Senso incomum

Shakespeare e o desprezo ao STF: a resposta do lorde-juiz ao príncipe

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16 de setembro de 2021, 8h00

Spacca
Tenho desde o início defendido a posição do STF no manejo do Regimento Interno, ao realizar as ações de defesa, não só da Corte, mas da própria democracia. Esse debate começa em 2018.

Sei que é difícil explicar as ações do STF à comunidade jurídica (caso do Inquérito das fake news). Há críticas — ao STF e a mim — dos vários setores da comunidade jurídica, que vão do campo garantista até o punitivista. Todavia, se ambos estão de acordo, então é possível que estejam equivocados, uma vez que parece partirem de premissas erradas.

De todo modo, é preciso compreender, serenamente, que, no Brasil, ninguém convence ninguém. Se o mundo começasse no Brasil, ainda estaríamos discutindo a narrativa criada pelos negacionistas de que há monstros na parte escura da terra. Bom, a pandemia bem ensina o que é negacionismo, em que nem os quase 600 mil mortos dizem algo. A mentira é o critério da verdade.

O que são os "debates", hoje? Parece que partem de lugares distintos como se em idiomas diferentes. MacIntyre tinha razão: o emotivismo não é verdadeiro. Mas é como se fosse. Mas não é, e é esse o ponto.

Se pelo Constitucionalismo Contemporâneo (com Cs maiúsculos) é impossível convencer alguém, talvez pela literatura e pela história isso seja mais viável.

Sim, porque dizer que o Estado Democrático de Direito é o que segura a democracia — e que essa se sustenta na Constituição — parece tarefa impossível. Na mesma linha, dizer que o limite da democracia é a sua autocontradição tornou-se argumento írrito. Corremos o risco de defender coisas que destroem as coisas que defendemos.

Do mesmo modo, dizer que o Brasil quase levou um golpe no dia 7 de setembro, quando os talibãs tupiniquins pregavam loucamente o fechamento do STF (ver aqui) e pessoas chorando emocionadas com fake news que diziam que o Brasil estava sob estado de sítio (na verdade, beirava ao Estado de Circo, com tantos palhaços no salão), parece inútil (alguém dirá que peguei caricaturas; na verdade, ao contrário: trata-se da representação simbólica das representações mentais do dia 7 de setembro).

Não, dizem autoridades e políticos, houve apenas pequenos excessos discursivos… Quer dizer: em busca da liberdade, acabemos com o EDD. Abaixo a democracia. E prendamos os ministros do Supremo. E, sim, a culpa é do STF. Afinal, disse o líder Ricardo Barros que o ativismo do STF é que é o culpado de Bolsonaro culpar o STF e pretender fechá-lo. Ou seja: Bolsonaro e seus adeptos agridem (até com fogos) o STF e ameaçam a vida de ministros. Ameaçam a democracia. Querem intervenção militar. É consenso que o presidente da República queria dar o golpe usando o caos provocado pelas polícias militares. E a culpa é do STF? Como já escrevi aqui, venire contra factum proprium.

1. A resposta está em Shakespeare
Por tudo isso, refugio-me em Shakespeare. Bálsamo contra ignorantes e néscios que propugnam o fim da democracia. Cai como uma luva a peça Henrique IV, parte II. Sim, no final do século XVI (lê-se 16 e não "xivi") o bardo já sabia o que representava um ataque à Corte.

Na peça, o filho de Henry IV (que logo será Henry V) esbofeteia o Lorde Chefe da Corte da Inglaterra. E, para surpresa de todos, o Lorde-Juiz prende o príncipe. Manda-o ao cárcere. Por Contempt of Court.

Vejamos parte da peça, quando, pela primeira vez depois do episódio na Corte, há o encontro entre o Lorde-Juiz e o agora já Rei Henrique V, no leito de morte do rei-pai:

Rei Henrique V — Não! Concebe-se que um príncipe de tantas esperanças, como eu, venha a esquecer-se de quanta indignidade lhe causastes? Como! Descomposturas, reprimendas, prender tão rudemente o herdeiro próximo da Inglaterra! É isso pouco?

Lorde-Juiz — Representava eu vosso pai, nessa época; a imagem de sua força em mim se achava. E enquanto eu cuidava do bem público, a administrar suas leis, Vossa Grandeza se comprazeu em esquecer meu posto, a majestade e a força da Justiça, a figura do rei que em mim se via, chegando a esbofetear-me em plena audiência. Vendo em vós o ofensor de vosso pai, foi que fiz uso enérgico de toda a minha autoridade, a fim de enviar-vos para a prisão.

Vejam a beleza do diálogo.

