Opinião

Homofobia e imunidade parlamentar: o julgamento contra Jair Bolsonaro

Autor

  • Carolina Dumet

    é estudante de Direito da Faculdade de Direito da UFBa secretária-geral e diretora de eventos do Instituto Baiano de Direito e Feminismos (IBADFEM).

17 de setembro de 2021, 18h09

Em março de 2011, o atual presidente e ex-deputado Jair Bolsonaro, em entrevista ao programa CQC (veiculado pela TV Bandeirantes), afirmou "não correr riscos" de ter um filho gay por ter dado uma boa educação a seus filhos e ter sido um pai presente, e que nunca participaria de um desfile gay para não promover maus costumes, por acreditar em Deus, ter família, além de dizer que a família deveria ser preservada a qualquer custo ou a nação ruiria [1].

Falas como essa não são incomuns para Bolsonaro, que já foi condenado a indenizar a jornalista Patrícia Campos Mello, da Folha de S.Paulo [2], pelo uso de expressão que fazia alusão sexual, bem como a indenizar a jornalista Bianca Santana por falsa acusação [3] e a deputada Maria do Rosário por fala que fazia referência a estupro [4]. Todos esses processos se encontram em grau de recurso.

Apesar de serem comportamentos recorrentes, Bolsonaro foi eleito presidente da República em 2018 e, assim como muitos brasileiros, vê falas homofóbicas (e racistas e machistas) como meras piadas de mau gosto, que em nada repercutem na realidade de pessoas LGBTQIA+. Mas as pesquisas apontam o contrário.

De acordo com o "Dossiê Lesbocídio no Brasil: de 2014 até 2017", entre esses quatro anos 126 mulheres lésbicas foram vítimas de assassinatos por serem lésbicas [5]. Além disso, em 2020 o Brasil foi reconhecido pela 12ª vez consecutiva como o país que mais mata pessoas transexuais e travestis no mundo [6], e dados do Grupo Gay da Bahia (GGB) apontam que a cada 19 horas uma pessoa LGBT é morta no país [7].

Retornando para o atual processo de homofobia contra Jair Bolsonaro, que motivou o presente texto, é preciso destacar que a ação civil pública movida foi movimentada pelo Grupo Arco-Íris de Conscientização Homossexual, pelo Grupo Cabo Free de Conscientização Homossexual e Combate à Homofobia e pelo Grupo Diversidade Niterói, ainda em 2011, e em 2015 o então deputado foi condenado a pagar danos morais, tendo seu recurso sido julgado em 2017 e sua sanção mantida em segundo grau [8].

Vale destacar que, em sede de primeira instância, os pedidos eram de R$ 500 mil de indenização e retratação de Jair Bolsonaro. A indenização foi diminuída para R$ 150 mil e o pedido de retratação não foi atendido pelo Judiciário, embora os dados acima indiquem que o Brasil é um país extremamente LGBTfóbico e a condenação a retratação de um político como Jair Bolsonaro não seria só cabível, mas também muito significativa na luta em prol dos direitos LGBTQIA+.

Em nova tentativa de mudar a decisão, o caso chegou ao Supremo Tribunal de Justiça através de um recurso especial, no qual a defesa de Bolsonaro afirmou que as falas do ex-deputado estariam protegidas pela inviolabilidade conferida pela Constituição às falas de parlamentares.

Em relação a essa suposta inviolabilidade, é necessário ressaltar que a Constituição prevê, em seu artigo 53, a inviolabilidade das palavras e votos dos deputados e senadores, mas essa garantia deve ser aplicada apenas aos atos cometidos em ofício, em sua decorrência [9], como é, inclusive, o posicionamento do Supremo Tribunal Federal:

"Assim, é de se distinguir as situações em que as supostas ofensas são proferidas dentro e fora do Parlamento. Somente nessas últimas ofensas irrogadas fora do Parlamento é de se perquirir da chamada 'conexão como exercício do mandato ou com a condição parlamentar' (INQ 390 e 1.710)" [10].

Ademais, a abrangência da imunidade parlamentar só deverá se estender para fora do Congresso se provado que o parlamentar agiu em função do cargo, ou sua opinião proferida guarda pertinência com ele [11]:

"A imunidade material prevista no artigo 53, caput, da Constituição não é absoluta, pois somente se verifica nos casos em que a conduta possa ter alguma relação com o exercício do mandato parlamentar" [12].

Não nos parece que o discurso acima tenha pertinência com o exercício do mandato parlamentar de um deputado. Apesar disso, essa linha argumentativa foi acolhida pelo Superior Tribunal de Justiça, que retirou o caso de pauta, voltando a julgá-lo na terça-feira (14/9); partindo do princípio de que essa discussão seria matéria constitucional (ou seja, de competência do Supremo Tribunal Federal para julgar, e não do STJ), remeteu os autos ao STF.

