino, no auge da Guerra Fria, quando se instalou ali um posto avançado de observação de mísseis teleguiados.

Obviamente, os marcos históricos que faço neste curto espaço prestam-se a enaltecer alguns eventos marcantes no construído cultural de Noronha. Lamentei-me bastante em ler, por exemplo, no Memorial de Noronha na Vila dos Remédios a afirmação de que a ilha havia sido "descoberta" por Américo Vespúcio em 1503. Confesso que gosto mais de passear pela imaginação e indagar, ainda que sem base contundente escrita, sobre a ausência de explicação para estar presente na ilha uma esfera armilar chinesa, de séculos e séculos anteriores a tal marco, uma verdadeira ancestral dos astrolábios. Sim, perguntei para alguns nativos e guias, mas todos ali basicamente estavam a contar sua história a partir de 1500…

Bem, mas onde exatamente entra o estudo dos direitos humanos no Brasil de Fernando de Noronha?

O recurso imagético é, antes de mais nada, fundamental. Quando se fala no texto sobre Fernando de Noronha, tem-se a criação cerebral de algo absolutamente encantador. De praias, de verde, de golfinhos e de dóceis tubarões-lixa.

Muito por culpa de uma doutrina nacional acrítica e empobrecida de uma preocupação vertical sobre o tema, a introjeção da disciplina direitos humanos no Brasil, que ainda caminha a passos de tartarugas marinhas, ou melhor, aos passos do johngarthia lagostoma, caranguejo que, no Brasil, só pode ser encontrado em Noronha, construiu-se sob a imagem de que direitos e mais direitos seriam assegurados sem qualquer contrapartida dos indivíduos. Um rol enorme de direitos enunciados, com a afirmação de berço onusiano pós-guerra, sem a imprescindível contextualização digna e holística acerca de seu próprio conteúdo e simbologia, o que definitivamente não reflete minimamente sua verdade histórica.

Tenho que a doutrina, refiro-me à que em massa é consumida, e as faculdades brasileiras robusteceram a antipatia e pecaram na edificação de uma sinergia cultural necessária que semeasse um amplo ambiente social que ajudasse a significar a matéria. Perdeu-se, mais uma vez, a passada histórica.

Os direitos humanos não nasceram após 1945. Não nasceram na Revolução Francesa. Não nasceram, sequer, no início das grandes navegações. Os direitos humanos são representativos de lutas que acompanham a humanidade contra a opulência do autoritarismo humano. Gosto de fazer um raciocínio com meus alunos e alunas. Pensemos no homem europeu da alta idade média. Definam-no imageticamente num breve exercício.

Vocês provavelmente estão a pensar num homem branco, que se valia do trabalho das crianças, que se valia da religiosidade para explicar as atrocidades que cometiam, que subjugava a mulher, que explorava outros seres humanos, que queria poder ilimitado, vantagens pessoais e conforto, que tratava dos deficientes como seres imperfeitos.

A mais conhecida revolução da história, a Francesa, é, na verdade, um pouco de Fernando de Noronha. Estonteante na escrita, no corpo, no modelo. Olhada sob a perspectiva humana, algo profundamente desigual. Os franceses olharam para os haitianos, que se rebelaram no Caribe inflamados pelos princípios da revolução e disseram: "Não! A revolução não vale para vocês".

Percebam, caras leitoras e caros leitores, que os direitos humanos em sua versão "fofinha", desprendida das categorias antropológica, sociológica, filosófica, linguística tão necessárias, são um verdadeiro desastre hermenêutico-cultural do Direito brasileiro.

É interessante reportarmo-nos, como já mencionei em algumas oportunidades, que a partir do processo de redemocratização do Brasil, a complexidade fenomênica da defesa dos direitos civis neste país sofreu uma ruptura indisfarçável e proposital. Quando a classe média e os intelectuais brasileiros cobravam a observância de caros direitos civis dos cidadãos no curso da ditadura, não admitindo desaparecimentos forçados, prisões arbitrárias, torturas, violência estatal, censura, uma vez alcançado o restabelecimento de um governo civil, acreditou-se na bonança. Os transgressores, que até então contemplavam intelectuais e classe médica, foram peneirados. E o que ficou na peneira foram, maciçamente, as pessoas pobres, negras, desinteressantes a um modelo de capitalismo que perdoava intelectuais e classes média e alta, mas que pouco se importava com quem não integrava uma cadeia de consumo e, naturalmente, com voz.

E a ruptura está pronta e acabada. O Direito Penal, vigorizado, contra aqueles que, mesmo com a inauguração de uma ordem democrática, continuavam a delinquir e a colocar em xeque, especialmente, o patrimônio dos antigos transgressores da ditadura. A quebra das utopias vem, emblematicamente, como marca do mundo pós-moderno, significar a desfaçatez e o descompromisso daqueles que lutavam por direitos civis no Brasil em relação às camadas mais pobres do Brasil.

O discurso dos direitos humanos, nesse embalo fúnebre, se desassocia do seu papel naturalístico de defesa contra o autoritarismo, e, agora, toma uma roupagem altamente estigmatizada, como símbolo de um processo de pejorativização absolutamente imbecilizado, que, sobretudo, é exponenciado pela falta de debate crítico e probo a respeito da realidade brasileira.

Olhar para os direitos humanos e olhar para Fernando de Noronha tem certamente uma beleza. Entretanto, me sinto na obrigação de alertar para o quão terraplanistas nós nos comportamos em relação a tantos assuntos cruciais para o desenvolvimento de um mundo solidário.

Ao final da caminhada sobre as pedras, como mencionei, algumas questões me ocorreram, literalmente. Primeiro me lembrei do livro de José Miguel Wisnik "Maquinação do Mundo". Nele, o autor aborda um dos mais célebres poemas de Drummond, em que declama "no meio do caminho tinha uma pedra/Tinha uma pedra no meio do caminho". Esse poema foi predicado como "obra de um gênio" e, também, como um "monumento de estupidez". Nada mais atual para o Brasil. Hoje, para muitos e muitos, a falta de capacidade de reflexão levaria o poema, certamente, a ser considerado estúpido. Wisnik explica que a polarização político-ideológica e religiosa dividiu-nos em várias categorias "mentais" impermeáveis. Pessoas que não alcançam a poesia, as metáforas, que buscam sempre a simplificação, o utilitarismo das intenções, parecem maioria.

Em segundo plano, naturalmente, as pedras me traíram. A menos de um metro da areia, tive o impulso de não olhar para meus pés. Após quilômetros de árdua caminhada, perdi o contato com as pedras e fixei-me no horizonte belíssimo. Resultado: uma queda que me custou a canela e um grande hematoma no braço direito. Moral da história: claro que você já entende, mas só ressalto que, por vezes, se morre na praia mesmo vindo das pedras. E um comentário irrelevante, mas que me sinto obrigado a fazer para sempre valorizarmos o mínimo que seja: nunca aclamei tanto um "passeio", que para muitos brasileiros também se chama "calçada", após caminhar quatro quilômetros pulando de pedra em pedra.

Homenageando Noronha, encerro fazendo referência a duas árvores típicas da ilha, valendo-me de uma figura de linguagem essencial: Sejamos mais gameleiras e deixemos de embarcar em mulungus.

Autores

  • é doutorando em Sociologia e Direito pela UFF, mestre em Direito Processual pela UERJ, defensor público no estado do Rio de Janeiro, titular do III Tribunal do Júri da Capital e professor de Direitos Humanos.

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