E continua o Lorde Juiz: — Se o feito é condenável, ora que estais coroado, imaginai um vosso filho a desprezar os vossos decretos, a arrancar da sede augusta vossa justiça, a lei lançar por terra, ou a embotar a espada que assegura vossa paz e sossego. Mais, ainda: a desdenhar a vossa real imagem e rir do que fizer vosso outro corpo. Fazei vosso esse caso; aconselhai-vos com vossos reais conceitos; por instantes sede pai, figurando-vos um filho: ouvi que vosso brio se enxovalha; vede que vossas leis mais temerosas com escárnio são tratadas (…).

Veja-se: o Lorde-Juiz mostra que quem foi esbofeteado foi o Estado da Inglaterra. Ele, Juiz, representava o Rei. O Estado. As Instituições. "Vossa Grandeza esqueceu meu posto", diz o Juiz.

Na verdade, o príncipe, ao esbofetear o Lorde-Juiz, esbofeteou, simbolicamente, o próprio pai-Rei e, assim, a Instituição da Justiça, exercida em nome do Rei. (É por isso que eu digo que não há espaço para agir estratégico em âmbito institucional. É por isso que eu digo que o cidadão não quer saber a opinião do juiz sobre seu direito.)

Oiçamos (castiçamente) a lição do Lorde-Juiz:

"Vendo em vós o ofensor de vosso pai, foi que fiz uso enérgico de toda a minha autoridade, a fim de enviar-vos para a prisão".

E, agora, degustemos, prazerosamente, a resposta do agora Rei ao juiz que o prendera:

"— Tendes razão, Juiz; é com equidade que pesais isso tudo; conservai, pois, a espada e a balança. Só desejo que vossas honras cresçam até que a vida vos chegue, para verdes que meu filho vos ofende e obedece como o fiz."

Conservai, pois, a espada e a balança…

E arremata: "— Possa eu também viver para as palavras repetir de meu pai: 'Feliz me julgo por ter um servidor de tanta têmpera, que se atreve a julgar meu próprio filho, e não menos feliz por ter um filho que assim entrega sua grandeza ao braço da Justiça'."

E, como lição que a arte deixa para o mundo — a literatura sempre chega antes —, o rei proclama:

Pusestes-me em custódia; por isso, em mãos vos ponho, agora, a espada sem mancha que a levar-vos afizestes, com a recomendação de que a useis sempre com o mesmo espírito imparcial e justo que usastes contra mim.

Pronto. Ética e estética.

2. A necessária suspensão de nossa incredulidade
Não, não falo para convertidos. Isso é despiciendo. Quem me lê há tantos anos possui discernimento. Quando digo que o limite da liberdade é uma proibição — a da autocontradição — sou criticado por não respeitar a Constituição, que exatamente proíbe a autocontradição performativa acerca dela mesma e, portanto, da democracia.

Mas, atenção, tenho convicção que também não adianta falar para inconvertíveis. Penso ser inútil gastar pólvora em chimango. O Brasil virou um grande grupo de whatsapp. Uma neocaverna.

Falo, aqui, apenas para quem tem sensibilidade democrática. Os néscios que se afastem. Embora até desconfie que sejam maioria, acredito, do mesmo modo que a CF é um remédio contra maiorias, que também textos sofisticados os espantem.

Falo aqui para quem, em tempos de "narrativas", insiste em acreditar… nos fatos. Que existem. Falo aqui para quem insiste na velha ideia de que é possível compreender os fundamentos alheios — e compreender que sem os 'fundamentos' as coisas não fazem sentido.

Falo aqui para quem tem no horizonte a grandeza de Henrique V. E para quem tem a sensibilidade para ler o bardo.

Precisamos ter fé poética, que é um conceito resgatado por Jorge Luiz Borges de uma afirmativa de Samuel Taylor Coleridge, autor do século XIX, que a definiu como "uma suspensão voluntária da incredulidade". Aliás, Fé Poética é um dos contos de Siete Noches, de Borges, que tratam da Divina Comédia.

Sim, não devemos ser incrédulos se queremos entender sentimentos, metáforas e coisas, digamos assim, mais sofisticadas.

Shakespeare talvez tenha compreendido melhor o papel institucional de um Poder de Estado do que muita gente hoje.

Por isso, minha defesa da Constituição e do EDD. Sim, o EDD é maior do que o texto da Constituição. Esse é o busílis. É a consciência histórica que deve falar mais alto.

Bem, o que o Supremo fará daqui para frente? O que fará Bolsonaro? O que farão Lira e Pacheco? Não sei.

Não sou profeta. E quando faço profecias, torço contra.

De minha parte, fico com a sabedoria de Shakespeare.

Com a consciência de minha consciência histórica e da força de seus efeitos, conceito tão caro a um filósofo como Gadamer.

Como se viu, Shakespeare explica melhor que os juristas os ataques ao STF. O príncipe não esbofeteou o lorde juiz. Esbofeteou o reino da Inglaterra. Assim como… o resto é muito simples. Muito.

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