Ainda assim, a condenação de Jair Bolsonaro permanece e, se reiterada pelo STF, o valor será destinado a um fundo em prol da conscientização sobre a homofobia. Resta-nos aguardar se o Supremo se isentará de julgar o mérito do processo, a prática da homofobia, adotando o fundamento de que o parlamentar teria agido dentro de seu suposto direito de discriminar outro ser humano por sua orientação sexual.

 


[1] BREMBATTI, Katla. Bolsonaro será julgado no STJ por declaração homofóbica de dez anos atrás. CNN Brasil. 2021. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/politica/bolsonaro-sera-julgado-no-stj-por-declaracao-homofobica-de-dez-anos-atras/. Acesso em 14/09/2021.

[2] SANTOS, Rafa. Bolsonaro é condenado a indenizar jornalista da Folha de S.Paulo. Consultor Jurídico. 2021. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-mar-27/bolsonaro-condenado-pagar-indenizacao-20-mil-jornalista. Acesso em 14/09/2021.

[3] SOUZA, Renato. Bolsonaro é condenado a indenizar jornalista em R$ 10 mil. Correio Braziliense. 2020. Disponível em: https://www.correiobraziliense.com.br/politica/2020/12/4894471-bolsonaro-e-condenado-a-indenizar-jornalista-em-rs-10-mil.html. Acesso em 14/09/2021.

[4] RAMALHO, Renan. Bolsonaro vira réu por falar que Maria do Rosário não merece ser estuprada. G1 Política. 2016. Disponível em: http://g1.globo.com/politica/noticia/2016/06/bolsonaro-vira-reu-por-falar-que-maria-do-rosario-nao-merece-ser-estuprada.html. Acesso em 14/09/2021.

[5] PERES, Milena Cristina Carneiro et al. Dossiê sobre lesbocídio no Brasil: de 2014 até 2017. Rio de Janeiro: Livros Ilimitados, 2018. Disponível em: https://dossies.agenciapatriciagalvao.org.br/fontes-e-pesquisas/wp-content/uploads/sites/3/2018/04/Dossi%C3%AA-sobre-lesboc%C3%ADdio-no-Brasil.pdf. Acesso em 14/09/2021.

[6] EXAME. Pelo 12º ano consecutivo, Brasil é país que mais mata transexuais no mundo. 2020. Disponível em: https://exame.com/brasil/pelo-12o-ano-consecutivo-brasil-e-pais-que-mais-mata-transexuais-no-mundo/. Acesso em 14/09/2021.

[7] SEGALLA, Vinícius. Dia Internacional contra a LGBTfobia: mortes foram subnotificadas no último ano. Brasil de Fato. 2021. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2021/05/17/dia-internacional-contra-a-lgbtfobia-mortes-foram-subnotificadas-no-ultimo-ano. Acesso em 14/09/2021.

[8] VITAL, Danilo. Toma que o filho é teu: STJ manda ao STF recurso de Bolsonaro contra danos morais por homofobia. Consultor Jurídico. 2021. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-set-14/stj-manda-condenacao-bolsonaro-danos-morais-stf. Acesso em 14/09/2021.

[9] FERRAZ, Sérgio Valladão. Curso de Direito Constitucional. 2. ed. Rio de Janeiro: Elsevier Editora Ltda., 2006, p. 381.

[10] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Denúncia rejeitada. Inquérito nº 1958. Relator: Ministro Carlos Velloso. 29 de outubro de 2003. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/visualizarEmenta.asp?s1=000096831&base=baseAcordaos. Acesso em 14/09/2021.

[11] FREITAS FILHO, Milton Barreto. Aplicabilidade da inviolabilidade parlamentar dentro e fora do recinto legislativo. Disponível em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/21571/aplicabilidade-da-inviolabilidade-parlamentar-dentro-e-fora-do-recinto-legislativo#_ftn2. Acesso em 14/09/2021.

[12] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Queixa-crime parcialmente recebida, para instauração de processo penal contra o querelado pelos crimes de difamação e injúria contra funcionário público no exercício de suas funções, nos termos dos artigos 21 e 22, combinados com o inciso II do artigo 23 da Lei 5.250/1967. Inquérito nº 2134. Relator: Ministro Joaquim Barbosa. 23 de março de 2006. Disponível em: http://www.stf.gov.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=2134.NUME.+E $Inq$.SCLA.&base=baseAcordaos. Acesso em 14/09/2021.

Autores

  • é advogada, pós-graduada em Direito Médico e Bioética pela Ebradi, secretária geral do Instituto Baiano de Direito e Feminismos (Ibadfem), membra da Comissão de Diversidade Sexual e de Gênero da OAB/BA e da Women in Global Health Brazil.

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